OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


31.12.04  


Autor: Daniel F. aka Everloving_boy

O Péssimo Rapaz

Muito provavelmente Nietzsche preferiria os maus rapazes aos bons rapazes. O rapaz certinho e submisso perante as correntes instituídas nunca seria do seu agrado. Em sentido oposto, ele valorizaria um rapaz rebelde, fiel às suas convicções e ao que elas implicam, e capaz de operar pequenas modificações numa sociedade acomodada e, por isso mesmo, repleta de rapazes bons mas impotentes.

Rapazes bons há muitos. Os que realmente escasseiam são aqueles que não se conformam com o mundo em que vivem. Mas importa sublinhar que esse inconformismo é bem mais do que uma simples e vulgar teimosia. Teimosias até os melhores rapazes têm.

A rebeldia do mau rapaz é uma rebeldia com rumo e fundamento. Ele sabe o que tem a fazer e luta em função das causas que julga serem importantes. "Quem corre por gosto não se cansa". Então estamos perante um autêntico atleta de alta competição.

Mas o que dizer daqueles que, ao correrem com relativo gosto, apenas perseguem a medalha? Que termos usar para qualificarmos uma corrida feita em função dos aplausos, da fama, e da riqueza? Estes últimos aspectos não são, por si mesmos, representantes da decadência humana. Mas o seu simbolismo, numa sociedade centrada unicamente na "medalha", é muito preocupante.

Chamar-lhe-ei, com uma certa familiaridade, o Péssimo rapaz. E ele, na sua hipocrisia característica, o interpretará como um elogio.

Afasto-me e esboço um sorriso. No meu íntimo julgo saber o que é ser péssimo. Sei o que isso significa nos dias que correm. E também sei que me orgulho do que sou, mesmo na eventualidade de os "péssimos" me considerarem péssimo...

Mas afinal de contas o que é ser péssimo(a)? O que é normal? O que se conclui desta vida padronizada?

Na melhor das hipóteses o péssimo rapaz virará as costas e dirá, na sua consciência: "que tipo tão péssimo! será que ele não se apercebe da sua tremenda futilidade?"

E afasta-se. Para quê aborrecer-se com banalidades? Para quê parar e reflectir um pouco?

O seu passo é ritmado. A recompensa aguarda-o mesmo ao final da rua. Brevemente colherá os frutos de um vida sem rumo. De uma alma sem brilho. De um coração insensível. E de uma cabeça que repete maquinalmente os mesmos erros, como se de virtudes se tratassem.

Vai a contornar a esquina. O seu olhar só não despreza as pessoas, apenas porque um dia pode vir a precisar delas. Os bons rapazes deitam-lhe olhares reprovadores. Os maus rapazes nem sequer lhe dirigem a atenção. Ele é indiferente ao mundo que o rodeia. Não sente. Não vive.

Acelera o passo. Na sua realidade imunda e promíscua, julga-se superior.

Atravessa a rua. Uns metros à frente um carro atropela-o violentamente, projectando-o para o abismo e escuridão até então desconhecidos.

Grita e gesticula. As palavras não lhe saem. O mundo em seu redor, cada vez mais sombrio e distante, escapa-se-lhe ao controlo. Pela primeira vez desejava um perdão, uma benevolência, um braço amigo para se voltar a erguer.

Mas engana-se: é mortal.

mva | 23:58|