OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


31.12.04  


Autora: Valéria.

TABACO PARA TODA A GENTE. Na televisão, num desses programinhas em que cada convidado temcinco minutinhos para dar uma opinião de sua especialidade, o debate do dia é sobre "o tabaco, suas consequências, as campanhas anti-tabagistas, porque as pessoas fumam e como fazê-las parar de fumar". O anúncio mal cabe no ecrã. Assim começa: - A NICOTINA É UMA SUBSTÂNCIA PSICOTÓXICA E A DESCONTINUIDADE DE SEU USO CAUSA ABSTINÊNCIA, diz o médico, resoluto pela total proibição do tabaco. Seguido ao médico, informa o desportista: - O TABACO FAZ MAL. MUDA O BIORRITMO E TORNA OSCILANTE ATEMPERATURA. Prossegue o sensato professor de educação cívica: - A CAMPANHA ANTI-TABAGISTA É UM ATO DE BOA-FÉ. EVITAR SOFRIMENTOS É MORALMENTE DESEJÁVEL. Um popular da platéia, aqueles que se chama "cínico decarteirinha", expõe seu sorriso de dentes branquíssimos:- E QUEM FUMA DEMAIS QUE NÃO LAMENTE A ANGÚSTIA DE UM ENFISEMA. Intercede o psicanalista:- NINGUÉM QUER SOFRER PARA RESPIRAR, SOFRER PARA COMER E, MUITO MENOS, SOFRER PARA MORRER. O filósofo foucaultiano termina a frase:- NO ENTANTO, O TABACO ACIONA UM DISPOSITIVO MAIS FORTE QUE A VONTADE, QUE É O DISPOSITIVO DO PRAZER. Fundamentalistas de uma seita religiosa até então secreta, invadem a emissora: - O PULMÃO, BRANCO E PURO, ACIMA DE TUDO, É IMACULADO, E NÃO MERECE A FUMAÇA DO VÍCIO. O TABACO QUEIMA POR DENTRO, diz o líder. Os seus seguidores manisfestam-se, aliás, a plenos pulmões:- PULMÃO PRETO, NÃO. ALMA BRANCA, SIM! PULMÃO PRETO NÃO, ALMA BRANCA, SIM... Tais religiosos são detidos. Busca-se aplainar os ânimos. O ex-tóxico-dependente, atualmente com síndrome de pânico, alerta, com os olhos arregalados:- EU JÁ ME LIBERTEI DESSE MAL. E PEÇO QUE TODOS OS FUMADORES IMITEM O MEU EXEMPLO. O ecologista lança a todos um olhar ameaçador e declara: - TESTES CIENTÍFICOS PROVAM QUE TODAS AS PLANTINHAS EXPOSTAS ÀFUMAÇA DO TABACO MORREM. A câmera fecha na sua expressão ameaçadora, e segue o intervalo.Uma popular da platéia, aborrecida, comenta: - O TABACO NÃO MATA NEM PODE MATAR. SE JÁ MATOU, O PROBLEMA NÃO É DO TABACO, MAS DE QUEM SE MATOU OU MORREU, POR ELE OU POR OUTRO MOTIVO QUALQUER. Após as propagandas, politicamente corretas e nas quais não aparece o dito elemento em debate, voltamos à programação.Pronuncia-se o agente funerário: - NEM TODOS OS FUMADORES TEM ÓBITO POR CAUSA DO TABACO. Convidado o político, ora da ala da centro-direita, ora da ala da centro-esquerda, pronuncia-se como representante da ala dos razoáveis. - HÁ VIDAS ABREVIADAS DE TODAS AS MANEIRAS E NÃO APENAS POR CAUSA DE TABACO. NÃO VAMOS EXAGERAR NA PATRULHA. Enquanto isso, no botequim, surge o comentário: - QUEM JÁ VIROU FUMAÇA NÃO SABE QUE SEUS FAMILIARES GANHAM RIOS DE DINHEIRO NA AMÉRICA, ÀS CUSTAS DE SUA DESGRAÇA. Na televisão, prosseguem os palpites realistas: - O TABACO ESTÁ NAS PRATELEIRAS. SUA VENDA É PERMITIDA SEM GRANDES RESTRIÇÕES. ALIÁS, NUMA SOCIEDADE DE CONSUMO, A PALAVRA"RESTRIÇÕES" NUNCA SE APLICA, diz o sociólogo. - PORTANTO, CONTINUAREMOS A PRODUZIR, sorri, satisfeito, o industrial do produto em questão.Nota: nunca se esqueçam que há sempre um capitalista de plantão, à espreita. Diz o etnólogo:- APESAR DE TODO ESSE MAL-ENTENDIDO SOBRE O TABACO, EXISTEM ETNOLOGIAS DEMONSTRANDO SUA FUNÇÃO SOCIAL E RITUAL. E o publicitário ri da campanha do governo: - VAMOS E VENHAMOS: IMAGEM DE CAVEIRA É PIADA. CONVENHAMOS: NADA DE ÓBITOS DECLARADOS DE ANTEMÃO.Quando tudo está terminado e todos querem ir embora, o advogado se levanta, abruptamente:- ATUALMENTE, FUMAR OU NÃO FUMAR TORNOU-SE UMA QUESTÃO DE DIREITO. SERÁ O TABACO ECOLOGICAMENTE IRRESPONSÁVEL? ESTARÃO OS CONSUMIDORES SENDO ENGANADOS?, inquire o advogado. De tanto trololó que não acaba nunca, o cameramen vê que já chegou ao fim seu horário de expediente. Acende seu cigarrinho para relaxar. O ex-tóxico-dependente, em pânico, corre para a janela e se pendura nas cortinas. O psicanalista, oportunamente, comenta:- A SUBSTÂNCIA DA QUAL O FUMADOR DEPENDE NÃO É NENHUMA OUTRA QUE NÃO O DESEJO. E NO DESEJO QUE NINGUÉM SE META. DESEJO É DE CADA UM E DE NENHUM DE NÓS. Alguém da seita se desenlaça dos seguranças. O popular,efetivamente um sociopata, indigna-se com o ato e o comentário. Ao vivo, pega a câmera e joga-a no chão. Pula para cima do psicanalista e aperta seu pescoço e esse fica esbaforido. A câmera pifa e solta a fumaça. Conclusão: NADA É MAIS SUBVERSIVO QUE O DESEJO. E O RESTO, QUE VIRE FUMAÇA.

mva | 23:02|