OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


9.12.04  

Anticlericalismo.

Admito que este blog (e eu) tenha vindo a tornar-se mais anticlerical. Talvez seja interessante partilhar o percurso. Durante muito tempo não só não me ocupei muito (mentalmente) com "a questão religiosa", como até não simpatizava quer com o anticlericalismo quer com o ateísmo militante de muitos dos meus compagnons de route. Por um lado, um certo snobismo levava-me a achar a atitude demasiado "típica" duma certa esquerda. Por outro, parecia-me uma questão antiga, semelhante, no meu imaginário, à questão da República versus Monarquia. Big mistake - já direi porquê.

Há uma razão biográfica para isso. Não fui criado como católico (nem sequer como cristão), mas tão-pouco fui criado num ambiente anticlerical ou militantemente agnóstico ou ateísta. A coisa simplesmente passou-me ao lado, numa família profundamente des-religiosizada (perdoem o neologismo, mas é o que me parece descrever melhor a questão). O efeito curioso disso foi uma certa tolerância face ao fenómeno religioso (não inveja - nunca tive aquela história da "inveja da fé"). Com a formação antropológica, essa "tolerância" transformou-se em curiosidade e interesse por perceber como funciona a fé religiosa. Não me custa nada "explicar" um sistema de crenças ou "perceber" como funciona a fé e estabelecer equivalências com crenças e fés não explicitamente religiosas. Por outro lado, a forma como o catolicismo é vivido em Portugal, chegou a fazer-me pensar que a religião era uma espécie de casca vazia de conteúdo, como que uma ritualização que as pessoas seguiam sem pensarem muito nisso e que não as impedia de serem abertas, tolerantes, ou de saberem separar as águas da política e da cidadania face à religião. Outro big mistake.

Mas, de há uns anos para cá, vivemos tempos novos, feitos de coisas velhas. No mundo inteiro, formas de fundamentalismo religioso ganham força. Entre nós, os debates sobre a política do pessoal e do sexual - aborto, mulheres, homossexualidade, etc - trouxeram para o campo público toda a força da ICAR enquanto instituição formadora de consciências (ou inconsciências) e discursos. A isto pode juntar-se o "ar dos tempos", muito dado à exploração de irracionalidades várias - o new-ageismo - e que rapidamente desculpa as posições de mega-instituições como a ICAR. Tornou-se-me cada vez mais claro que vivemos uma guerra cultural e que ela se disputa não só no plano contratual da separação entre Estado e igrejas mas, agora também, no plano da discussão dos próprios símbolos, dos seus significados e da sua utilização. A velha ideia - forte, por exemplo, no discurso dos antropólogos, de que se pode perceber como funciona a fé e a crença, mas não se pode perceber o que ela é, pois funciona a um nível exterior à discussão racional nos mesmos termos de linguagem - não serve para a política (e muito menos para o "terrorismo cultural"...).

"Gozar" com os símbolos que fazem parte das crenças dos outros, quando eles são quase-hegemónicos, não é achincalhá-los. É, pelo contrário, tirá-los de uma espécie de pedestal que os coloca numa zona inatingível (quer por privilégio deles, quer por paternalismo nosso) e trazê-los para o campo da igualdade de termos na discussão. Isto é tanto mais verdade quanto o campo da crença (sobretudo católica) não hesita um segundo em acusar o campo laico (sobretudo se este abordar questões de política sexual) das maiores barbaridades.

Enquanto parte de um sistema simbólico analisável for the sake of analysis, percebo perfeitamente o que quer dizer "a imaculada concepção", por exemplo. Mas quando esta "concepção" age, no real, sobre as discussões em torno, por exemplo, da liberdade de concepção/(contra)cepção, aí não se pode fugir à guerra de desconstrução dos símbolos. Porque o campo comum para a discussão dos direitos, deveres e liberdades só pode admitir a crença e a prática religiosas como estritamente privadas, mesmo que a maioria da população se declare católica. Em suma, quando no país onde vivo, há um feriado nacional em torno da imaculada concepção, não esperem que fique quieto e mudo...


mva | 11:55|