Muito provavelmente Nietzsche preferiria os maus rapazes aos bons rapazes. O rapaz certinho e submisso perante as correntes instituídas nunca seria do seu agrado. Em sentido oposto, ele valorizaria um rapaz rebelde, fiel às suas convicções e ao que elas implicam, e capaz de operar pequenas modificações numa sociedade acomodada e, por isso mesmo, repleta de rapazes bons mas impotentes.
Rapazes bons há muitos. Os que realmente escasseiam são aqueles que não se conformam com o mundo em que vivem. Mas importa sublinhar que esse inconformismo é bem mais do que uma simples e vulgar teimosia. Teimosias até os melhores rapazes têm.
A rebeldia do mau rapaz é uma rebeldia com rumo e fundamento. Ele sabe o que tem a fazer e luta em função das causas que julga serem importantes. "Quem corre por gosto não se cansa". Então estamos perante um autêntico atleta de alta competição.
Mas o que dizer daqueles que, ao correrem com relativo gosto, apenas perseguem a medalha? Que termos usar para qualificarmos uma corrida feita em função dos aplausos, da fama, e da riqueza? Estes últimos aspectos não são, por si mesmos, representantes da decadência humana. Mas o seu simbolismo, numa sociedade centrada unicamente na "medalha", é muito preocupante.
Chamar-lhe-ei, com uma certa familiaridade, o Péssimo rapaz. E ele, na sua hipocrisia característica, o interpretará como um elogio.
Afasto-me e esboço um sorriso. No meu íntimo julgo saber o que é ser péssimo. Sei o que isso significa nos dias que correm. E também sei que me orgulho do que sou, mesmo na eventualidade de os "péssimos" me considerarem péssimo...
Mas afinal de contas o que é ser péssimo(a)? O que é normal? O que se conclui desta vida padronizada?
Na melhor das hipóteses o péssimo rapaz virará as costas e dirá, na sua consciência: "que tipo tão péssimo! será que ele não se apercebe da sua tremenda futilidade?"
E afasta-se. Para quê aborrecer-se com banalidades? Para quê parar e reflectir um pouco?
O seu passo é ritmado. A recompensa aguarda-o mesmo ao final da rua. Brevemente colherá os frutos de um vida sem rumo. De uma alma sem brilho. De um coração insensível. E de uma cabeça que repete maquinalmente os mesmos erros, como se de virtudes se tratassem.
Vai a contornar a esquina. O seu olhar só não despreza as pessoas, apenas porque um dia pode vir a precisar delas. Os bons rapazes deitam-lhe olhares reprovadores. Os maus rapazes nem sequer lhe dirigem a atenção. Ele é indiferente ao mundo que o rodeia. Não sente. Não vive.
Acelera o passo. Na sua realidade imunda e promíscua, julga-se superior.
Atravessa a rua. Uns metros à frente um carro atropela-o violentamente, projectando-o para o abismo e escuridão até então desconhecidos.
Grita e gesticula. As palavras não lhe saem. O mundo em seu redor, cada vez mais sombrio e distante, escapa-se-lhe ao controlo. Pela primeira vez desejava um perdão, uma benevolência, um braço amigo para se voltar a erguer.
Aqui há uns tempos num almoço em que estava malta bem mais nova ouvi pela primeira vez a expressão que me deixou perplexo e angustiado- "que cena gay!". Pelo contexto em que foi proferida depreendi o significado, pois não me atrevi a perguntar, mais por pudor de me mostrar desactualizado do que receio de falar sobre questões ligadas à homossexualidade. "Cena gay" significa algo desagradável, de mau gosto, abjecto até e é então sinónimo de "cena foleira", para nos manter-mos no ambiente semântico do calão juvenil.
A expressão surpreendeu-me por duas razões. Por um lado porque se espera sempre e se tem a esperança que os jovens sejam mais tolerantes do que as gerações anteriores, em especial aqueles que vivem essa juventude numa época pós-cultura gay (este prefixo não pretende designar nada de póstumo, mas contemporâneo de uma cultura que eu acho que já faz parte inquestionável do tempo em que vivemos) e que por isso estariam mais aptos a conviver com ela e a assimilar pelo menos o respeito pela diferença.
Por outro lado surpreendeu-me porque, julgava eu, o termo "gay" foi o primeiro que conferiu à orientação homossexual uma conotação positiva, sem sombra de perjúrio e que isso era um dado adquirido. Uma vitória linguística, o que não é de somenos importância. Mas a história que aqui conto deixou-me a suspeita de que se calhar não é bem assim. Pode ser que a expressão não se vulgarize como se vulgarizou num bom sentido o termo "gay". Mas também pode acontecer o contrário nas sempre imprevisíveis mutações das linguagens, o que obrigaria a uma nova "revolução" linguística por forma a restaurar o que se poderá chamar o direito a uma auto-nomeação positiva.
Sem pretender dramatizar a questão, queria só alertar para o facto de, pelo menos actualmente (mas penso que infelizmente será sempre assim) nunca nada estar garantido, especialmente no que toca aos direitos das minorias e em particular das minorias lgbt. Prova disso foi o recente backlash conservador que tem varrido os E.U.A. no que toca a direitos dos homossexuais, e que não só pretende pôr em causa a legitimidade cultural das reivindicações da comuninade gay, como conseguiu revogar direitos já consagrados em termos legislativos.
Mais uma razão a meu ver para não desmoralizar, mas antes não só estarmos de olhos bem abertos como não baixarmos os braços e lutar pelos nossos direitos. È que como dizia Nietzche, o preço da existência é o de uma eterna luta.
TABACO PARA TODA A GENTE. Na televisão, num desses programinhas em que cada convidado temcinco minutinhos para dar uma opinião de sua especialidade, o debate do dia é sobre "o tabaco, suas consequências, as campanhas anti-tabagistas, porque as pessoas fumam e como fazê-las parar de fumar". O anúncio mal cabe no ecrã. Assim começa: - A NICOTINA É UMA SUBSTÂNCIA PSICOTÓXICA E A DESCONTINUIDADE DE SEU USO CAUSA ABSTINÊNCIA, diz o médico, resoluto pela total proibição do tabaco. Seguido ao médico, informa o desportista: - O TABACO FAZ MAL. MUDA O BIORRITMO E TORNA OSCILANTE ATEMPERATURA. Prossegue o sensato professor de educação cívica: - A CAMPANHA ANTI-TABAGISTA É UM ATO DE BOA-FÉ. EVITAR SOFRIMENTOS É MORALMENTE DESEJÁVEL. Um popular da platéia, aqueles que se chama "cínico decarteirinha", expõe seu sorriso de dentes branquíssimos:- E QUEM FUMA DEMAIS QUE NÃO LAMENTE A ANGÚSTIA DE UM ENFISEMA. Intercede o psicanalista:- NINGUÉM QUER SOFRER PARA RESPIRAR, SOFRER PARA COMER E, MUITO MENOS, SOFRER PARA MORRER. O filósofo foucaultiano termina a frase:- NO ENTANTO, O TABACO ACIONA UM DISPOSITIVO MAIS FORTE QUE A VONTADE, QUE É O DISPOSITIVO DO PRAZER. Fundamentalistas de uma seita religiosa até então secreta, invadem a emissora: - O PULMÃO, BRANCO E PURO, ACIMA DE TUDO, É IMACULADO, E NÃO MERECE A FUMAÇA DO VÍCIO. O TABACO QUEIMA POR DENTRO, diz o líder. Os seus seguidores manisfestam-se, aliás, a plenos pulmões:- PULMÃO PRETO, NÃO. ALMA BRANCA, SIM! PULMÃO PRETO NÃO, ALMA BRANCA, SIM... Tais religiosos são detidos. Busca-se aplainar os ânimos. O ex-tóxico-dependente, atualmente com síndrome de pânico, alerta, com os olhos arregalados:- EU JÁ ME LIBERTEI DESSE MAL. E PEÇO QUE TODOS OS FUMADORES IMITEM O MEU EXEMPLO. O ecologista lança a todos um olhar ameaçador e declara: - TESTES CIENTÍFICOS PROVAM QUE TODAS AS PLANTINHAS EXPOSTAS ÀFUMAÇA DO TABACO MORREM. A câmera fecha na sua expressão ameaçadora, e segue o intervalo.Uma popular da platéia, aborrecida, comenta: - O TABACO NÃO MATA NEM PODE MATAR. SE JÁ MATOU, O PROBLEMA NÃO É DO TABACO, MAS DE QUEM SE MATOU OU MORREU, POR ELE OU POR OUTRO MOTIVO QUALQUER. Após as propagandas, politicamente corretas e nas quais não aparece o dito elemento em debate, voltamos à programação.Pronuncia-se o agente funerário: - NEM TODOS OS FUMADORES TEM ÓBITO POR CAUSA DO TABACO. Convidado o político, ora da ala da centro-direita, ora da ala da centro-esquerda, pronuncia-se como representante da ala dos razoáveis. - HÁ VIDAS ABREVIADAS DE TODAS AS MANEIRAS E NÃO APENAS POR CAUSA DE TABACO. NÃO VAMOS EXAGERAR NA PATRULHA. Enquanto isso, no botequim, surge o comentário: - QUEM JÁ VIROU FUMAÇA NÃO SABE QUE SEUS FAMILIARES GANHAM RIOS DE DINHEIRO NA AMÉRICA, ÀS CUSTAS DE SUA DESGRAÇA. Na televisão, prosseguem os palpites realistas: - O TABACO ESTÁ NAS PRATELEIRAS. SUA VENDA É PERMITIDA SEM GRANDES RESTRIÇÕES. ALIÁS, NUMA SOCIEDADE DE CONSUMO, A PALAVRA"RESTRIÇÕES" NUNCA SE APLICA, diz o sociólogo. - PORTANTO, CONTINUAREMOS A PRODUZIR, sorri, satisfeito, o industrial do produto em questão.Nota: nunca se esqueçam que há sempre um capitalista de plantão, à espreita. Diz o etnólogo:- APESAR DE TODO ESSE MAL-ENTENDIDO SOBRE O TABACO, EXISTEM ETNOLOGIAS DEMONSTRANDO SUA FUNÇÃO SOCIAL E RITUAL. E o publicitário ri da campanha do governo: - VAMOS E VENHAMOS: IMAGEM DE CAVEIRA É PIADA. CONVENHAMOS: NADA DE ÓBITOS DECLARADOS DE ANTEMÃO.Quando tudo está terminado e todos querem ir embora, o advogado se levanta, abruptamente:- ATUALMENTE, FUMAR OU NÃO FUMAR TORNOU-SE UMA QUESTÃO DE DIREITO. SERÁ O TABACO ECOLOGICAMENTE IRRESPONSÁVEL? ESTARÃO OS CONSUMIDORES SENDO ENGANADOS?, inquire o advogado. De tanto trololó que não acaba nunca, o cameramen vê que já chegou ao fim seu horário de expediente. Acende seu cigarrinho para relaxar. O ex-tóxico-dependente, em pânico, corre para a janela e se pendura nas cortinas. O psicanalista, oportunamente, comenta:- A SUBSTÂNCIA DA QUAL O FUMADOR DEPENDE NÃO É NENHUMA OUTRA QUE NÃO O DESEJO. E NO DESEJO QUE NINGUÉM SE META. DESEJO É DE CADA UM E DE NENHUM DE NÓS. Alguém da seita se desenlaça dos seguranças. O popular,efetivamente um sociopata, indigna-se com o ato e o comentário. Ao vivo, pega a câmera e joga-a no chão. Pula para cima do psicanalista e aperta seu pescoço e esse fica esbaforido. A câmera pifa e solta a fumaça. Conclusão: NADA É MAIS SUBVERSIVO QUE O DESEJO. E O RESTO, QUE VIRE FUMAÇA.
O pornógrafo gay e realizador Bruce LaBruce não hesita na resposta e vai mais longe, diz mesmo «toda a pornografia gay actual é implicitamente fascista. O fascismo está nos nossos ossos, porque tudo se resume à glorificação da supremacia do homem branco e a fantasiar dominação, crueldade, poder e figuras autoritárias monstras.» Confesso que estas declarações muito me surpreenderam, considero-as não só homofóbicas, como ignorantes em relação à pornografia hetero.
Durante muito tempo foi quase consensual entre os movimentos feministas que a pornografia hetero consistia numa exploração da mulher, sendo apelidada de "ultra-machista". Mas o que é a porn? Arte,política, ou simples entretenimento?
Tudo é arte, ou passível de ser olhado como tal, e tudo é política e politizável, mas claramente o primeiro objectivo da pornografia é entreter. Aliás, excitar, estimular sexualmente, é usada pelas pessoas para alimentar a mente com fantasias ou tornar mais excitante um acto sexual simultâneo com o consumo da porn. A porn é até usada para produzir mais porn, são infindáveis os filmes com cenas em que os actores vêem porn, e é já um clássico o visionamento de porn hetero por actores hetero enquanto participam em filmes gay! - fuel for their erections.
Mas porque é então algo tão prazenteiro apelidado de fascista ou machista? Bruce LaBruce refere-se à "glorificação da supremacia do homem branco". Na porn como em Hollywood, a maioria dos actores são efectivamente brancos, e o racismo é efectivamente o culpado por esta situação, mas daí a considera-lo um mal exclusivo da porn vai um longo passo - infelizmente não o é. E o facto de os actores serem maioritariamente brancos não implica per se uma glorificação racial, por exemplo, na pornografia made in Czech Republic os actores serão quase que inevitavelmente brancos. Além disso Bruce revela uma visão muito redutora do mundo da porn gay, nem toda consiste na glorificação de homens hiper-masculinos e musculados, desde filmes sobre gang-raping de brancos por negros, a filmes sem qualquer tipo de violência, estilo "lar doce lar", desde actores hiper-masculinizados à porn she-male, o mundo da pornografia homossexual revela uma diversidade estonteante.
E estas críticas que Bruce faz à por gay fariam por ventura mais sentido em relação à porn hetero. Neste caso é mais fácil interpretar na porn uma glorificação do masculino à custa de uma subjugação do feminino, é este aliás o ponto de vista das feministas da velha guarda. Peguemos num exemplo clássico, a cena da ejaculação facial, tão comum no final de filmes hetero ou gay. Se interpretamos esta cena como uma subjugação d@ "ejaculad@" perante o "ejaculador", o machismo só estará implícito na versão hetero. Mas questionemos o princípio de que tal cena implica subjugação, porquê? Não haverá gente que goste de receber uma ejaculação na cara? Não poderá a dita ejaculação acontecer sobretudo por pressão de quem a recebe (I'm thinking on people like Tristan Paris)? Não será preconceituoso achar que determinadas posições sexuais são "dominadoras" e outras "subjugadoras"? Não será um turn-off tremendo politizar o que nos dá prazer na cama?
As pessoas constroem-se a cada instante. Cada um é um
somatório maior do que a soma de todas as partes,
porque o conjunto é uno. Há as razões antropológicas e
há a genética e há a Terra e os astros e tudo, tudo o
que nos rodeia. Há as pessoas que vimos, há aquelas
com quem falámos, há aquelas que sabemos como nos
marcaram e há aquelas que não sabemos porque nem
sequer nos lembramos delas. Por isso cada um de nós é
composto por um número incontável de acontecimentos de
probabilidade quase nula. Porque escolhemos aquele
café naquele dia do qual nos não lembramos e acabámos
por perder todas as outras possibilidades infinitas
para aquele dia. Porque lemos aquele livro naquela
altura triste e tudo voltou a fazer sentido. Porque o
agora é o resultado de um número de acontecimentos
demasiado grande para poder ser provável, nós não
somos possíveis para além da possibilidade de
existirmos. E a magia dessa possibilidade é
infindavelmente admirável. E é-o por ser a magia da
escolha e, com ela, a necessária consciencialização da
responsabilidade. Parafraseando Erica Jong "Take your
life in your own hands, and what happens? A terrible
thing: no one to blame."
Tudo isto para dizer que os pre-conceitos também
acabam por ser uma maneira de desresponsabilizar a
escolha. São-o quando se justifica com a religião ou
com a fé a cobardia da violência e crueldade (e o que
é a religião, senão um pré-conceito?) São-o quando,
ainda hoje, uma mulher não acede aos mesmos direitos
de um homem (senão, pense-se que, mesmo em termos
linguísticos, o feminismo não tem uma correspondência
ao machismo. Feminismo - sistema que preconiza a
igualdade de direitos entre a mulher e o homem;
Machismo - atitudes ou modos de macho; ideologia
segundo a qual o homem domina socialmente a mulher;
subalternização da mulher). São-o quando a
homossexualidade é vista como uma doença ou quando as
pessoas ainda acham que há raças...
Por isso tu...
"Homem sem deuses de desculpa,
estigmatizado sem ter culpa
não esqueças que não estás só
neste substrato existencialista!"
Já que está na moda discutir a entrada de «ismos» (anglicismos, francesismos e outros) na língua portuguesa, que tal discutir a palavra «gay»?
Os termos técnicos entram com alguma facilidade no quotidiano das pessoas e nos nossos dicionários. É apenas uma questão de tempo e veremos aportuguesadas palavras como «Internet» ou «Blog». O mesmo não acontece com termos que tentam categorizar o comportamento humano, como é o caso de «gay».
Se houvesse um sinónimo na língua portuguesa que a substituísse correctamente, talvez não fosse tão difícil perceber porque é que a palavra não sofreu ainda um processo de hegemonização (uso e reconhecimento geral da palavra) e, consequentemente, o seu aportuguesamento (guei?).
Poder-se-ia afirmar que «homossexual» seria a versão mais correcta, em português, do anglicismo em causa. Mas basta olhar para o nosso código penal ou perceber em que contextos ela é usada diariamente para daí concluirmos que não é de todo a sua tradução mais feliz.
«Gay» chegou a Portugal, no final do século XX, com todo um percurso feito, primeiro no universo linguístico/cultural anglo-saxónico, depois exportado, sobretudo para as comunidades LGBT de todo o mundo. A palavra que, na sua génese, significava «alegre, de bom-humor; vistoso» (Dicionário Inglês-Português, Porto-Editora, 1997, pág. 353), começou a ter, pelo menos desde o século XIX, uma conotação sexual enquanto sinónimo de «prostitutos e prostitutas, pela forma vistosa como se vestiam».
Acarinhada e «positivada» pela literatura, sofrida na pele de quem se propôs ser activista de minorias sexuais, «gay» conquistou, lá fora e durante mais de um século, a dimensão de «bandeira lexical», em paralelo à de tecido multicolor. Chegou-nos, a nós portugueses, isenta de cargas negativas, à prova, portanto, de insultos e ignorância.
Sintomático da reacção à sua entrada na língua portuguesa é o facto de «gay» ser traduzido no dicionário supra referido apenas no seu significado original, quando ele parece estar também perfeitamente consolidado na língua inglesa como sinónimo de homossexualidade (no seu sentido mais lato). Se os dicionários simbolizam uma cultura, os portugueses excluem, portanto, uma parte significativa da sua riqueza.
Ao não incluir «gay», nem que seja nos «léxicos estrangeiros utilizados na língua falada e escrita», será que estamos dispostos a empreender a luta pela «positivação» das nossas próprias palavras: «bicha», «fufa» e tantos outros termos, actualmente pouco afectuosos? Será que o activismo sexual, em Portugal, tem condições para o fazer? Será que uma sociedade que caminha para a cada vez maior desigualdade entre ricos e pobres, entre letrados e analfabetos... tem condições para o fazer?
Tenho as maiores dúvidas e suponho que a única forma de «gay» entrar no nosso dicionário/cultura será por decreto. Uma espécie de «léxico preventivo», que em vez de esperar por transformações sociais que dificilmente terão lugar, aguardaria silenciosamente, nas páginas de um dicionário, o melhor momento para se entranhar.
Fala-se muito nos factores sócio-culturais ou até aspectos genéticos no que respeita à temática homossexual. Desde adolescente que ouço falarem que é algo inato, adquirido ou até uma junção dos dois, mas a verdade é que nem mesmo os estudos mais recentes conseguiram até agora determinar a génese da homossexualidade com precisão. [A mim, pessoalmente, é algo que não me tira o sono...]
Desde as culturas da antiga Grécia até às comunidades árabes - muitas raparigas iniciam comportamentos homossexuais como forma de viverem uma sexualidade aberta sem perderem a virgindade - ou até mesmo nas prisões podemos encontrar comportamente culturais ou sociais mais ou menos aceites. Nestes casos a componente genética não é posta em causa. Para quê!?
Por outro lado, quando duas pessoas do mesmo sexo se sentem atraidas uma pela outra mas não são abrangidas pelas situações acima mencionadas, a componente genética é posta em relevo. Num universo vasto de homens e mulheres em que um homem escolhe outro homem e uma mulher outra mulher não pode ser algo natural no sentido normativo. dEus A norma diz que heterossexual é o normal.
Nesse contexto diria que o heterossexualidade além de ter uma forte componente genética ? E isso é indiscutível! ? tem também uma forte componente sócio-cultural. Ninguem nasce e é educado desde muito pequeno para ser homossexual, mas todos nascemos e somos educados para a heterossexualidade!
Todos os heterossexuais independentemente da maioria se sentir atraida pelo sexo oposto, são-no porque foram educados para tal. Além da componente genética predominante para a heterossexualidade não seria muito mais justo dar relevo a uma possível homo/ bissexualidade desde o nascimento da criança, e não vendar-lhe a priori outras possibilidades além da "norma"?
O nome das ilhas Andaman ecoa na memória de qualquer pessoa formada am antropologia. Foi lá que um dos fundadores da antropologia social britânica, Radcliffe-Brown, realizou a pesquisa que o levou a escrever The Andaman Islanders (1922). (Aqui um relato mais próximo de nós no tempo).
As Andaman (e Nicobar) aparecem agora nas notícias (se bem que ofuscadas por locais mais conhecidos) "graças" ao tsunami: calcula-se 7000 mortos pelo menos, numa população de 370.000. Muito provavelmente o número de vítimas será maior. Só numa das ilhas calcula-se que 20% da população tenha morrido.
Um nome exótico, uma referência académica poeirenta, tornam-se de repente assustadoramente reais. Não é uma simples tragédia. Em demografias e geografias (centenas de pequenas ilhas e atóis) como esta, pode ser o fim da História.
Um dia destes acordei farto de saltar entre blogs e sites, jornais e tvs, cds e dvs.
Farto de cumprir horários, de trocar lugares-comuns com colegas e amigos, de tanto tempo perdido a consumir palavras, imagens e paciência. Farto.
Saí de casa. Ao fim de alguns passos já arrastava o corpo pelas paredes ou desatava aos pontapés aos cães, aos carros e às casas.
Agredia aqui uma pessoa, mais além sacava a outra um daqueles beijos que esmagam os lábios e deixam a língua dorida quase com pena de não ter sido arrancada.
Sem palavras. Só os olhos ardiam.
Deve ter sido dessa maneira que, a certo ponto, deixei cinco ou seis pessoas a trocarem de corpos e a conhecerem-se através da pele.
Fui preso, é claro.
Estou aqui a escrever isto porque sou sobrinho do xerife.
Enfim, o tempo é já presente.
Volto para casa, olho para as paredes e saio de casa.
A vizinha do lado dispara-me um olhar assassino. Nos passeios as gentes esbarram em mim e dão-me a sentir ombros e cotovelos...
... corro até à ponte... os paralelos são frios... mas não... ainda não.
Atravesso o rio e chego a um campo.
Respiro. Deito-me nas ervas. Espreguiço-me.
Uma lebre aproxima-se. Um caracol também. Ao longe vem um grilo aos pinchos.
Mais rápida do que eles, uma vaca lambe-me, hesita e coME-ME.
Uma pessoa acorda e lê isto. Custa acordar para o dia com as fervorosas declarações de amor da deputada do partido da gestão. O problema começa por ser estético (pois julgávamos já não haver poesia assim, com a excepção do poeta clínico e cronista do Público, Pedro Strecht, claro), mas rapidamente se torna político. E como a função de um blog também é contextualizar o que os jornais não contextualizam, convém dizer o seguinte: Isilda Pegado é a deputada que fez a declaração de voto na AR em nome de um minúsculo grupo de deputados que se pronunciaram contra a alteração do artigo 13 da Constituição. O imensamente oferecido amor da natalícia deputada Pegado não abrange a protecção dos direitos dos homossexuais. O amor despegado desta carta escrita num registo entre a produção Disney e a reunião de catequistas num vale profundo e húmido da Ibéria, é como o amor por um animal doméstico: "senta!", "deita!", "cala-te!" Ou como a estranha forma de amor da ortodoxia da ICAR: "Amo-te, ouviste!? (e entre dentes: "maldito pecador...!").
Só nos resta amar loucamente esta gente nas urnas.
Exercício linguístico absolutamente fútil numa manhã de domingo.
«Por isso, só os que navegam no Português língua abastardada.com preferem o "blog" ou o "bloger" ao blogue ou ao bloguista, e por aí adiante.» (Edite Prada e José Mário Costa). Bom, não percebo porque se há-de "gastar" um "u" e um "e" ("blogue") para obter o mesmo efeito que "blog". Purismo por purismo, então traduza-se "blogue". Ora bem: "blog" é a contracção de web e log. Web quer dizer "teia" ou "trama". Log quer dizer "diário de bordo" (como nos navios). A contracção de "teia" e "diário" seria "tiário". Ou seja: a tradução "hipercorrecta" de "blog"- tiário - significaria qualquer coisa como "diário da tia". Humm...
É natal, é natal! ho ho ho! Jesus nasceu and all that. O Natal tem tido um entendimento oficial baseado nos ensinamentos do Cristianismo, esse sistema sócio-político-económico (e às vezes religioso) que conseguiu reinventar a história do ocidente, alterando até o calendário e o modo de contar a história (antes de Cristo e depois de Cristo). A hegemonia deste modo de pensar o mundo espalhou-se a todo globo, e mesmo os que mantêm calendários e divisões do tempo próprias, acabam por ter também que conhecer esta. Que é baseada num suposto Deus que encarnou entre as pessoas (neste sistema patriarcal, habitualmente designadas pelos Homens).
Ora o Natal, é pois outro fénomeno, que se globalizou, celebrando supostamente este nascimento. Contudo este fenómeno de globalização, que permitiu que o natal se celebrasse um pouco por toda a parte, permitiu também a difusão de outras ideias, que poderíamos designar de ateísmos e de agnosticismos, assentes no mínimo na dúvida e chegando à total negação da(s) divindade(s), das quais encontramos traços até na filosofia grega. Com o iluminismo e a tendência crescente para retirar a divindade do centro da história, essas ideias começam a consolidar-se, nomeadamente na crítica materialista ao racionalismo alemão. Para a minha descrença (defini-me como descrente, mais do que ateu ou agnóstico), Marx e Nietzsche foram fulcrais. Marx, pelo modo como reitera o primado de explicações não assentes na razão ou na evolução do espírito para explicar a história e pela demonstração da alienação pela religião. Nietszche pela visão da morte de deus. Ou seja mesmo que tivesse existido algum ser dotado de tudo o que se lhe dizia, deus já teria sido destronado e morto.
Com a tentativa de universalizar o natal, ainda que revestido de significados inesperados, por via da localização cultural, chegámos então à situação de termos descrentes rodeados de natal. Sem acreditarem que nada de especial se passou nesse dia, aproveitando o feriado que se institucionalizou.
Esta falta de coerência entre a cultura marcada pela matriz cristã e as nossas próprias ideias, necessita pois de ser entendida, através da maneira como lidamos com a contradição. Pensando um pouco sobre o assunto, lembro-me de 4 estratégias possíveis para lidar com esta contradição:
-Rejeitar liminarmente qualquer participação em celebrações natalícias e sermos vistos pelos outros como antisociais.com.
-Participar de modo crítico, evitando referências à palavra natal, jesus, vacas, presépio, virgens...
-Participar totalmente, pelo lado capitalista da coisa. Dar prendas, estar na ceia com a família, ir ao shopping enfrentar filas enormes, em nome da reunião familiar
-Ignorar as nossas crenças ateístas ou agnósticas, e fazer árvores de natal, presépios, ver os filmes de natal e se for preciso até assistir à missa do galo.
Há pois vários modos de lidar com a contradição. Ela não tem que ser lida de modo único, nem de maneira exclusiva. Apesar de para muitos, poderem existir normas, somos perfeitamente capazes de as mudar de modo criativo, agindo autonomamente. É que mesmo as normas podem ser sujeitas a uma nova significação e mudando o significado, podemos agir criativamente sobre essas normas. Em relação à norma nataleira, mesmo os descrentes poderão usar estratégias criativas sobre os tempos de natal. Nem que seja, desejando um bom jantar junto das pessoas de quem se gosta.
Independentemente do que se ache sobre o assunto, a verdade é que, no Ocidente, a maioria das pessoas vive o Natal com determinadas expectativas em torno da família, do bem-estar, da reciprocidade, etc. Não importa de onde vem ou para que serve esse sentimento: as pessoas têm-no e sofrem quando as condições não são propícias. Daí que não haja Natal sem referência aos que não podem usufruir do Natal: pobres, excluídos, pessoas sós, famílias em conflito...
Mas nunca ouvi, entre nós, o rol incluir os milhares e milhares de gays e lésbicas de um país largamente armariado. A verdade é que há-de haver por aí muitas histórias de casais - namorados ou unidos de facto - separados durante o Natal devido ao armário familiar ou a homofobias mais ou menos explícitas. Que seja utópico convidar um grupo de sem-abrigo para uma ceia de Natal numa casa burguesa ainda é compreensível, pois ninguém é obrigado à crença na caridade ou ao seu exercício. Mas que seja aceite, sem hesitação, manter à distância o namorado ou a namorada dum familiar próximo (quando todos os outros casais na família estão presentes por inerência) - eis algo que faria corar de vergonha as figuras mitológicas de pais natais e meninos jesuses se aparecessem a verificar como vão as coisas...
«Curiosamente, mesmo o BE nunca sentiu necessidade de incluir nas suas listas em lugar elegível nenhum militante homossexual assumido.» (São José Almeida, Público)
Eu estava para entrar no Parlamento, através do sistema de rotatividade do Bloco, no momento em que a AR foi dissolvida com a desistência de Guterres. A partir daí, mas por razões maiores do que a estrita política, eu próprio me fui afastando de lugares de maior responsabilidade no BE e do activismo mais intenso - e, portanto, da "autoridade moral" de "lutar por" ou aceitar um lugar mais "cimeiro" nas listas.
De qualquer modo, não é como se houvesse muitos homossexuais assumidos na política portuguesa... e os poucos que há estão num partido que elege pouca gente.
«5. Perante as declarações de Paulo Portas de que, perante a vitória anunciada do PS, procuraria em todo o caso fazer um governo PSD-PP, o Bloco veio desvalorizar esta maquinação e indicar que nunca se juntaria aos votos da direita para favorecer, através da rejeição imediata do programa de um governo que acabou de ser eleito depois de três anos da direita no poder, um novo governo da direita ou novas eleições de imediato. Essas seriam as consequências do chumbo do governo nas suas primeiras semanas e o Bloco não aceita nem uma nem outra. Mas fica igualmente claro que o Bloco nunca aprovará orçamentos ou leis com as quais não concorde e que não dêm resposta aos problemas imediatos do país.» (todo o texto aqui)
Perante os dois textos, o de São José Almeida e o da CP (escrito antes), prefiro ler os comentários das visitas a este blog.
Esta é a altura do ano em que nas lojas, perante presentes "neutros" (discos, livros, jogos...) nos perguntam se é para rapaz ou rapariga, de modo a "acertar" na cor dos laços. Cá por casa respondemos invariavelmente que "tanto faz" ou "isso não importa", suscitando autênticos curtocircuitos mentais n@snoss@s lojistas.
Muitos pais entram em pânico se vêem o filho preferindo uma boneca. Já não entram propriamente em pânico se vêem a filha escolhendo um carrinho. A razão é simples: a estrutura da masculinidade, ocupando ainda o centro hegemónico, precisa de ser cuidadosamente construída e vigiada. E é feita de negatividades: não ser menina, e não ser menina simbólica, i.e., homossexual. Como uma espécie de reis sagrados, os rapazes não podem ser "poluídos" pela proximidade ou presença de elementos contaminantes. Já as raparigas podem, na crença de que a sua "natureza" feminina é tão determinante (elas estão mais próximas da "animalidade") que mais tarde ou mais cedo se imporá.
Curioso é que muitos destes pais não percebam que são eles - com a preciosa ajuda dos sistemas educativos e de consumo - que estão a fazer dos seus rapazes rapazes. Num primeiro nível, partilham da crença do determinismo natural do género; depois dedicam-se ansiosamente a construir e vigiar a masculinidade dos seus rapazes; e num terceiro momento dizem que, independentemente das suas acções, os filhos rapazes são muito rapazes ("eu nunca dei uma educação machista, mas ele só gosta de correr e de coisas violentas..." - not: lembrem-se dos vossos rapazes aos dois ou três anos...), confirmando assim a crença no determinismo. Quanto a aperceberem-se do óbvio paradoxo, nada.
Isto acontece em grande medida porque aquilo que os pais estão a fazer na construção e vigilância dos seus rapazes é, por um lado, habitual e, por outro, uma projecção das suas próprias ansiedades, uma forma de confirmarem que o que lhes aconteceu, nas suas infâncias, tinha que acontecer.
PS: post inspirado pelas perguntas da jornalista, e amiga, Fernanda Câncio, que está a escrever um artigo sobre o assunto.
«Acaba com ... Santana, primeiro-ministro e líder do PSD a prometer "dar quatro anos a Portugal de mais progresso, mais rectidão, mais seriedade, mais justiça, sempre muito amor a Portugal". É assim o tempo de antena do PSD que vai hoje para o ar...»
Pela modesta parte que toca a minha unidade doméstica ainda não recebemos um tostão de devolução do IRS. Porquê? Porque quem faz donativos a associações de solidariedade ainda tem que ir à procura de documentos que provem que estas são isentas de IRC! E tal informação só se obtem falando com um funcionário (claro que não por telefone...) quando se começa a estranhar o atraso... Uma coisa é certa em Portugal: deve haver um artigo na Constituição que diz que ninguém pode morrer de tédio e que todos os cidadãos têm direito a uma vida cheia de peripécias...
Mais cansado, mais velho, mais pobre, mais burro, mais cínico, mais farto, mais ateu, mais comuna, mais zombie, mais TVI, mais paranóico, mais aflitoprafazerchichi, mais mauzinho, mais antiglobalizaçãocapitalistaneoliberal, mais desesperado por um whiskey (com e, porque o irlandês é que é). Em suma: regressado das compras, escapado por uma unha (perdão, garra) negra de Santa Claws.
Estou a preparar-me mentalmente para as compras de Natal. Para a lógica primitiva da dádiva e contra-dádiva. Para a obediência à reciprocidade. Para a espiral do grande potlatch. Para a substituição da relação pela mercadorização. Para que depois a coisa até dê algum prazer, preciso primeiro de me equipar com algum cinismo propedêutico (?!). No meanwhile, alguns cartões de anti-Natal:
PS: Para mais recursos anti-Xmas, ir aqui.
PPS: E pensando no blog involuntariamente mais natalício...:
Esta história pessoal vale pelo que vale e por ser absolutamente apenas isso: uma história pessoal. Há com certeza queer theories e outras, antropológicas, de cultural studies, cientistas sociais que se devem ter dedicado a isto, etc., mas eu, muito sinceramente, não sei e não posso falar disso. Trabalho/investigo na área dos estudos de cultura e comunicação e questões de identidade são lá centrais, mas por mim falo de identidades em permanente (co-)construção e reformulação, border zones e frontiers, spaces in-between e nada afirmo definitivo. Não vou ter pretensões académicas/científicas, só mesmo o que de definitivo me é pensar-me agora, hoje, aqui. Uma história muito pessoal e ao sabor do que sinto ("o que em mim sente está pensando"). E aqui vai.
Ser gay, para mim, é ser absoluto e perfeito. OK, não é uma apologia, não é nada a não ser eu senti-lo assim mesmo: uma relação de perfeição entre dois seres humanos. A relação de espelho em que com o outro eu me conheço a mim mesmo. Do outro lado do espelho não sou quem está ? facto. Ao meu lado, à minha frente, dentro de mim, vive outro homem que sendo homem como eu sou não sou eu mas é o mesmo corpo e sentir de homem que eu sou. Não quer isto dizer que eu 'use' o outro para me conhecer a mim, mas que a possibilidade de me conhecer no outro lado do espelho se concretiza por alguém que não tendo as minhas mãos sabe onde a minha pele quer ser explorada. Os mesmos líquidos, saliva, suor, sémen, sangue, têm os mesmos sentidos e juntos somos assim, ainda que dois, um.
Não sei explicar isto muito bem. Não é uma razão para eu ser gay, não pensei isto para 'decidir' sê-lo, mas a complementaridade homem-mulher parece-me mais sexual e culturalmente determinada do que a de duas pessoas do mesmo sexo, de onde a primeira poderia ser considerada procriativa e a segunda criativa. E a verdade é que o prazer e sentidos sensuais e sexuais podem perfeitamente ser retirados da relação de procriação, mas o acto criativo que me institui e ao outro igual a mim, e outros de si e de mim mesmos, é completo, perfeito, e, logo, de um prazer ontológico que se funda em actos sensoriais, sensuais, sexuais.
Complicado? Parece-me tão natural, tão simples. De resto, há sempre o que a Yourcenar disse de Zenão n'A Obra ao Negro: "Talvez, também, opções dessas estivessem ligadas a apetências tão simples e inexplicáveis como as que se têm por um fruto e não por outro: pouco lhe importava". A mim pouco me importa também. Eu e o A. somos muito felizes.
Entrevista a Frederico Lourenço na Pública, (ou de como é saboroso uma pessoa não se sentir só...).
«P - O antropólogo Miguel Vale de Almeida, um activista da causa, considera que uma das razões que levam Portugal a ser diferente de Espanha quanto aos direitos dos homossexuais é não haver muitas figuras públicas capazes de assumirem a sua homossexualidade. Esta é uma batalha sua? Tendo em conta que já falou publicamente no dever de lutar contra os preconceitos...
R - Sinto que tenho algum papel a desempenhar. Este livro ["Amar Não Acaba"] também é a consequência de cartas e mails que recebo de muitos sítios em Portugal, de pessoas a acharem que eu as tinha ajudado imenso, porque onde viviam, em Portalegre ou em Miranda do Douro, era uma coisa muito restrita, e ver uma pessoa com um aspecto vagamente normal, que fala disso, pareceu ajudá-las. Se ajudar pessoas mais jovens a ter uma relação menos complicada com a sua sexualidade, isso é bom.
P - Mas partilha da visão crítica...
R - Dessa, do Miguel Vale de Almeida, não. Por muito que o admire.
P - Porque é que há tão pouca gente a dar a cara?
R - Vasco Pulido Valente respondeu a isso no PÚBLICO há dias quando disse que Portugal passou de um país rural a um país da União Europeia em que as pessoas podem ter grandes carros e casas, mas no fundo são as mesmas, com as mesmas mentalidades.
É preciso esperar uns anos. Espanha não é um país tão rural, basta ver as grandes cidades, nesse aspecto, é mais parecido com a Alemanha. É um país com uma enorme burguesia culta. Não temos cidades como Valência, Murcia, Barcelona, Sevilha, San Sebastian, Santiago... cidades de alternativa a Madrid. Portanto, é natural e compreensível. Não me insurjo contra isso, não vou conquistar essas pessoas, não é pelo Miguel Vale de Almeida ou eu ou dezenas de pessoas assumirem a sua sexualidade que isso irá ter influência. Terá muito mais o facto de as pessoas se educarem, terem mais cultura.» (ler o resto).
«Fraga aclara que hablaba de "anomalías biológicas" al referirse a la homosexualidad. El presidente de la Xunta, Manuel Fraga, puntualizó hoy que cuando definió la homosexualidad como una "anomalía" se refería a las "anomalías biológicas" que conlleva esta orientación sexual e insistió en su rechazo al matrimonio gay. En la rueda de prensa posterior al Consello de la Xunta, Fraga señaló que él "solamente" se pronunció en los mismos términos que su Santidad el Papa, la persona por la que dijo sentir "más respeto en el mundo". Así, explicó que, como Juan Pablo II, entiende que "el matrimonio es cosa entre hombre y mujer y para que las madres puedan ser madres".
"Creo que hay explicaciones naturales, pero no es la solución el matrimonio, son otras", aseveró. A la par, expresó nuevamente su rechazo por la "persecución" que en su día sufrieron los homosexuales.» (Europa Press).
Desde logo, duas importantes razões para ver este filme: lida com a memória colonial (e sobretudo a da guerra colonial); e assenta num olhar feminino, algo raro no cinema. Mas há mais: guarda-roupa, décor, reconstituição da época, música. E o realismo (terrível, mas... realista) de assumir o olhar seleccionado dos brancos (das brancas...) que "foram parar" a Moçambique - especialmente na quase invisibilização dos negros como sujeitos, espécie de "sombras", como diz uma personagem; ou na "descoberta" dos maridos como pessoas-outras daquelas que conheceram nos cafés de Lisboa. A personagem que refere a sua criada como "uma sombra" é, aliás, como que um retrato - cru e sem caricatura - de uma época; em termos de psicologia, relações de género, classe, "raça" e contexto político. Mónica Calle é excelente a representá-la - densa, pesada, complexa. Surpreendente.
PS. Agora: Costa dos murmúrios indeed... Eu esforço-me, mas nunca percebo metade do que se diz nos filmes portugueses! E por acaso até é a minha língua m/paterna...
António Mexia e o Metro anunciam uma Linha das Colinas. Para depois de 2010. Procurando mais informação, descobre-se que «No entanto, para a nova linha ainda só existe "um estudo muito prévio da situação", sendo preciso todo um conjunto de circunstâncias que permitam torná-la uma realidade.» Porquê, então, este anúncio ontem? Pela mesma razão que Nobre Guedes inaugura não sei o quê, dizendo ter feito mais que Sócrates e pela mesma razão que P. Portas aparenta a maior das bonomias numa entrevista na TV: as pessoas têm a memória curta e dois meses é muito tempo. Vamos ser massacrados por esta gente cuja grande iniciativa governamental foi distribuir secretarias de Estado pelo país fora (lembram-se?).
Num episódio da série "Queer As Folk" uma das personagens afirma "depois de tanto tempo a esconder a minha homossexualidade, mentir torna-se um hábito, é natural". A expressão inglesa é mais feliz "It becomes second nature". Nos tempos que correm, urge lutar contra esta atitude, trepadeira que vai crescendo, tapando e asfixiando aqueles que se deparam com uma orientação sexual diferente. Todos sabemos que a melhor forma de evitar e eliminar este problema é fazendo uma "saída do armário" integral. Podemos até vir a ser activistas fervorosos e uma daquelas pessoas cujo esforço se traduz em benefícios para muitos. Infelizmente, este é quase sempre um caminho doloroso e traumático. A meu ver, parece óbvio que sem pessoas desta estirpe ficaríamos presos no limbo do preconceito. Por outro lado, ninguém é obrigado a tornar-se um mártir à custa de um preconceito exógeno.
A escolha dos nossos caminhos é complexa e pode ser expressa de muitas formas. O mais importante é que façamos uma, recusando a injustiça e o preconceito e lutando, com as armas que quisermos, contra eles. Por tudo isso, um "gay" pode ser tudo menos alheado política e socialmente. Não se comprometer é sofrer duplamente. Para além de ter que viver os problemas, torna-se impotente para os resolver. O nosso interesse e participação na vida política são vitais. A sociedade demora a mudar, mas a política, quando bem feita, acelera a sua evolução (veja-se a história da luta GLBT na Inglaterra). Será que nós sabemos em quem votamos? (Se é que o fazemos). O que é que governantes e líderes políticos pensam sobre os nossos direitos? Quais os seus projectos? Penalizamos aqueles que promovem ou toleram a homofobia e a exclusão? Socialmente, há muitas maneiras de combater a homofobia e espalhar a tolerância. Alguns podem fazê-lo através do trabalho, particularmente aqueles que lidam com pessoas. Mesmo no anonimato é possível, por exemplo com os cada vez mais numerosos "blogs". É vital transmitir a outros homossexuais (ou não) o caminho percorrido. Se conseguirmos que a luta de outros já não comece do zero, já é um grande feito (paradigmaticamente, não é comum que uma das primeiras grandes experiências de um jovem homossexual seja "descobrir" que há outros iguais a si?).
Estou convicto que, muito ou pouco, cada um de nós pode fazer algo para melhorar as nossas vidas e a dos outros, mais que não seja pressionando para o lado correcto. Por mais alheados e conformados que estejamos, é sempre boa hora para começar, nem que seja pelo mais ínfimo dos gestos. Altura de perguntar, "e eu, que estou a fazer?"
Os mapas são representações. Têm um ponto de vista e não são totalmente neutros. O exemplo mais comum é o do planisfério em que a Euro-América fica em cima e no centro. O mapa publicado hoje no Público (originalmente surgiu no Le Monde e não está disponível online) é revelador do fantasma turco. Categorias incomparáveis, como "países da UE" (política) e "Povo Turco" (linguística - e em rigor deveria ser "povos turcófonos") são postas lado a lado. O efeito é achar-se que há um gigante à espera de invadir. Sobretudo quando o mapa acrescenta uma outra informação, a do número de imigrantes turcos, representados com a mesma cor que no mapa linguístico.
Pelo que fui encontrando, suspeito que a frase quer dizer algo como "chegou a hora", "está na hora" ("já não era sem tempo?"). Alguém sabe turco por aí?
Excelente e aprofundado trabalho (mais de 600 pp!) que, lido por um português, ajuda a descobrir toda a espécie de paralelismos e diferenças. Entre nós, para além da tese de mestrado de Octávio Gameiro (ICS-UL) e da exposição itinerante "Olhares sobre a Homossexualidade" (que faz uma resumida história do movimento), não há uma história equivalente. E que identidade (melhor, para não ferir susceptibilidades: identificação) se aguenta sem uma história? Sobretudo quando cada geração nova entra na identificação lgbt como se fosse a primeira a fazê-lo (já que, ao contrário de grupos étnicos, não somos um grupo assente na reprodução)?
No fundo os psiquiatras da Ordem dos Médicos vêm dizer - graças a uma argumentação com perverso requinte científico - que em Portugal a lei do aborto está bem e que em Espanha a sua interpretação é abusiva. E que, como uma mulher não fica irremediavelmente taralhoca só por engravidar contra a sua vontade (como poderia ficar?! Então o destino das mulheres não é a reprodução?!), a parte "psíquica" prevista na Lei não deve ser invocada para a realização de abortos.
«Segundo o bastonário, os especialistas da Ordem apontam o caso espanhol como "uma prática negligente e abusiva da lei", afirmando que em Espanha é-se "mais permissivo, mas tal acontece mais por motivos sociais"; em Portugal os "critérios são científicos".»
É claro. Deve ser pela mesma razão que algumas faculdades portuguesas dificultam o reconhecimento de graus obtidos em instituições estrangeiras duvidosas, como Oxford ou Harvard. É que cá é que somos "científicos". Só os paranóicos é que acham tratar-se de corporativismo paroquial.
"Depois da declaração conjunta de Pedro Santana Lopes, do PSD, e de Paulo Portas, do CDS/PP, Sócrates afirmou que para esses partidos «o que é verdade num dia deixa de o ser no dia seguinte. O folhetim termina não em casamento mas numa união de facto»." (no DN)
Com esta imagem, ficamos a saber que Sócrates acha que a união de facto é um casamento de segunda. Ficamos esclarecidos.
Stanley Kurtz é doutorado em antropologia. Trabalha na Hoover Institution da Universidade de Stanford. Tropecei no nome dele numa revista profissional, onde se referia que a declaração a favor dos casamentos homossexuais feita pela Associação Antropológica Americana tinha vindo contrariar as afirmações de Kurtz, contra os casamentos, na Comissão de Justiça do Senado dos EUA. Diz ele:
«There is good reason to believe that same-sex marriage, and marriage-like same-sex registered partnerships, are both an effect and a reinforcing cause of this Scandinavian trend toward unmarried parenthood. The increasing cultural separation between the ideas of marriage and parenthood makes same-sex marriage more conceivable. Once marriage is separated from the idea of parenthood, there seems little reason to deny marriage, or marriage-like partnerships, to same-sex couples. By the same token, once marriage (or a status close to marriage) has been redefined to include same-sex couples, the symbolic separation between marriage and parenthood is confirmed, locked-in, and reinforced». Até aqui, quase parece uma constatação. Mas o statement termina assim:
«In short, since the adoption of same-sex registered partnerships?and of full, formal same-sex marriage?marriage has declined substantially in both Scandinavia and the Netherlands. In the districts of Scandinavia most accepting of same-sex marriage, marriage itself has almost entirely disappeared. I have shown that same-sex marriage contributed significantly to this pattern of marital decline. The social harm in all this is the damage to children. Children will suffer greatly if the Scandinavian pattern takes hold, because the concomitant of the Scandinavian pattern is a rising tide of family dissolution. And a further decline of marriage and family is sure to bring calls for a major expansion of the welfare state. For all these reasons, steps to block same-sex marriage should be taken». (sublinhado meu)
Fascinado por este meu colega cuja pesquisa se baseia na análise de números sobre a Escandinávia e a Holanda, fui procurar mais. E encontro-o noutra área das "guerras culturais". Após a morte de Edward Said, vai ao Congresso dos EUA denunciar o trabalho deste intelectual: «... [Dr Stanley Kurz of the Hoover Institute...] claims that the presence of "post-colonial theory" in academic circles has produced professors who refuse to support or instruct students interested in joining the State Department or American intelligence agencies». (aqui)
Não só ensino teoria pós-colonial como admiro Said. Cada um tem o seu gosto, como é evidente. Mas ir ao Senado denunciar como perniciosas as ideias de alguém não é bem o mesmo que fazer um post sobre Kurtz. Dizia ele ao Senado:
«The ruling intellectual paradigm in academic area studies (especially Middle Eastern Studies) is called "post-colonial theory." Post-colonial theory was founded by Columbia University professor of comparative literature, Edward Said. Said gained fame in 1978, with the publication of his book, Orientalism. In that book, Said equated professors who support American foreign policy with the 19th century European intellectuals who propped up racist colonial empires. The core premise of post-colonial theory is that it is immoral for a scholar to put his knowledge of foreign languages and cultures at the service of American power». (o statement está aqui)
Zapando pela BBC-World. Vários laureados Nobel discutem à volta duma mesa. Seis homens e uma mulher. Das áreas da física, química, medicina e economia. Discutem o futuro, em função da possibilidade de aumentar a longevidade humana. Às tantas são confrontados com a inevitável questão das consequências sociais de vidas humanas de mais de 200 anos. Começa então o disparate. A ignorância sociológica, antropológica e histórica dos laureados era absolutamente patética. Mas nunca um deles, ou o entrevistador, referiram que esse era um assunto para outros especialistas, de outras disciplinas. O que ali sucedeu - e sucede muito na vida normal, nos governos, nos media, etc - foi um exemplo da hierarquia de poder e prestígio entre as ciências. É mais ou menos assim: os cientistas sociais acham que podem falar sobre questões artísticas e das humanidades porque as acham meramente especulativas; dentro das ciências sociais, os sociólogos (porque mais relacionados com o(s) poder(es) através da "aplicabilidade do conhecimento") acham que a antropologia é uma sub-disciplina de cujos assuntos eles podem facilmente dar conta; os cientistas "duros" (incluíndo a técnica chamada medicina...)acham que as ciências sociais, incluindo a sociologia, não são ciências. E voltamos assim ao início do post: um grupo de laureados "duros" acha que pode falar sobre sociedade, escorregando em grossas cascas de banana...
Nada disto impede que toda a gente possa (e deva) falar de tudo. Essa é uma condição da democracia. E bom seria que a literacia científica fosse maior, para que uma melhor cidadania fosse possível. A questão é que devemos mitigar os efeitos das hegemonias provisórias de certos campos do conhecimento ou de certas áreas profissionais. Em tempos, entre nós, os advogados falavam de tudo; hoje, são os economistas a fazê-lo. E amanhã, quem ditará/dirá disparates sobre o que não sabe? Espero que não os antropólogos (não com certeza, que a "coisa" não dá dinheiro...)
Há séculos atrás, o centro gravitacional das civilizações mais complexas estava no Mediterrâneo e no que hoje se designa por Médio Oriente (incluindo a Turquia, onde grande parte do cristianismo se desenvolveu...). Depois chegaram os "bárbaros", essa gente vista como ignara, vinda do Leste e do Norte (os do Oeste, incluindo a Ibéria, eram tão "bárbaros" que nem sequer se atreviam a invadir o centro...). Hoje, os que foram chamados de bárbaros consideram-se civilizados e chamam bárbaros aos que se consideravam civilizados.... É por isso que as conversas sobre a Turquia, a Ucrânia, ou os imigrantes muçulmanos precisam de enormes filtros, para reter o calcário da falta de memória de quem vive umas míseras sete ou oito dezenas de anos...
Ouvi na rádio, já não sei em que contexto, Pacheco Pereira dizendo que não há identidade europeia pois ninguém está disposto a morrer pela Europa. É claro que ele não acha que morrer por um país seja bom. A mim nem me ocorre tal coisa como uma possibilidade a considerar. Nem a muita gente - e a cada vez menos gente (chama-se a isso progresso....). Poderá ter havido um tempo em que isso acontecia a muita gente. E haverá sempre gente disposta a morrer por algo. A questão não é, pois, a "perda de valores nacionais". mas sim uma redefinição (ou, melhor, reassignação) de valores. Por exemplo, estar disposto a morrer pela liberdade, face a uma situação de ditadura, mas não estar disposto a morrer pela "Nação" - ou pelo Benfica.
A importância atribuída ao nacionalismo como valor identitário central joga muito com as emoções do parentesco e do tribalismo (de qualquer modo, níveis diferentes da mesma coisa). Quando se diz que a Europa é apenas um projecto e não uma realidade identitária, parece que se está a falar de algo negativo, de falhado. Tenho justamente a opinião contrária: o que há de bom no projecto europeu (pelo menos naquele que defendo, mais social e mais democrático do que o que actual Comissão defende) é precisamente definir-se não como realidade de emoções identitárias, mas como projecto de valores sociais e políticos. Pela primeira vez na História há um projecto político que se apresenta como alternativo às duas outras modalidades: a das alianças estratégicas e a das identidades nacionais. Que os checos torçam pela Chéquia e os tugas torçam pela Portúguia, é algo que é difícil de mudar e não faz dano justamente se, a um nível mais abrangente, houver um projecto civilizacional de paz como é - ou, insisto, devia ser - o europeu.
PS: Decorre no R'n'V um interessante debate sobre nacionalismo, Portugal, etc... Não foi o O'Neill que falou no Portugalete, de que o Portugalito do João O. é reminiscente? Aceitam-se esclarecimentos.
Está-se sempre a aprender. No jantar da blogayesfera deu-me imenso prazer perceber - nem que fosse só pelos sinais exteriores - a enorme diversidade da blogayesfera: estilos de vida, gostos, profissões e, sobretudo, idades. Inseri os links para todos os blogs que me faltavam e que fiquei a conhecer agora. Se fiz algum erro de colocação (por terem ficado fora - ou dentro... - da categoria "blogayesfera"), avisem-me: apenas segui o critério de analisar os conteúdos. Foi bom estar com aquela amostra da gay city of Lesboa.
Finalmente o "debate sobre a língua" conta com um artigo que subscrevo:
«Aceitar a crioulização do português como um enriquecimento não é incompatível com a defesa da norma e essa dialéctica é conjugável com sociedade da informação. Viva o português língua crioula.com!» (ler todo aqui, por Isabel Pires de Lima)
Por estranho que pareça, gostei do discurso de Sampaio. A linguagem foi política e não notarial. Marcou bem as razões: a perda de credibilidade do governo devido a uma sucessão de episódios desprestigiantes; a criação de instabilidade; a normalidade de convocar eleições em democracia e a legitimação que elas permitem ao governo que delas saia; e ainda adveritu para a situação de limitação política em que o actual governo vai estar durante dois meses (marcano, ainda, que vigiará a sua actuação). Hoje falou claramente (e disse-o, com a designação "consciência colectiva") em nome da maioria do país.
Dias Loureiro confidenciou que Santana Lopes lhe disse, há tempos, que "eles [isto somos nós, claro...] não me vão perdoar por estar aqui sem ter sido eleito" (mais ou menos isto). Pois não. Não perdoaram. Não perdoámos. E a 20 de Fevereiro isso vai ficar claro.
Admito que este blog (e eu) tenha vindo a tornar-se mais anticlerical. Talvez seja interessante partilhar o percurso. Durante muito tempo não só não me ocupei muito (mentalmente) com "a questão religiosa", como até não simpatizava quer com o anticlericalismo quer com o ateísmo militante de muitos dos meus compagnons de route. Por um lado, um certo snobismo levava-me a achar a atitude demasiado "típica" duma certa esquerda. Por outro, parecia-me uma questão antiga, semelhante, no meu imaginário, à questão da República versus Monarquia. Big mistake - já direi porquê.
Há uma razão biográfica para isso. Não fui criado como católico (nem sequer como cristão), mas tão-pouco fui criado num ambiente anticlerical ou militantemente agnóstico ou ateísta. A coisa simplesmente passou-me ao lado, numa família profundamente des-religiosizada (perdoem o neologismo, mas é o que me parece descrever melhor a questão). O efeito curioso disso foi uma certa tolerância face ao fenómeno religioso (não inveja - nunca tive aquela história da "inveja da fé"). Com a formação antropológica, essa "tolerância" transformou-se em curiosidade e interesse por perceber como funciona a fé religiosa. Não me custa nada "explicar" um sistema de crenças ou "perceber" como funciona a fé e estabelecer equivalências com crenças e fés não explicitamente religiosas. Por outro lado, a forma como o catolicismo é vivido em Portugal, chegou a fazer-me pensar que a religião era uma espécie de casca vazia de conteúdo, como que uma ritualização que as pessoas seguiam sem pensarem muito nisso e que não as impedia de serem abertas, tolerantes, ou de saberem separar as águas da política e da cidadania face à religião. Outro big mistake.
Mas, de há uns anos para cá, vivemos tempos novos, feitos de coisas velhas. No mundo inteiro, formas de fundamentalismo religioso ganham força. Entre nós, os debates sobre a política do pessoal e do sexual - aborto, mulheres, homossexualidade, etc - trouxeram para o campo público toda a força da ICAR enquanto instituição formadora de consciências (ou inconsciências) e discursos. A isto pode juntar-se o "ar dos tempos", muito dado à exploração de irracionalidades várias - o new-ageismo - e que rapidamente desculpa as posições de mega-instituições como a ICAR. Tornou-se-me cada vez mais claro que vivemos uma guerra cultural e que ela se disputa não só no plano contratual da separação entre Estado e igrejas mas, agora também, no plano da discussão dos próprios símbolos, dos seus significados e da sua utilização. A velha ideia - forte, por exemplo, no discurso dos antropólogos, de que se pode perceber como funciona a fé e a crença, mas não se pode perceber o que ela é, pois funciona a um nível exterior à discussão racional nos mesmos termos de linguagem - não serve para a política (e muito menos para o "terrorismo cultural"...).
"Gozar" com os símbolos que fazem parte das crenças dos outros, quando eles são quase-hegemónicos, não é achincalhá-los. É, pelo contrário, tirá-los de uma espécie de pedestal que os coloca numa zona inatingível (quer por privilégio deles, quer por paternalismo nosso) e trazê-los para o campo da igualdade de termos na discussão. Isto é tanto mais verdade quanto o campo da crença (sobretudo católica) não hesita um segundo em acusar o campo laico (sobretudo se este abordar questões de política sexual) das maiores barbaridades.
Enquanto parte de um sistema simbólico analisável for the sake of analysis, percebo perfeitamente o que quer dizer "a imaculada concepção", por exemplo. Mas quando esta "concepção" age, no real, sobre as discussões em torno, por exemplo, da liberdade de concepção/(contra)cepção, aí não se pode fugir à guerra de desconstrução dos símbolos. Porque o campo comum para a discussão dos direitos, deveres e liberdades só pode admitir a crença e a prática religiosas como estritamente privadas, mesmo que a maioria da população se declare católica. Em suma, quando no país onde vivo, há um feriado nacional em torno da imaculada concepção, não esperem que fique quieto e mudo...
«"É provável que Camarate tenha sido um atentado; mas também é provável que Camarate não tenha sido um atentado" - é a conclusão do relatório da Comissão de Peritos».
n substantivo feminino
1 enunciado ou palavra que insulta a divindade, a religião ou o que é considerado sagrado
2 Derivação: por extensão de sentido.
palavra, expressão ou afirmação que insulta ou ofende o que é considerado digno de respeito ou reverência
3 Derivação: por extensão de sentido.
afirmação absurda ou ilógica; contra-senso.»
(Dicionário Houaiss)
Outro dia, na série City Folk, aparecia uma jovem de Zabreb que ensinava dança do ventre. Era filha de um egípcio e duma croata. Tinha nascido na Somália e era muçulmana. Depois das suas aulas como professora, ia para o centro judaico aprender danças judaicas. Porque gostava. Os seus amigos em Zagreb eram gente de todo o mundo, incluindo croatas. Vemo-la, a certo ponto, falar via net e webcam com os pais, emigrados nos EUA.
Pessoas assim há aos montes. Bem como pessoas como um brâmane indiano que aprecia o facto de a constituição do seu país querer abolir as castas; ou judeus seculares que, mesmo assim, se identificam como judeus; ou portugueses que recusam o catolicismo como parte da sua identidade; ou católicos a favor do aborto; ou... (a lista é infinita).
Para quê estes exemplos? Porque são eles que podem ajudar a ultrapassar a desagradável "guerra" política e cultural em torno das contradições entre cidadania (nacional), pertença, e multiculturalismo. As unidades com que lidamos ao pensar sobre este assunto não têm que (não devem...) ser objectos coerentes: colectivos de pessoas com a mesma cultura, língua, origens, religião, etc.
Um dos "argumentos" sobre a política da língua é dizer que "o espanhol está a expandir-se e o português a deixar-se ultrapassar". Ainda ontem o ouvi ao zapar displicentemente pelo programa da RTP. É cretino, o argumento. É que não há comparação possível. Porquê? Porque, embora o português seja falado por muita gente, o critério do número de falantes não é o principal. Se o fosse andávamos todos a aprender chinês mandarim. E há duas razões de força que dão preponderância ao espanhol: o bloco latino-americano (menos o Brasil), constituído por muitos países, o que multiplica o factor político da importância do idioma. E, sobretudo, o facto de o espanhol estar a ganhar importância nos EUA, graças às comunidades hispânicas. É através da centralidade dos EUA que o espanhol "cresce". Por outro lado, há que ser realista em relação à geopolítica do português: alguém com juízo contabiliza nesta disputa (note-se: na geopolítica e na economia global das línguas) o contributo dos Palops ou de Timor? Claro que não. E o Brasil, gigante que é, ainda é (infelizmente) um anão económico e geopolítico. Em rigor, vivemos um paradoxo: falamos uma língua top ten em termos populacionais, mas próxima do dinamarquês em termos de "peso" (exagero, mas há que...). Por fim, por que raio há-de esta questão ser sequer importante? Não será ela sintoma de uma qualquer ansiedade identitária das elites perante a crescente desmultipicação dialectal do português, perante as crioulizações e perante a massificação do ensino - conducente a novas e "erradas" formas de escrita e comunicação? Ou perante a evidência de ser o Brasil O território do português por maioria de razão? A verdade é que nunca vi tanto livro em português (e refiro-me, nesta lista, a Portugal e, sobretudo, ao Brasil), tanta televisão em português, tanta música cantada em português e tanta escrita internáutica e SMS... De que se queixam, então?
Sempre tive vergonha de escrever sobre música neste blog. A razão é simples: fui um adolescente e jovem "diferente". (Não, não nesse aspecto (quer dizer, sim, nesse aspecto também, mas não é esse o point)). É que nunca prestei muita atenção à música, pelo menos não ao ponto de comprar discos, estar a par das novidades, saber quem é quem, o que fez, quando e por aí fora. Ficava claramente na margem quando os amigos falavam "dessas coisas". A ignorância musical é mais que muita, therefore the silence.
Mas o analfabetismo musical não impede uma pessoa de ser sensível à música. Hoje ia a guiar a caminho da piscina, atravessando Monsanto debaixo deste céu escandalosamente azul, e ia a ouvir os Communards, que o mais-que-tudo teve a decência de colocar no leitor de CDs. E, de repente, enchi-me de nostalgia positiva. Fiquei elated (sobre estrangeirismos, ver abaixo). Porque me lembrei, fisicamente, de como ficava elated com os Communards - triunfantes pela altura do meu coming out generalizado.
Porquê? Porque os Communards conseguiram juntar géneros e atitudes que até então (e hoje outra vez) estão separados e às vezes até se antagonizam: a estética gay e a canção de protesto. Os C. conseguiam transmitir a sensação de pertença a uma comunidade, cheia de alegria e espírito pop e provocação, e ao mesmo tempo faziam-no com uma estética (no som, na imagem gráfica, nas alusões simbólicas - até do próprio nome) que aludia a um espírito revolucionário, combativo, rebelde. Em suma, poli-pop, ou political pop, categoria que acabo de inventar...
Neste site fui encontrar um texto muito completo sobre Jimmy Somerville e o seu "programa". Às tantas o autor ou autora diz:
«Yet the UK in 1985 suddenly had the most unlikely pop star, singing Bronski Beat songs on TV. Jimmy Somerville, a short, tough-looking to the point of skinhead, gay activist sang to a fast dance beat in falsetto. Any one of these attributes was unusual enough, but he was obviously no cuddly Bee Gee and neither would he be a candidate for singing The Lion Sleeps Tonight.»
Esta descrição do Jimmy sintetiza a minha atracção: a aparente contradição, e a síntese que ela permite. Não seria altura de tornar a haver gay poli-pop?
Sou fã incondicional do Jon Stewart e o seu Daily Show. Chênú dá na SIC Radical e na CNN. No meio da decadência do império americano, Stewart consegue fazer um programa de humor político de qualidade que não se coloca totalmente na margem da sociedade americana (algo que é muito fácil de acontecer com os discursos críticos estadunidenses), com boa produção, um excelente leque de actores-jornalistas (!), e meios que ficam assumidante para cá da sofisticação técnica (é isso que lhe dá o toque de programa alternativo...). Nos últimos dias têm passado episódios hilariantes sobre a últimas eleições.
Estas sondagens são sempre muito estranhas. Quando muito servem para ter noção das representações correntes sobre um determinado problema. Mas seria importante dizer que elas não servem para identificar o problema. A preocupação com o ensino e o uso da língua é importante sobretudo pelo que isso implica na capacidade das pessoas exercerem a cidadania e serem autónomas (normalmente a preocupação não vem daí, mas de um difuso sentimento identitário de cariz nacionalista).
Hoje estava a comer numa dessas lojas de sopas dos centros comerciais. Uma das empregadas é ucraniana ou russa, a outra oriunda de um Palop. Nunca elas devem ter imaginado, quando mais jovens, que um dia se conheceriam, que trocariam informações e sentimentos sobre os países de origem e que o fariam aqui e em português, em vez de ucraniano ou balanta, ou qualquer outro idioma. É neste tipo de situação que se vê ao mesmo tempo a riqueza da mistura e da "multiculturalidade" e a riqueza duma língua em transformação por quem a usa.
Uso muitos anglicismos. Até neste blog. E há quem não goste nada disso. É pedante? É estrangeirado? Um pouco, sem dúvida. Marco, assim, uma oposição, invento-me uma identificação, faço-me. Não é só "estrangeiradismo". E há explicações: vivi nos EUA em dois períodos marcantes, ainda no liceu e, depois, na universidade. Fui ganhando um gosto tal pela literatura anglo-saxónica que praticamente não acompanho a literatura portuguesa contemporânea. Acho-a excessivamente marcada por dois extremos: ou a literatura-lixo que se vende nos hipermercados (e nas estações da empresa pública dos Correios!), ou a meta-literatura. Falta muito o espaço intermédio de uma verdadeira narrativa que respire e se ligue ao quotidiano (há excepções, que acompanho). Até questões práticas ajudam a explicar isto: os livros americanos e ingleses são mais baratos e mais pequenos. Não consigo comprar os autênticos calhamaços que os editores portugueses colocam no mercado: objectos que quase não cabem nas estantes, pesando 2 Kg, sem regra na direcção do texto das lombadas (uma tortura, percorrer estantes de livrarias portuguesas...), a preços absurdos e, no caso de traduções, quase ilegíveis. O resultado é que fui lendo cada vez mais em inglês, ao ponto de a minha língua materna se ter tornado inadequada para certos efeitos de estilo e comunicação. Se a isto juntarmos o facto de o inglês se ter tornado na língua-pidgin do mundo contemporâneo, percebe-se melhor que, mesmo com alguma "pedanteria" e algum "estrangeiradismo", eu (e tanta gente) anglicize a minha escrita.
Seja como for, um facto incontornável: este blog é na minha língua materna (e paterna, caramba!) e isso fá-lo pertencer a uma comunidade e não a outra - o que é ao mesmo tempo uma vantagem e uma desvantagem (algo que é da natureza mesma das pertenças culturais que não escolhemos; talvez por isso me agrade tanto a perspectiva "oscarwildiana" da auto-construção para lá daquilo a que fomos adscritos...)
O Porto estava brilhante, entre o azul do céu e o cinzento do granito. Passei horas em Serralves, a mergulhar nos trabalhos da Paula Rego, na arquitectura do Siza e no parque. Faz falta um espaço assim em Lisboa. A Gulbenkian costumava cumprir essa função, mas o Centro de Arte Moderna - feio e desinteressante - foi uma oportunidade perdida; e a visita a exposições e eventos na fundação tem sempre uma desagradável patine de burocracia e estatismo. Em Serralves, pelo contrário, respira-se uma descontracção moderna, num espaço que é vivido pelos muitos visitantes - uma boa metade deles espanhóis.
Um jornalista duma TV diz que fulano de tal (acho que era Pinto da Costa) iria ou não iria para "os calabouços da Judiciária". O que interessa aqui não é se vai ou não, ou quem é a personagem. O que interessa é o uso da expressão "calabouços". Ela remete para um imaginário medieval, de tortura, mau-cheiro, humidade, ratos e baratas... Em suma, para um imaginário da punição cruel e da prisão como um lugar de sofrimento. Bem sei que as prisões portuguesas devem deixar muito a desejar; e que o nosso sistema judicial e penitenciário é uma desgraça. Mas estimular o gozo da punição cruel é irresponsável. Fazê-lo sem querer, como deve ter sido o caso, é sintoma de uma cultura medievalizante - como no caso dos broncos e broncas gritando insultos "aos pedófilos" à porta do tribunal.
Assim de repente consigo identificar três registos de discurso nos meus posts. Um mais subjectivo ("detesto", "adoro", etc...); outro mais político (de posicionamento, de reivindicação ou denúncia...); e outro que, à falta de melhor expressão, poderia chamar de "sociológico".
Os três misturam-se muito no medium blog. Essa mistura está na origem de grande parte dos problemas de interpretação e comunicação que surgem nos meus posts e, depois, nos comentários. Mas o nível de disputa interpretativa e comunicacional cresce quando o registo é mais "sociológico" (entre aspas porque em rigor não o é). É que este registo é, desde logo, não normativo; depois, é muitas vezes contraditório com o afirmado nos registos "subjectivo" e/ou "político"; por fim, a sua natureza quase-sociológica obriga a tratar os assuntos com uma espécie de frieza distanciada e analítica que, em última instância, critica não só as minhas preferências como as opiniões e atitudes dos que me são próximos.
Exemplo: enquanto "político" e "sujeito", defendo com unhas e dentes o movimento LGBT ou o Bloco, ou irrito-me com unhas e dentes com alguns dos seus sectores; enquanto "sociólogo" (cá está a razão das aspas: sou antropólogo de profissão) posso fazer análises que eles (movimento LGBT, Bloco, ou qualquer outra coisa) consideram terríveis mas que me parecem mais "próximas da realidade"...
PS: Quem tem blogs também já percebeu que o número de pessoas que comentam é substancialmente inferior ao número de pessoas que visitam/lêem o blog. Esta discrepância constitui uma armadilha: a tendência para começar a escrever o blog para os comentadores e a pequena comunidade virtual que se cria. É sempre bom contrabalançar isto com uma escrita para um leitor abstracto que, em última instância, é o próprio autor do blog. Acho eu de que...
Foi na TSF e tratava-se de um debate entre os candidatos à Ordem dos Advogados. Mas poderia ter sido sobre outra coisa qualquer e noutro meio de comunicação. O que importa é que, às tantas, a moderadora precisa de apresentar o perfil dos candidatos. Uma série de descritores são usados: naturalidade, actividades exercidas, idade, ou mesmo estado civil. Mas, no meio destes - que já tomamos por banais - aparece um novo: "benfiquista", "sportinguista"... O tom de voz não era de brincadeira, embora a referência à preferência clubística ainda possa ser vista como relativamente jocosa. Certo é que há uns vinte anos, se não me engano, ninguém se lembraria de tal. O clube a que se pertencia era um assunto para conversas entre amigos, não para o perfil social (e político) das pessoas. O que agora parece ridículo ou fora de lugar, cedo será tão banal como os outros descritores. Assim se criam identidades colectivas, que passam a ter valor no negócio social. Podemos mesmo, por muito ridícula que pareça (e não parecerão quase todas? A mim ainda me faz cócegas, por achar irrelevante na maior parte das situações, ouvir pedirem-me o "estado civil", por exemplo) estar perante o começo de um novo descritor identitário?
Tem no mínimo 18 anos. Não aparenta nenhum problema de desenvolvimento ou de comunicação. Chega ao consultório de alergologia acompanhado pelo pai. Este é que dá os seus dados à "enfermeira". Quando chega a vez de ser atendido pela médica, o pai acompanha-o. Não é o primeiro caso que vejo - seja em médicos, seja em lojas para comprar roupa, seja no exemplo de Paulo Portas que diz ser a sua mãe a tratar-lhe de aspectos da conta bancária. Teremos um dia uma sociedade com "jovens" de quarenta anos incapazes de cozinhar, comprar roupa, ir a um médico, ou pagar contas, vivendo com um pai (ou provavelmente mais uma mãe), mais por incapacidade (ou incapacitação pelos pais) do que por desemprego ou escolha positiva?
Vi na televisão um anúncio da CPLP contra o VIH-Sida em que falam todos os chefes de Estado dos países de língua portuguesa. Óptimo. É bom que estas associações sirvam para alguma coisa, nomeadamente para promover os direitos humanos. Mas quando se consulta o mapa da Ilga-World sobre "State Homophobia", verifica-se que a homossexualidade é ilegal em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e, para espanto de muitos, Cabo Verde. Neste país (se nada mudou entretanto), aliás, a pena de prisão é de mais de 10 anos; nos outros, até 10 anos de prisão. Não aparecem dados para STP.
Alguns dos meus últimos posts deram alguma polémica(zinha). Ainda bem. Acho que ambos, posts e comentários, são um bom exemplo das agradáveis complicações da democracia bloguística: diferenças de estilos de escrita, argumentação e retórica; de crenças, hábitos e tiques; de atitudes políticas; de (de)formações profissionais; de inclinações afectivas, estados psicológicos... Agora que estamos em estado de descompressão pós-santanista e de "espírito natalício" (aargh!) é altura de renovar o convite a todos e todas para escreverem neste blog durante o mês de Dezembro. Cliquem aqui.
Mário Cesariny tem mais de 80 anos e é um artista livre e provocador. Mas não é isso que me impede de discordar frontalmente dele nas questões de política sexual (uma categoria que ele nem reconheceria como válida). Cesariny pode ser incluído numa tribo já antiga de homossexuais assumidos que eu definiria como "os malditos". Passo a explicar. Trata-se de pessoas que têm o mérito de assumir plenamente a sua orientação sexual; mas fazem-no assumindo o lado "maldito" (isto é, "decadente", "anti-puritano", anti-burguês" etc.) da homossexualidade. Só que esse lado maldito não são eles que o definem, mas sim o próprio establishment contra o qual se posicionam (as igrejas, a burguesia bem-pensante, o moralismo hipócrita, etc.). Trata-se de uma postura complicada, no mínimo: é que para existir ela precisa daquilo contra o qual se posiciona. Acaba por "fazer sistema" com o... sistema. E isto de modo simétrico aos homossexuais "integrados", isto é, os que em nome da "normalização" eliminam todo e qualquer traço socialmente definido como representativo de uma homossexualidade subalternizada ("bichice", frequência de certos meios, etc). Ambos os "modos" - um bem mais antigo, comum entre artistas (quando a palavra ainda significava uma identidade...) frequentadores dos bas-fonds dos "marinheiros" tão elogiados por Cesariny, e o outro bem mais recente, feito da imagem do casal de homens vestindo fato e absolutamente indistinguíveis dos outros homens à volta - me perturbam na sua ausência de criatividade, na sua ausência de crítica eficaz à "normalidade" e, em última instância, na sua rendição ao heterossexismo e à homofobia.
Não sou historiador, mas celebrações como a do 1º de Dezembro sempre me cheiraram a esturro. Porquê? Porque o tipo de interpretação veiculada pelos manuais escolares e popularizada no senso-comum é não só nacionalista de modo básico, como anacrónica. Ou seja: é muito difícil imaginar que em 1640 existisse o tipo de sentimento nacional que começa a existir em força a partir do século XIX e que hoje se acha "normal". Sentimentos como o nacional (assim como outros: consciência de classe por parte dos trabalhadores, consciência gay por parte de LGBTs, etc...) surgem em certas épocas e não são coisas de sempre. Por outro lado, e ao contrário do que por aí se diz, Portugal não foi "ocupado". Naquela época, as dinastias reinantes estavam ligadas entre si e era quase banal que uma casa real de um país reinasse sobre outro caso as regras de sucessão o permitissem (e obrigassem, até). Mais: entre 1580 e 1640 Portugal e Espanha foram duas coroas unidas e não propriamente uma tomada pela outra. A construção de um discurso anacrónico - creio que a partir do nacionalismo dos finais do XIX e depois muito reforçado quer pela Primeira República quer pelo Salazarismo - deu nisto e nisto.
36,000 people living with HIV/AIDS, or 0.74% of the adult population. Decreases in AIDS incidence were observed in all countries across Europe, except Portugal, where the epidemic began later. Portugal now has the highest AIDS incidence in Europe (88 cases per million population in 1999. Portugal is the only country in Europe to report a significant number of cases of HIV-2 infection. To the end of 1999 there had been 6,558 cases of AIDS reported. Portugal?s serious epidemic among injecting drug users accounted for more than half the newly diagnosed HIV infections in both 2000 and 2001, though the number of reported HIV infections among injecting drug users declined significantly in 2001.»
Continuo a achar que Sampaio fez mal em ter indigitado PSL em Julho passado. Fez politicamente mal. Depois, fui ficando surpreendido com o quão mau PSL mostrou ser (e é provável que o próprio o tenha sentido, numa espécie de confronto consigo próprio e as suas limitações). Num momento de esperança ainda pensei que Sampaio tivesse "feito de propósito", como que para enterrar PSL definitivamente e não o deixar continuar a apresentar-se como salvador do Sporting, perdão, da Pátria. É claro que um pensamento destes aguenta-se dois minutos: Sampaio teria sido ainda mais irresponsável caso tivesse jogado esse jogo. Seja como for, o resultado do batido banana-laranja foram quatro meses de caos e profundo embaraço nacional. Sampaio toma agora a decisão correcta (politicamente, repito, isto é, uma decisão com a qual concordo...). E abre um ciclo político em que várias questões se apresentam:
1. PSL vai usar dois meses de governo para se apresentar como vítima, distribuir benesses e tentar inverter a opinião pública. Pode fazê-lo porque desta vez ainda menos vai ter que governar. Vai ser gestão da comunicação e nada mais.
2. O PSD vai entrar em polvorosa (e nós ralados...). Esse vai ser o espectáculo saboroso.
3. Paulo Portas vai tentar capitalizar a imagem que tem cultivado cuidadosamente nos últimos tempos: "cumpridor da coligação", "leal", "fiel", com ministros que se "portaram bem". Esta mistificação terá que ser combatida: não se pode perder a oportunidade de afastar a criatura da vida política portuguesa com um score eleitoral miserável.
4. No PS vai-se assistir à corrida de Sócrates, apanhado desprevenido. Embora vá ser fácil vencer as eleições, não vai ser fácil convencer as pessoas.
5. PC e Bloco vão ver-se apanhados na falácia do voto útil. Isto se as sondagens, lá mais para finais de Janeiro, indicarem alguma recuperação do PSL, perdão, PSD. Ambos, mas sobretudo o Bloco, navegam melhor quando há a certeza de vitórias PS... O PC, com Jerónimo, poderá concentrar-se no seu universo fiel e o Bloco poderá fazer a "diferença de esquerda" face às propostas socráticas.
6. No espaço de um ano, haverá quatro idas às urnas: legislativas, referendo europeu, autárquicas e presidenciais.
7. E Cavaco e Guterres são já, obviamente, os dois candidatos do Centrão, os homens da "geração alterna" face à actual geração de politiquinhos. Será preciso construir um candidato de esquerda que não seja um mero emissário dos conclaves quer do PC, quer do PS.
Mas - oh, irresponsável optimismo! - partimos para este ciclo com uma sensação boa: a de que vivemos num país onde, se calhar, não há espaço social e cultural para o triunfo político de Santanas Lopes e Paulos Portas. Será isto que os manuais de História dirão daqui a cinquenta anos - que em Portugal não havia espaço para o populismo vazio e para a tomada do poder pela lumpen-burguesia (!)?