OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


6.12.04  

On speaking tuga.

Estas sondagens são sempre muito estranhas. Quando muito servem para ter noção das representações correntes sobre um determinado problema. Mas seria importante dizer que elas não servem para identificar o problema. A preocupação com o ensino e o uso da língua é importante sobretudo pelo que isso implica na capacidade das pessoas exercerem a cidadania e serem autónomas (normalmente a preocupação não vem daí, mas de um difuso sentimento identitário de cariz nacionalista).

Hoje estava a comer numa dessas lojas de sopas dos centros comerciais. Uma das empregadas é ucraniana ou russa, a outra oriunda de um Palop. Nunca elas devem ter imaginado, quando mais jovens, que um dia se conheceriam, que trocariam informações e sentimentos sobre os países de origem e que o fariam aqui e em português, em vez de ucraniano ou balanta, ou qualquer outro idioma. É neste tipo de situação que se vê ao mesmo tempo a riqueza da mistura e da "multiculturalidade" e a riqueza duma língua em transformação por quem a usa.

Uso muitos anglicismos. Até neste blog. E há quem não goste nada disso. É pedante? É estrangeirado? Um pouco, sem dúvida. Marco, assim, uma oposição, invento-me uma identificação, faço-me. Não é só "estrangeiradismo". E há explicações: vivi nos EUA em dois períodos marcantes, ainda no liceu e, depois, na universidade. Fui ganhando um gosto tal pela literatura anglo-saxónica que praticamente não acompanho a literatura portuguesa contemporânea. Acho-a excessivamente marcada por dois extremos: ou a literatura-lixo que se vende nos hipermercados (e nas estações da empresa pública dos Correios!), ou a meta-literatura. Falta muito o espaço intermédio de uma verdadeira narrativa que respire e se ligue ao quotidiano (há excepções, que acompanho). Até questões práticas ajudam a explicar isto: os livros americanos e ingleses são mais baratos e mais pequenos. Não consigo comprar os autênticos calhamaços que os editores portugueses colocam no mercado: objectos que quase não cabem nas estantes, pesando 2 Kg, sem regra na direcção do texto das lombadas (uma tortura, percorrer estantes de livrarias portuguesas...), a preços absurdos e, no caso de traduções, quase ilegíveis. O resultado é que fui lendo cada vez mais em inglês, ao ponto de a minha língua materna se ter tornado inadequada para certos efeitos de estilo e comunicação. Se a isto juntarmos o facto de o inglês se ter tornado na língua-pidgin do mundo contemporâneo, percebe-se melhor que, mesmo com alguma "pedanteria" e algum "estrangeiradismo", eu (e tanta gente) anglicize a minha escrita.

Seja como for, um facto incontornável: este blog é na minha língua materna (e paterna, caramba!) e isso fá-lo pertencer a uma comunidade e não a outra - o que é ao mesmo tempo uma vantagem e uma desvantagem (algo que é da natureza mesma das pertenças culturais que não escolhemos; talvez por isso me agrade tanto a perspectiva "oscarwildiana" da auto-construção para lá daquilo a que fomos adscritos...)

mva | 14:52|