Já que está na moda discutir a entrada de «ismos» (anglicismos, francesismos e outros) na língua portuguesa, que tal discutir a palavra «gay»?
Os termos técnicos entram com alguma facilidade no quotidiano das pessoas e nos nossos dicionários. É apenas uma questão de tempo e veremos aportuguesadas palavras como «Internet» ou «Blog». O mesmo não acontece com termos que tentam categorizar o comportamento humano, como é o caso de «gay».
Se houvesse um sinónimo na língua portuguesa que a substituísse correctamente, talvez não fosse tão difícil perceber porque é que a palavra não sofreu ainda um processo de hegemonização (uso e reconhecimento geral da palavra) e, consequentemente, o seu aportuguesamento (guei?).
Poder-se-ia afirmar que «homossexual» seria a versão mais correcta, em português, do anglicismo em causa. Mas basta olhar para o nosso código penal ou perceber em que contextos ela é usada diariamente para daí concluirmos que não é de todo a sua tradução mais feliz.
«Gay» chegou a Portugal, no final do século XX, com todo um percurso feito, primeiro no universo linguístico/cultural anglo-saxónico, depois exportado, sobretudo para as comunidades LGBT de todo o mundo. A palavra que, na sua génese, significava «alegre, de bom-humor; vistoso» (Dicionário Inglês-Português, Porto-Editora, 1997, pág. 353), começou a ter, pelo menos desde o século XIX, uma conotação sexual enquanto sinónimo de «prostitutos e prostitutas, pela forma vistosa como se vestiam».
Acarinhada e «positivada» pela literatura, sofrida na pele de quem se propôs ser activista de minorias sexuais, «gay» conquistou, lá fora e durante mais de um século, a dimensão de «bandeira lexical», em paralelo à de tecido multicolor. Chegou-nos, a nós portugueses, isenta de cargas negativas, à prova, portanto, de insultos e ignorância.
Sintomático da reacção à sua entrada na língua portuguesa é o facto de «gay» ser traduzido no dicionário supra referido apenas no seu significado original, quando ele parece estar também perfeitamente consolidado na língua inglesa como sinónimo de homossexualidade (no seu sentido mais lato). Se os dicionários simbolizam uma cultura, os portugueses excluem, portanto, uma parte significativa da sua riqueza.
Ao não incluir «gay», nem que seja nos «léxicos estrangeiros utilizados na língua falada e escrita», será que estamos dispostos a empreender a luta pela «positivação» das nossas próprias palavras: «bicha», «fufa» e tantos outros termos, actualmente pouco afectuosos? Será que o activismo sexual, em Portugal, tem condições para o fazer? Será que uma sociedade que caminha para a cada vez maior desigualdade entre ricos e pobres, entre letrados e analfabetos... tem condições para o fazer?
Tenho as maiores dúvidas e suponho que a única forma de «gay» entrar no nosso dicionário/cultura será por decreto. Uma espécie de «léxico preventivo», que em vez de esperar por transformações sociais que dificilmente terão lugar, aguardaria silenciosamente, nas páginas de um dicionário, o melhor momento para se entranhar.