Convenhamos: Durão Barroso, comparado com vários barões do PSD e com Santana Lopes, até que nem demonstrou ser o tipo de figura pública das revistas sociais, do futebol e de outras rasteirices nacionais. A sua figura pública não convoca imagens de machismo, homofobia, classismo, etc., nem sequer aquela linhagem antiga e sobrevivente que dá pelo nome de "salazarenga".
Talvez por isso mesmo o capital acumulado (não de simpatia mas de não-antipatia visceral) caiu ainda mais estrondosamente com a sua fuga para Bruxelas. Porque duma fuga se trata: DB foi "resolver a vida", guiado pelo interesse pessoal; DB aproveitou para fugir a meio do mandato, quando as coisas correm mal e a direita teve a maior derrota eleitoral na história da democracia portuguesa.
Que as pessoas comuns podem "resolver a vida" vai de si. Mas mesmo elas pesam os prós e contras, sobretudo quando há responsabilidades envolvidas (quem vai embora para um trabalho bem pago no estrangeiro quando tem que acompanhar um ente querido precisando de ajuda, por exemplo?); mesmo elas sentem problemas de auto-estima e respeito se abandonam um trabalho ou tarefa em que acreditam, só porque as coisas estão numa fase má.
Mas o que DB fez - e isto para que não esqueçamos que é sua a responsabilidade pela crise, no momento em que nos concentramos em PSL - foi pior ainda. Por várias razões. Em primeiro lugar tudo foi negociado às escondidas e criteriosamente planeado. Esse planeamento incluiu o cenário da derrota eleitoral (o que é que fazemos quando a merda atingir a ventoínha?, pardon my english...)e incluiu o calendário do Euro, para permitir o desvio das atenções e a galvanização patrioteira (um português em Bruxelas, wow!, como se esse português não fosse um aliado de Bush e um primeiro-ministro que foge com o rabo à seringa!).
Em segundo lugar, incluiu a demagogia da forma versus conteúdo, da legalidade versus legitimidade. É fácil enganar os portugueses nisto: num país onde ninguém respeita a lei, demonstrar "rigor" administrativo é sempre visto como o ex plus ultra da ética (é como os chatos das assembleias gerais que fazem perder horas com a redacção dos "articulados" dos estatutos...).
Convém dizer que o PR pode decidir igualmente indigitar novo primeiro ministro ou convocar eleições - e a decisão deve assentar nmum juízo político que é o que confere legitimidade à solução. Nomeadamente auscultando a sociedade, nem que seja dando algum crédito às sondagens, e imaginando os cenários futuros (isto é algo que nem os jornalistas políticos percebem, pois falam de política como quem fala de futebol: discutem pessoas, estratégias e manigâncias e nunca falam do que se passa na sociedade, entre os eleitores e as suas vidas).
A prenda envenenada de DB foi, portanto, PSL: um demagogo populista, sem qualquer espécie de capacidade para o quer que seja (como demonstra a administração de Lisboa, porca e estragada como nunca) que não a politiquice e a publicidade; aliado do pior que há neste país, o futebol-empresa e as autarquias; querido pelas camadas que desprezam "os políticos" (bela contradição...), ingénuas o suficiente para alimentarem essa convicção com o anti-politiquismo de PSL, de profissão... político.
Tudo neste processo foi legal. Tão legal como as mil e uma trafulhices que se fazem todos os dias, da fuga aos impostos aos desvios de fundos, sempre baseados em manipulações legalistas. Mas tudo nele foi ilegítimo, moral e politicamente, como aquelas trafulhices o são. De fora de qualquer decisão ficam os eleitores, reféns agora das hesitações presidenciais, e em breve de dois dos melhores travestis de políticos democratas desde a invenção de Berlusconi - Santana Lopes e Paulo Portas (que - ironia trágica - tendo sido remetido para o patamar dos 2% nas eleições e sondagens, sai agora reforçado!).
Auto-satisfeito, em inglês manhoso, DB tentou ontem mostrar aos jornalistas que foi a escolha da Europa. Refugo dos refugos, marioneta para Chirac, Blair e Schroeder (ora puxa o cordel do projecto europeu, ora puxa o cordel da aliança com a América), o homem do nome complicado abandona o "Durão". Assim como a naçao de onde vem: manca e atamancada. Com erro de ortografia. Sem a onda. Sem onda.
Simpelismu, pupulismu, e demagujia serão (ainda mais) o pão nosso de cada dia. Com muita injustiça à mistura. Anestesiados pela falsa ideia de que não têm poder, de que todos os políticos são iguais, a maioria dos eleitores nem se vai importar. Se se revoltar, será indirectamente, através da pequena revolta, que consiste na falta de civismo e na lei da selva. Vai continuar a fazer mais do mesmo: resolver a vida através dos esquemas, dos compadrios e dos familismos, porque são esses os únicos recursos num sítio onde a democracia, o Estado e a sociedade civil não funcionam. Curiosamente, é justamente isso que os Santana Lopes e Paulos Portas deste mundo reforçam através das suas acções e discursos. E é para isso que Durao Barroso acaba de dar o contributo final e fatal - provavelmente com a ajuda aflita do Presidente da República.
Há muito tempo que penso explicar a muita gente porque não aprecio futebol e porque não consigo participar da euforia nacional em torno do Euro. A primeira e mais simples explicação é estereotípica: eu seria um intelectual, esquerdista, burguês, estrangeirado, elitista e gay - tudo condições propícias para desprezar o futebol e o patriotismo como emoções menores. É verdade que sou todas aquelas coisas. Mas também é verdade que - por razões éticas e por ser antropólogo - critico algumas delas como posturas demasiado fáceis, e tento vigiá-las e até recusá-las (o elitismo estrangeirado e intelectual, claro...). Também como antropólogo conheço (e concordo com) as interpretações do carácter, função e simbologia culturais e sociais do futebol e do patriotismo. Mas como pessoa isso não faz com que as aceite. Quanto ao futebol, até nem tenho grande coisa a dizer: simplesmente não aprecio, como não aprecio camarões, diospiros ou caviar. Quanto ao patriotismo em geral, e em torno do futebol em particular, já se trata de uma postura mais ética e propositiva. Sei - e sinto-o e exerço-o noutras esferas - que toda a gente precisa de se emocionar em colectivo, de sentir o espírito de comunidade e pertença, de vibrar com alguma forma de competição, torcendo pelo mesmo lado com outros. Sei também que há aspectos da identidade nacional que são estruturantes: é claro que falar a mesma língua me coloca até certo ponto numa comunidade de comunicação; assim como viver em Portugal é para mim mais fácil do que viver noutros sítios e há lugares, cheiros e sabores de memória e mesmo nostalgia. Mas isto rapidamente demonstra os seus limites: comunico melhor sobre certas coisas com um eslovaco com quem partilhe valores e ideias do que (e mesmo assim só em princípio) com um militante anti-aborto homofóbico, classista, sexista e racista, por exemplo; e a sensação de "lar" em Portugal advém simplesmente do hábito, de ter incorporado o funcionamento de muitas coisas. Quanto à vontade de comunidade, também a tenho. Só que não a tenho em relação a esta comunidade do futebol-pátria. Porque - do ponto de vista colectivo e social, logo político (que não estritamente pessoal) - acho que demonstra o pior do nacionalismo e do patriotismo, que é a nivelação por baixo, a invisibilização das diferenças, o escamoteamento das desigualdades, e porque dá azo a manipulações políticas alienantes (como se vê por estes dias de crise política). Isto resulta de um puro esforço intelectual e de juízo ético e de valores? Também, mas não só. É que do lado emocional, imediato, já há algum tempo (não foi sempre assim, nomeadamente na juventude) que não vibro com a selecção nacional, não vibro com o hino, não vibro com a bandeira (a questão aqui até é mais estética...), não vibro com vitórias portuguesas só por serem portuguesas. E voltamos ao princípio: sei que muita gente não vai acreditar que é mesmo assim. E muita gente dirá que concorda comigo, só que também vibra com o patriotismo futebolístico, sentindo assim que tem algo a mais, que a mim me falta. Talvez. Mas a verdade é que quando vejo as bandeiras todas, quando as conversas giram esmagadoramente em torno da "coisa", quando a "coisa" ganha prioridade sobre a crise política, quando as celebrações das vitórias (ou os choros das derrotas) geram etnocentrismos bacocos, ou quando os políticos de direita fazem cálculos com o futebol-pátria, prevalece em mim a raiva e o des-gosto. Dir-me-ão que isto é dar demasiada importância ao circo romano. Pois... justamente: circo romano.
Nada do que aqui digo implica que despreze as pessoas que gostam do futebol-pátria. Entre elas estão algumas das que me são mais queridas. O meu ponto é que o contrário também deve ser verdadeiro: o meu des-gosto com o futebol-pátria não pode ser demitido, de uma penada, como prova de snobismo.
Ontem falámos dela (o Manuel Cabral Morais da Ilga, a Eduarda Ferreira do Clube Safo e eu) no programa da award winner Ana Marques, Elas em Marte, na SIC Mulher. A palavra é estranha, bem sei. Mas ela e os seus (diversos) conteúdos e significados, serão discutidos em workshops e seminários abertos ao público, no próximo sábado.
Primeiro recebi um mail que dizia isto: « Um jovem casal de namorados gay foi ontem ao início da tarde ameaçado e humilhado por três agentes da polícia municipal, por se encontrar a namorar no relvado do Parque Eduardo VII, tal como faziam vários casais heterossexuais à mesma hora (...)Os agentes abordaram o casal alegando ter recebido ?queixas? pelo facto de se encontrarem ali homossexuais a namorar, sobretudo por ali ?se encontrarem crianças?. ?Não sabem que isso é proibido em Portugal?? e ?vão fazer isso para casa?, foram outras das frases utilizadas pelos agentes (...) Face à recusa dos jovens em abandonar o local, reivindicando o seu direito à livre expressão de afecto, os agentes policiais encostaram a uma parede um dos membros do casal, ameaçando-o fisicamente, e acabaram por forçar os dois jovens a abandonar o local. Face à exigência de que mostrassem a sua identificação, os agentes ocultaram-na.»
No dia seguinte, via Renas, vi isto no Solidão: «?Atentado à moral pública?. Esta expressão foi hoje invocada por um polícia para me expulsar a mim e ao meu namorado dos jardins da Gulbenkian.»
"Isto está bonito, está", como é costume dizer-se. É fundamental que estes polícias e seguranças sejam confrontados com queixas. Mas é igualmente fundamental que instituições como a Fundação Gulbenkian tomem medidas. Ficam os contactos.
Leiam esta carta de um perigoso esquerdista, que às tantas diz: «É certo (...) que o País ganha em beneficiar com a estabilidade política e governativa. Mas quem quebrou a estabilidade, neste caso, foi o primeiro-ministro cessante, não foi o Presidente da República, nem o Parlamento.» E este artigo, de um verdadeiro terrorista, dizendo irresponsavelmente que «Durão Barroso devia envergonhar-se da situação em que a sua imprevidência política lançou o país.» Ou, ainda, este, cuja autoria não é divulgada no Público on-line (!): «O que é inaceitável é esta situação de sequestro da República - em que, depois de se ter ganho eleições com promessas eleitorais que se quebram no dia seguinte, se fazem promessas de fidelidade ao Governo que se quebram passados uns meses e se tem o desplante de, escassos dias após uma derrota eleitoral, pretender impor ao país e ao Presidente da República um primeiro-ministro que nunca foi a votos para tal...». Por fim, este, vindo "da Europa": «Uma solução meramente mecânica da questão não estará à altura do acontecimento. E ninguém o saberá melhor que o Presidente da República, garante do nosso equilíbrio político, que nunca é meramente formal.»
Uma foto do bar Stonewall; uma foto dos motins; uma foto do Village Voice da época; e dois veteranos dos motins (as duas pessoas do meio) numa Marcha lgbt. Visitem os veteranos de Stonewall aqui. As outras fotos estão aqui.
PS: Bem em cima do 28 de Junho, a Espanha dá o singelo passo civilizacional...
Gostei muito da manifestação convocada por SMS. O ambiente era aguerrido mas também divertido. As palavras de ordem, inventadas ali, também: "Chega de golpadas, eleições antecipadas"; Santana 1 2 3, vai pró túnel do Marquês"; "Isto não se faz, vai-te embora Santanás"; "Santana sai de perto, isto não é bar aberto". Os gestos, idem: ambas as mãos no ar abanando os dedos, ou toda a gente chocalhando os seus chaveiros.
A polícia chegou e devia ter ordens expressas de não criar problemas (perante o que, legalmente, era uma manif não autorizada). Mas eis senão quando decide parar um carro que passou buzinando em apoio à marcha. Porquê? Para multá-lo! (vide buzinadelas futebolescas...).
Escandoloso, cada vez mais, é o comportamento da comunicação social. Disseram-me que a TSF noticiou 200 ou 300 pessoas. De facto, estavam mais do que na Marcha lgbt que, segundo a comunicação oficial do comando da PSP, teve mais de 3000 pessoas (contrariando as 400 dos media). Das duas uma: ou estamos com jornalistas iletrados, incapazes de visualizar o espaço dividido em quadrículas, contar as pessoas numa delas e multiplicar o resultado pelo número daquelas (o que significará que os cursos de comunicação social estão com sérios problemas de qualidade e/ou as condições de trabalho nos media); ou estamos face ao verdadeiro domínio dos grandes grupos, como a Lusomundo ou o império Balsemão (o que significará que meios de informação alternativos e de menores custos, como os que se podem fazer na Rede, são precisos).
Um dos traços mais curiosos da manif foi o tipo de pessoas. Era bastante evidente a proveniência de camadas socio-económicas abastadas. Quase se poderia dizer que a "burguesia" se revolta contra a indecência anti-democrática, simbolizada na figura berlusconiana de Santana Lopes. Isto é muito bom sinal.
Horas depois, ouvi atónito PSL (e não Durão, silencioso na desculpa da Turquia) comunicar ao país que o PSD zelará pela estabilidade e o cumprimento da lei. Sampaio admite isto? Admite que o Santanás passe ao povo a ideia de que é ele quem tem os destinos do país na mão, que é ele quem detém a responsabilidade pela estabilidade? Admite que se apresente, para todos os efeitos, como primeiro-ministro, já para não dizer presidente?
(Às vezes só tenho pena que não seja possível ir ao Arquivo de Identificação e ao Governo Civil entregar o meu BI e passaporte, preenchendo um requerimento para deixar de ser português. Como não posso - a nacionalidade é, pelos vistos, uma identidade-prisão (e deve ser por isso que é tão querida dos conservadores...)- só resta "sair à rua e gritar":
Neste Palácio reside oficialmente a pessoa que ocupa o cargo de Presidente da República Portuguesa, eleito pelos cidadãos e cidadãs da dita. Uma das funções principais do PR, no nosso regime semi-parlamentarista e semi-presidencialista é zelar pelo bom funcionamento das instituições democráticas.
O rodapé do telejornal da RTP diz, em relação à Marcha lgbt, que teve escassa adesão (a TVI, também, fala em 400 pessoas, quando a polícia falava em 3.000) e que "foi criticada por alguns activistas pela partidarização". Eu sei quem disse isso: António Serzedelo e a Opus Gay. Os mesmos que recusaram o convite para co-organizar a marcha; os mesmos que, depois, manipularam os media proclamando-se organizadores; os mesmos que agora lançam estas calúnias.
A partir de agora, Serzedelo e a Opus Gay são moral e politicamente responsáveis pela desgraçada cobertura mediática da Marcha, ao oferecerem este triste sound byte. Com atitudes assim, não há argumento de unidade que tenha pés para andar; a separação total e completa - e, sim, o confronto - é a única solução positiva. No próximo ano, as associações organizadoras da marcha deveriam mesmo propor o impedimento da presença institucional (que não das pessoas que a ele pertençam, é claro) daquela organização, cujos contornos políticos se aproximam cada vez mais claramente de uma estratégia de boicote do movimento lgbt.
A ironia do seu nome perde-se de vez, e o carácter de associação secreta reaccionária aproxima-a da organização que inspirou o trocadilho.
A marcha lgbt foi óptima. Foi notório que cresceu um pouco em relação ao ano passado. A divisão em alas acabou por aumentar o colorido da marcha; a escola de samba acrescentou festa à festa; e o facto de o discurso final ter sido feito por uma pessoa transgénero marcou o fim da nossa obediência aos preconceitos. A marcha só não cresceu mais por causa da falta de publicidade - e de publicidade com efeito. Só resolveremos este problema com organização e dinheiro, duas grandes pechas do nosso movimento, que precisa da marcha e dos materiais de propaganda como pão para a boca, se quiser recrutar gerações novas de militantes.
PS: Ao contrário do que alguma comunicação social deu a entender, António Serzedelo e a Opus Gay NÃO fizeram parte da organização da marcha. Embora a marcha, enquanto decorre, seja de tod@s e tod@s sejam bem-vind@s e desejad@s, há um mínimo de rigor que se exige da comunicação social - e da informação que a ela se transmite.
PPS: Hoje ouvi o Francisco Louçã dizer uma frase excelente: "A direita está a comportar-se como se o poder fosse propriedade privada". De facto, a democracia é o projecto Moderno de socialização do poder. Convinha que alguém lembrasse isto a Jorge Sampaio.
Se se confirmar, será mesmo golpe de Estado. Baixo. E deveremos tod@s sair à rua exigindo eleições antecipadas.
O timing desta gente foi perfeito: vitória portuguesa no Euro no dia anterior; intoxicação sistemática com patriotismo e bandeiras; um campeonato "europeu", agora "ganho" por Barroso; a promoção do esquecimento dos resultados das Europeias, desastrosos para o governo.
A confirmarem-se os boatos, um primeiro-ministro abandona o governo para seguir carreira, sem sequer se preocupar em provocar eleições. É provável que nos venham com a treta (e o pior é se é nisso que Sampaio está a pensar) do "prestígio para Portugal", enganando-nos duplamente: é escandaloso imaginar que o presidente da Comissão Europeia possa privilegiar o seu país; e é um insulto vender como bom um dos aliados de Bush.
A confirmarem-se os boatos, Santana Lopes, que não foi eleito para o Parlamento, simbolizará a chegada do mundo do futebol ao comando dos destinos do país.
Em qualquer país civilizado, metade disto é razão para eleições antecipadas. Quem sai à rua para festejar uma vitória no futebol, não é capaz de sair à rua para exigir ser ouvido?
PS: Podem tod@s aproveitar a marcha lgbt de hoje para fazer uma "Antecipadas Já!"
Hoje tenho que ir fazer um número a Coimbra e já não postarei mais. Fica o apelo à participação na marcha - e, claro, como "prémio", a festa do arraial.
Nova Iorque, 1969. Uma rusga da polícia ao bar Stonewall despoletou a primeira revolta LGBT nas ruas e deu início ao moderno movimento. Mais de trinta anos depois, muito se conseguiu e muito está ainda por conseguir. Sobretudo entre nós, trinta anos depois do 25 de Abril e quase vinte depois da adesão à UE. As razões para sair à rua estão, creio, explicadas no post abaixo. Mas, além dessas razões, a marcha é também um momento de festa e alegria em que, à semelhança do velho lema feminista, we take back the streets.
Ontem à noite fui esmagado pela histeria de massas da imensa maioria celebrando um jogo de futebol (!) e, através dele, a emoção básica do "patriotismo". Isso, sim, preocupa-me. A isso, sim, não posso escapar. Isso, sim, é um problema das democracias. Mas hoje de manhã, na véspera da Marcha LGBT, que tanto custa a organizar, contra uma opinião pública patriótica e hooliganistamente homofóbica, contra um presidente da câmara provinciano, e contra a Vergonha que mui@s LGBT sentem de si mesm@s, a maior desilusão foi o seu artigo. Sobretudo por ter sido escrito por quem foi e por se perceber que o que a move não é a homofobia daquela opinião pública, mas sim algo de igualmente preocupante: a fantasia de que "as diferenças existem" independentemente da sua visibilidade, quando, de facto, é a criação de visibilidade e auto-estima que abre o caminho à existência das identidades plurais.
A razão porque se usa a palavra "orgulho" não é substancialmente diferente da que levou, nos anos sessenta, os negros norte-americanos a dizerem "Black is beautiful". Trata-se de inversão do estigma, como qualquer manual de sociologia explica. Certas identidades são minoritárias não especialmente por razões demográficas mas porque são menorizadas. No caso gay, a identidade nem sequer existe como uma possibilidade quando as pessoas nascem. Vivemos numa sociedade onde não é suposto haver homossexuais. As pessoas são todas educadas (mesmo por quem é tolerante, já que a estrutura familiar envia para a heterossexualidade) na ausência da possibilidade de homossexualidade. Mas há mais (e bem diferente de outros "casos identitários", pois a homossexualidade não está marcada no, ou simbolizada pelo, corpo): as pessoas crescem aprendendo que ser homossexual é errado, feio, mau ou, nos casos mais "tolerantes", problemático. E mais ainda: entra-se na auto-identificação como homossexual já com a marca do insulto e da injúria (leia-se, por exemplo, o filósofo francês Didier Eribon).
Quando alguém sai deste esquema, isto é, quando alguém sai do armário para se identificar como homossexual, é da conquista de orgulho que se trata: recusa da vergonha, orgulho em ter conseguido dizer que se tem direito a ser como se é, orgulho em tornar-se visível numa sociedade onde a invisibilidade é a garantia da estigmatização da homossexualidade. No fundo, a palavra inglesa pride talvez até fosse mais bem traduzida, do ponto de vista de uma tradução cultural portuguesa, como respeito ou "honra" (como em "sou gay e com muita honra"). "Orgulho", "respeito" ou "honra", pouco importa: do que a Marcha trata é de visibilização, celebração, combate à homofobia, e exigência de direitos cívicos.
Quanto ao resto, só a pressa de uma crónica ou a desatenção podem justificar a sua análise. As democracias não têm o problema das minorias. Se o tivessem não eram democracias. As democracias têm, sim, o problema das maiorias. Do mesmo modo que não existe uma "questão judaica", mas sim uma questão anti-semita. Para nós, é semelhante: o problema é a homofobia, e o instrumento da homofobia é o insulto e a inculcação da vergonha. O antídoto para isso é o orgulho, o auto-respeito, a exigência de respeito. Mas não é nada de semelhante a um orgulho étnico ou supremacista: como poderia sê-lo, se ser homossexual não é pertencer a um grupo étnico, racial ou nacional, já que ninguém é reproduzido (biológica e socialmente) como homossexual? Quando toda a gente que acaba assumindo-se como homossexual, fá-lo depois de um árduo processo de descoberta?
Esse processo passa por encontrar semelhantes e por, com el@s, construir alguma espécie de movimento e "comunidade", que ajude a dizer aos outros - aos que estão no armário - que podem sair à rua, que podem entrar na polis, e que devem fazê-lo lutando, pois a polis não lhes abre as portas por livre iniciativa. Bem o contrário. Entreabre-a, a custo, para logo de seguida alguém questionar o acessório, esquecendo o fundamental: a exigência de "nem menos, nem mais, direitos iguais" - justamente um dos lemas mais usados nas nossas marchas.
Graças a uma sugestão da Anabela, descobri, depois de ler este simpático artigo, este sítio interessante, agora que o cor-de-rosa e o cinzento se juntam cada vez mais num arco-íris muito peculiar... Passará a constar dos blinks. Não existe, a meu ver, nenhuma guerra de gerações. Existe, sim, um modelo hegemónico, em toda a sociedade ocidental contemporânea, de obsessão com a saúde, a fitness e a juventude, sentido tanto por jovens como por velhos, heteros e LGBTs. O seu efeito negativo afecta todos: os velhos, que se sentem excluídos; os jovens, que ficam desprovidos de uma noção positiva de tempo e envelhecimento, que vai fazê-los sofrerem mais quando chegarem a velhos. Será esta síndrome etarista mais forte entre os gays? Talvez, mas sobretudo ao nível da visibilidade social (bares, revistas, publicidade, porn, engates, etc.) pela simples razão de que o que aí está em causa é mesmo o consumo dos corpos.
Os paulistas vão poder ver uma exposição sobre modernistas portugueses no MAM: Amadeo, Almada, Vieira da Silva, Paula Rego, Joaquim Rodrigo. O último é um dos meus favoritos de sempre. Não era pintor de formação, mas engenheiro ligado à agricultura. Pintava como uma criança atenta, como um viajante, como um aborígene australiano. Coleccionava os ícones, os sinais, as referências, dos seus trajectos. Pintura diário-de-bordo. Pintura estória. Fica aqui um exemplo: Paris-Avignon. Nem ponho o anúncio da marcha para não distrair...
«Até ao fim do ano, será aprovada em França uma lei que punirá severamente as provocações contra homossexuais ou qualquer declaração que tenham [sic] um carácter sexista discriminatório. Respondendo a um pedido expresso do Presidente francês, Jacques Chirac, o texto da futura lei contra a homofobia foi apresentado ontem ao conselho de ministros pelo titular da pasta da Justiça, Dominique Perben, a três dias da "Marcha dos orgulhos" - o novo nome da parada "Gay Pride" francesa.» (Público). Pena é que o jornal não diga que marcha do orgulho há em todo o mundo livre, incluindo Lisboa (por estranho que pareça); que é já no sábado; que o movimento lgbt português também reclama por uma lei anti-homofobia. E, já agora, que acha o Público da frase com que termina a notícia: «os meios de imprensa receiam que o projecto "reduza as possibilidades de expressão e conduza a uma auto-censura prejudicial à boa informação do público"»?
A propósito de Fahrenheit 9/11 de Michael Moore, pode ler-se: «O filme sugere que as duas famílias [Bush e Bin Laden] têm laços muito fortes, sobretudo através da ligação do pai de Bush, o ex-Presidente Bush, e do Grupo Carlyle. Bush Sr. foi consultor da empresa até há pouco tempo, e membros da família Bin Laden investiram dois milhões de dólares no Grupo Carlyle. Sugere-se que a Carlyle "ganhou" com o 11 de Setembro porque tem a United Defense, construtora militar. Mas a empresa sublinha que é a única de todas no país que teve um sistema militar (de dois mil milhões de dólares) cujo contrato a actual Administração Bush anulou.» (Público).
«Maná promete "colaborar" em ajuste de datas de concerto de Madonna » (Público). Giro, giro, era se a primeira parte do concerto fosse um grupo de Manás em transe.
«Ponderando os resultados das eleições europeias de 1999 e de 2004, os dados objectivos indicam, sem margem para dúvidas, que o CDS-PP manteria os seus dois eurodeputados eleitos, tanto num cenário de listas separadas, como de listas conjuntas.» (comunicado do PP, no Público)
Ainda ides a tempo, pois é hoje! Largai vossos computadores, tomai o metro para Martim Moniz e subi a Rua de S. Lázaro, até ao nº 88. Grandes surpresas da tarde: os "nunca antes vistos no mundo real" Boss e Pagan (a.k.a. Renas e Veados)!
Código Penal:
«Artigo 332º. Ultraje de símbolos nacionais e regionais. 1 - Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»
Não é a primeira vez que refiro a minha colega Fátima Bonifácio (que aqui contrario apenas pelo lado político, como é óbvio). Faço-o de cada vez que aparece, de tantos em tantos meses, um artigo dela nos jornais, invariavelmente comentando algum acontecimento político - curiosamente sempre que ocorre algum triunfo da "Nova Esquerda" - i.e., quase sempre (mas não só)o Bloco. Desta feita foi a propósito dos bons resultados nas Europeias. FB acha que não foram bons coisa nenhuma, que é tudo engano das pessoas. Porquê? Porque ela acha que reflectem um estado de espírito temporário e volúvel dos eleitores, incluindo "tias da Lapa". Com que base e rigor isto é dito? Com nenhuns, a não ser palpite e, sobretudo, muito wishful thinking. Deve ser mesmo um caso de obsessão ou de problema identitário, do tipo, "quero que saibam que sendo cientista social não sou de esquerda"...
O Público fala de um bandozinho racista na claque croata. Ontem, na SIC Notícias, um casal de adeptos croatas, com um simpático ar burguês e turístico, respondia assim à pergunta sobre como apoiavam a selecção: "Bem, se eles jogarem mal, nós gritamos que eles são gays e homossexuais e eles mexem-se logo" (seguem-se risinhos despreocupados pela inocente piada e manifestações de boa disposição por parte da "jornalista").
PS: A Croácia é um país dos Balcãs recentemente implementado pela Alemanha e já candidato à UE.
«Durão Barroso, emergiu nos últimos dias como o candidato mais sério à sucessão de Romano Prodi na presidência da Comissão Europeia, um cenário que apenas parece ser posto em causa pelas reservas da Espanha relativamente à sua participação na "cimeira de guerra" dos Açores em 2003.» (Público). Se ele vai, é uma vergonha; se ele fica, é um desastre.
Alguém me dizia outro dia que não tinha conseguido cumprir não sei o quê porque estava com muito trabalho. E dizia: "é que ainda por cima os patrões são espanhóis". Dias depois outra pessoa justificava um atraso dizendo que nem sequer conseguia sair um bocadinho mais cedo, "porque é uma empresa espanhola". Ambas as "explicações" foram dadas com aquele tom de voz que indica conivência - i.e., eu deveria perceber perfeitamente o que me estavam a dizer... A ser verdade, significa que o capitalismo espanhol funciona melhor que o português... Mas o mais importante não é isso, mas sim este regresso do anti-espanholismo com novas vestes - a da associação espanhol=patrão; e a remissão da culpa própria para um outrém marcado simultanemanete pela classe (e aqui é mero populismo de esquerda) e pela nacionalidade (o Outro propriamente dito).
Mais uma. Outro dia no debate sobre casamento - que foi muito bom - às tantas pairou a ideia de que a reivindicação do direito ao casamento lgbt, sendo na aparência uma exigência "conservadora", acaba por ser "revolucionária". A minha colega Kath Weston, que tem estudado o parentesco e as famílias gay e lésbicas, termina o seu texto Romancing the Real (também traduzido pela CM, para a mesma colectânea sobre género e sexualidade que estou a editar)assim:
«As famílias lésbicas e homossexuais masculinas não podem ser desvalorizadas enquanto ficções erigidas sobre um modelo heterossexual de constituição do parentesco. No entanto, elas incorporaram símbolos prevalecentes e apelos à autenticidade de tal maneira que é difícil separar as construções dominantes da família das "alternativas". Através do paradoxo e da inversão - as relações de sangue são escolhidas, laços duradouros criam famílias verdadeiras - as ideologias homossexuais do parentesco recorreram a categorias comuns para gerar significados menos comuns. Por vezes, com as ideologias como com as relações duradouras, plus c'est la même chose, plus ça change. Quanto mais as coisas ficam na mesma, mais elas mudam.»
Estava aqui a rever uma tradução (de Catarina Mira) e lembrei-me de transcrever esta passagem de Judith Butler em Gender is Burning. Pareceu-me propositada, em semana de marcha ( e Euro...) e assim partilho um pouco o trabalho, para lá da solidão do gabinete:
«Afirmar que todo o género é como o drag, ou que é drag, é sugerir que a "imitação" está no centro do projecto heterossexual e dos seus binarismos de género, que o drag não é uma imitação secundária que pressupõe um género anterior e original mas, sim, que a heterossexualidade hegemónica é ela mesma um esforço constante e repetido no sentido de imitar as suas próprias idealizações.»
PS: (Esta agora é vaidosa) Antes de sequer conhecer a Butler eu já tinha escrito algo de semelhante em relação à masculinidade. É o que se pode chamar invenção paralela (ou o simples facto de muitos de nós pensarmos com os mesmos ingredientes).
Graças a um trabalho duma aluna (quem diz que não se está sempre a aprender?) descobri as Guerrilla Girls, um grupo feminista de intervenção nas artes. Fica o link destas fazedores de posters e autocolantes.
These are (so far!) the towns where the Portuguese State sent women to court for the "crime of abortion" in the last few years. Portugal is a member of the European Union.
Coffee and cigarettes, de Jim Jarmusch. Vale a pena, sobretudo, pelo episódio da Cate Blanchet contracenando consigo própria e pelo episódio com Alfred Molina e Steve Coogan. De resto, muito desigual - e mesmo um bocado lame.
No lançamento de um livro sobre esgotos, e tendo algures por pano de fundo o caos da "construção" do túnel das Amoreiras, PSL diz ser contra a marcha lgbt na Av. da Liberdade. Ele sabe que o argumento colhe junto dos alienados - as pessoas que acham que o trânsito é o maior (e se calhar único) valor a preservar em Lisboa. Sabe, também, que ao dizer que a avenida deve ficar reservada para datas especiais nacionais e eventos desportivos, está a dizer que a marcha lgbt não tem valor cívico. O cidadão comum não sabe que as marchas lgbt têm décadas nos países democráticos e fazem parte das manifestações de cidadania anti-discriminatória e inclusiva - de sindicatos, como o 1º de Maio, de mulheres, de anti-racismo, etc. E sabe que as pessoas não sabem que a rua, o espaço público, é de todos e que a interrupção do sagrado trânsito é um custo da democracia (e baixo, sobretudo a um sábado, na Av. da Liberdade...). E sabe que muita gente engole argumentos sobre segurança, desde que se agite, a partir de misteriosas fontes, o fantasma de skins ou hooligans, quando a polícia existe justamente para proteger os cidadãos e o seu direito de manifestação. PSL sabe isto tudo e é por isso que as suas declarações - proferidas entre um esgoto e um túnel abandonado - devem ser desprezadas e viradas do avesso: obrigado pela publicidade!
Vejam isto e deliciem-se... Santana Lopes tem o descaramento, inclusive, de dizer que tem autorizado o Pride em Monsanto. Correcção, caro PSL: você atirou o Pride para o Parque do Calhau em Monsanto!
Já tinham circulado "bocas" sobre eventuais tentativas de impedir a Marcha. Primeiro, os boatos diziam que PSL não permitiria; depois, outros boatos falavam da impossibilidade de haver polícia; outros ainda referiam os perigos eventuais de hooliganismo, por natureza tendencialmente homofóbico, em tempos de Euro. A todas estas questões NUNCA se deve responder acatando os argumentos como válidos. É que a obrigação dos poderes públicos é não só apoiar as manifestações da sociedade civil, como fornecer meios e protecção para eventuais ameaças.
Com sindicatos destes bem podemos prescindir do movimento sindical. Coitadinho do polícia municipal que até tinha razão quando fez afirmações racistas...
Como é que isto é possível? Como é que isto é possível depois de nos terem convencido da necessidade de repor fronteiras, de controlar os cadastros das pessoas que vêm ao Euro e de prever e reprimir o hooliganismo e outras barbaridades? Mais: como é que isto é possível, tratando-se claramente de neo-nazis e já não só de claques?
Um nem merece imagem: Taking Lives é uma tontice. Não percebo como a Angelina Jolie é tão subaproveitada. Parece que só a querem para fazer de vulcão sexual à beira de explodir. O outro merece: The L Word, de que vimos o episódio-piloto emprestado por uma amiga. Embora eu sinta sempre uma frieza com os ambientes LA e West Hollywood, é um bálsamo poder ver um fresco de personagens lésbicas vivendo a vida normal (quer dizer: de pessoas-bem-na-vida normais...) numa série de TV normal.
Dias estranhos. Talvez a principal razão para o meu silêncio tenha sido a imersão nos trabalhos dos meus alunos e das minhas alunas. O pensamento dos outros é quase sempre estimulante, mas quando os outros são mais de cem, o resultado é o curto-circuito mental, uma espécie de sensação de alienação. Em suma, o meu cérebro congelou. Bem, a palavra não é a mais correcta: com o calor que fez a OMS deveria ter emitido um comunicado a dizer que "Portugal não é um local indicado para a vida humana". Ontem as coisas desbloquearam um pouco, com o debate sobre casamento, que foi muito estimulante. A prova viva de que é melhor discutir pequenas diferenças e desacordos no interior de uma concordância geral (que os lgbt devem poder casar) do que debater entre "grandes opostos" (o que normalmente só redunda em "porrada" ideológica).
Ele, que proferiu declarações homófobas, ainda lá está. O sub-comissário da polícia municipal que proferiu declarações racistas, não. Ele diz frases como «ninguém ficará mais de seis meses à espera de saber se está apto para adoptar ou não» - excepto, é claro, todas as pessoas que a Lei diz não poderem adoptar (porque são negras, perdão, porque são homossexuais) - sem que a mínima dúvida de consciência se lhe instale na cabeça. Assim como diz que «uma adopção é melhor do que qualquer instituição do mundo» - desde que os adoptantes sejam cidadãos, claro, isto é, brancos, perdão, heterossexuais. O outro foi para a rua, e ainda bem. Este, ainda lá está. Até ao dia em que seja recusada a adopção de uma criança branca por um casal negro, porque a criança será discriminada pelos outros putos do infantário...
O PS teve um vitória histórica; o Bloco também, e provavelmente saiu ontem da infância e mais saltos de crescimento se anunciam; e o PC aguentou-se com brio.
O PP já era; Manuel Monteiro não existe; e Durão Barroso (quem se importa com Deus Pinheiro, sinceramente?) devia ficar em casa hoje a reflectir.
Mas não: o PSD começou ontem por dizer que o grande vencedor tinha sido a abstenção. Com um sorisinho nos lábios (um verdadeiro insulto à democracia, que não pode gostar de abstenção), o porta-voz começou a noite eleitoral insultando as pessoas que foram votar. A partir daí foi o descalabro dos derrotados, que culminou com Durão Barroso tirando a seguinte lição dos resultados: vai continuar, ainda com mais empenho, a sua política!
Num momento de genuíno tropeção linguístico, Ferro Rodrigues quase disse "Durão Barrete". Pois: os portugueses não o enfiam mais, mas Barroso agitava-o histericamente ontem à noite: "Olhem que lindo o meu barrete! Olhem que lindo o meu barrete!". Alguém devia dizer-lhe: "Pouco barulho, menino, está na hora de ir prá cama!".
O país entrou em histeria com o Euro 2004. O governo promoveu essa histeria. O primeiro jogo foi entre Portugal e a Grécia. A Grécia é uma das selecções menos favoritas. Portugal perdeu com a Grécia. Amanhã há eleições europeias. Portanto: será amanhã a Revolução?
Pois é, corro o risco de arranjar inimigos ao dizer mal das bandeiras e do futebol... Para desanuviar, um cartoon do meu cartoonista favorito, Gary Larson, sobre um dos seus (e meus) animais favoritos. Hoje vinha para Lisboa por uma estrada com vacas e sempre que as vejo, ocorre-me esta...
A morte de Sousa Franco abalou-me, mas não farei aqui um daqueles panegíricos mais ou menos hipócritas de última hora (quem deveria fazer isso era a senhora Ana Manso, por exemplo...). Abalou-me porque a morte é uma coisa palerma (o melhor insulto para coisas horríveis é ao mesmo tempo desprezá-las): mas sobretudo porque aconteceu no meio de uma campanha eleitoral onde ficou demonstrado (e aqui concordo com Pacheco Pereira) que o "sistema" não funciona. Refiro-me ao sistema das próprias campanhas, dependente dos caciquismos partidários locais e da preguiça e sensacionalismo de grande parte da comunicação social. Peixeiras (o estereótipo delas, não as pobres senhoras, perfeitamente respeitáveis), insultos, macacadas, e multidões fazem sistema com políticos apparatchik, jornalistas da treta, TVs de grandes conglomerados, e falta de ideias. Que Sousa Franco tivesse que morrer neste lodaçal, é triste. Que as últimas imagens dele sejam ao lado de dois capangas a quem não compraria nem um relógio, é tristíssimo. Como é triste que o PS aceite ter esta gente - ou que o PS seja, em grande medida, esta gente.
Não se percebe porque as campanhas não funcionam simplesmente na TV e com sessões de esclarecimento. Assim como não se percebe porque não é possível votar à distância, ou pela net ou nos postos de correio (oferecendo recursos adequados a vários estratos em termos sociais e de literacia), diminuindo assim a abstenção.
Vejo o país inundado de bandeiras portuguesas. Sobretudo os táxis. Quando vejo os táxis fazerem alguma coisa, "saco da pistola". Ainda pertenço à geração da associação entre os símbolos nacionais e o antigo regime - uma associação que o Portugal pós-25 de Abril não soube desfazer. Compreendo que outras gerações possam não ter este problema e adiram aos símbolos de outra forma - que até poderia ser semelhante ao tipo de comunitarismo não-agressivo dos escandinavos quando colocam a bandeira mesmo na mesa do restaurante. Mas quando isto acontece por causa do futebol, e no meio de uma campanha para as europeias, há qualquer coisa de feio e triste, como se as pessoas tivessem que se agarrar a isto (os símbolos do grupo e os jovens futebolistas), na ausência de outras motivações: construir comunidade(s), ajudar a mudar o mundo, criar algo, solidarizarem-se com algo, enfim, coisas positivas e não coisas negativas - porque a redução ao clã, perdoem-me, só pode ser negativa; assim como a remissão da capacidade de "ganhar" para um grupo de jovens, masculinos, dopados e altamente financiados. É triste, pronto. Vejo a bandeirola e sinto enjôo.
Se calhar sou "um intelectual" (understatement of the year!). Gosto, por exemplo, da ideia de Europa, que não diz nada a quase ninguém. Não me importa nada que não haja uma identidade europeia "sentida". Gosto de uma coisa que não é "sobreidentificada", que não tem símbolos que põem as pessoas em estado de emoção de massa, que não sobrevive aos sentimentos nacionais e regionais. Gosto. Porque me parece uma ideia mais grega do que romana (para plagiar o Eduardo Lourenço no Público de hoje). Com todos os defeitos que tem, a Europa pode servir para contrabalançar quer o nacionalismo, quer a hegemonia do Império. E a forma de demonstrar que se apoia esse desígnio é ir votar.
PS: Gosto de pensar que não é por snobeira que digo isto. Sou perfeitamente capaz de sentir emoções em grupo e mesmo em massa em torno de várias identificações, símbolos e causas. Nisso, somos todos iguais. Para mim a questão está no nível e no conteúdo daquilo que gera a emoção: quanto mais abrangente, colectivista e abstracto o nível (como a Nação) pior. Quanto mais igualizador no mau sentido o conteúdo (como o nacionalismo), pior.
Toda a gente parece achar normal que o dirigente político de direita Santana Lopes tenha demitido o sub-comissário racista. E é. Mas também não é. Pois há bem pouco tempo Luís Villas-Boas não foi demitido pelo goverbno de direita pelas suas afirmações homofóbicas.
Isto indicia uma coisa que já sabemos. Por causa da experiência da Segunda Guerra Mundial (do nazismo, do Holocausto) e por causa dos processos de descolonização que se lhe seguiram, o racismo transformou-se numa forma de vergonha social. Isto é, tornou-se de senso comum (quase) achar que ser racista é feio. Os próprios governantes de direita se sentem obrigados a demonstrar anti-racismo. As pessoas comuns fazem uma inflexão de discurso dizendo que "não sou racista, mas...". Mas a principal inflexão é a que se deu de "raça" para "cultura". Esta passou a ser vista como uma característica inerente e essencial de grupos concretos. Como algo de puro, incomensurável, incomparável e que necessariamente gera atritos. Esta interpretação completamente errada da noção de cultura substitui agora o racismo explícito e chama-se, segundo a minha colega Verena Stolcke, "fundamentalismo cultural". É isso que o sub-comissário expressou quando falou dos "usos e costumes" (essa velha expressão de uma velha e reaccionária antropologia)das pessoas de "tez escura" (e cá está o receio de usar a linguagem racializada... usando-a). É contra este fundamentalismo cultural que tem que se lutar também.
Nada de semelhante aconteceu, ainda, com a homofobia, pelo menos entre nós. Mas há-de acontecer. E nesse momento o preconceito manifestar-se-á sob outras formas. É provavelmente impossível imaginar um mundo sem preconceitos. Mas é perfeitamente viável um mundo com leis contra a manifestação do preconceito e com pedagogias para a sua destruição.
Tenho estado mergulhado a ler e corrigir dezenas de trabalhos dos meus alunos. O exercício consistiu em fazerem histórias de família de modo a perceberem o processo de formação das identidades individuais como em grande medida resultante de processos de reprodução social e transmissão de vários "capitais" (e falta delas) ao longo das gerações. Fiquei atónito com a recorrência de más relações entre pais e filhos; de violências físicas e simbólicas; de preconceitos de classe, de género, de raça, de orientação sexual, de religião, de...; de "traições" e "infidelidades mas, sobretudo, de deslealdades. Tudo o que a "moral do parentesco, da família e do casamento" se esforça por marcar como anómalo.
Já agora, para benefício dos meus alunos, a rectificação de um erro recorrente: quando confrontados com figuras de mulheres e mães fortes, é comum aparecer o termo "matriarcal". Nada de mais enganador. Aquilo a que se querem referir é a situações do que chamamos "matrifocalidade", quando a gestão doméstica e familiar pelas mulheres lhes confere um espaço de relativo poder, que redunda na importância psicológica que depois assumem para os filhos. Mas esta matrifocalidade pode ser - e é, no caso da nossa sociedade - um "sub-sistema" do patriarcado e, em boa verdade, um sub-sistema de reprodução do patriarcado, o qual se define como um sistema baseado na distinção de dois géneros correspondentes a dois sexos, tidos como complementares mas vividos numa assimetria de poder, e assente na proibição da homossexualidade. O matriarcado pura e simplesmente não existe e usar a expressão mesmo que entre aspas pode acabar por fazer desviar a atenção do patriarcado, criando uma falsa simetria.
Na segunda-feira passada Richard Zimmler foi entrevistado na 2: por Ana Sousa Dias. Sem qualquer problema, definiu-se como homossexual, naquilo que essa condição influencia o seu trabalho de escritor - o mesmo que ser judeu, i.e., ter adquirido um certo olhar de fora para dentro. No fim da entrevista contou como veio para Portugal, referindo a sua relação, já com 25 anos, com o cientista Alexandre Quintanilha. Por alguns minutos tive a sensação de estar num local e num tempo civilizados...
Já hoje, no Público, Teixeira da Mota foi resgatar um processo judicial daqueles que demonstram a homofobia institucional em toda a sua crueza. Apesar do desastrado final da crónica, serve para que ninguém torne a dizer duas coisas: que a História não serve para nada; e que a homofobia nunca foi terrível em Portugal.
Aqui está a notícia da TSF a que o Ivan Nunes se refere e que ontem li comentada já-não-sei-em-que-blog:
«Em causa está uma notícia sobre Manuela Ferreira Leite. Na abertura da Secção Nacional do «Público» estava escrito que a ministra das Finanças não tinha explicado por que não estaria isenta de coima fiscal mas, nesse mesmo dia, a ministra desmentiu a notícia através de uma nota pessoal dirigida ao director do jornal. José Manuel Fernandes pensou em publicar a nota da ministra, tendo este trabalho sido dado pela editora da Secção Nacional, Ana Sá Lopes, ao jornalista João Ramos de Almeida. O director propôs ser ele mesmo a escrever o artigo mas, Ana Sá Lopes considerou que isso não fazia qualquer sentido e pediu ao jornalista para tratar a informação. A notícia foi paginada mas nunca chegou a ser publicada, porque a direcção decidiu retirar o artigo. Ana Sá Lopes demitiu-se. José Manuel Fernandes falou com a editora e disse-lhe que tinha perdido a confiança nela e já há muito tempo que não confiava em João Ramos de Almeida. Disse ainda que a notícia não tinha sido publicada porque a ministra não queria que fosse o jornalista a tratar do assunto. O Conselho de Redacção questiona, em comunicado, se se trata de censura, considerando que a notícia é inatacável e deveria ter sido publicada. Outro comunicado foi, entretanto divulgado, assumindo a demissão de funções porque o director disse que não se reunia mais com aquele órgão.»
Gosto bastante dos textos de Ana Sá Lopes. E o João Ramos de Almeida (e ele que me desculpe, mas há-de ser sempre o "Janeca") era um dos meus melhores amigos no liceu e se há coisa que sempre me impressionou positivamente nele foi a rectidão (que às vezes até nos parecia, aos outros amigos do grupo mais "baldas", exagerada!...). Estas minhas afinidades electivas valem o que valem e nada têm de objectivo. Mas gostava de saber de onde virá a "desconfiança" de JMF em relação a eles? E porque não transparecem estes conflitos no próprio jornal? Afinal um jornal é também um espaço comunicacional ou é apenas uma empresa e produto? Por que têm que ser os outros órgãos de comunicação social a dar conta destes conflitos? Porque não os assume o Público perante o seu... público?
Entre o cheiro a estevas e o cheiro a algas, meia dúzia de casas branco-Alentejo e, mesmo assim, algum cosmopolitismo. É a Zamba, nome de guerra que não sei se já alguém lhe deu. A preparar-me para, daqui a dias, corrigir cerca de 100 trabalhos de 15 páginas cada - o que os mais cínicos poderiam chamar de "produção em massa de conhecimento"... A partir de agora, seja como for, a vida será entre LESBoa e Zamba, transformadas assim, pelos nomes, em cidades imaginárias.
Dois dias, quase, a lavar chão, limpar pó, arrastar móveis, matar mosquitos. E ainda dizem que os intelectuais não fazem mais nada que não seja pensar... Depois, o prémio de uma prainha hoje absolutamente privativa para dois - um paraíso de rochas onduladas, cores terrosas, mar translúcido. A ler A Louca da Casa, de Rosa Montero: muito aconselhável.
Entretanto, lá fora vão acontecendo coisas. As mulheres, graças à deusa, reagiram em força às barbaridades da Corporação Médica sobre quotas para homens; Reagan morreu, embora Bush e Schwarzenegger continuem viçosos; a França entrou na Rayvolução Matrimonial (pena é que os media de cá não tenham dado tanta atenção a um processo bem mais interessante e bem feito, o americano...); e a campanha alegre para o PE continua.
A propósito de campanha, não sei como justificar a mim e aos outros a minha ausência e o meu progressivo auto-afastamento de cargos de decisão no Bloco. Sobretudo em tempos de absoluta necessidade de luta contra a direita. Vou provisoriamente consolando-me com a seguinte justificação: embora ache que a política partidária é ou deve ser uma actividade nobre da democracia (opinião bem minoritária) , tenho descoberto que há coisas para as quais não somos dotados (e isso só se sabe depois de se ter tentado - e muito) e que nos roubam tempo e cabeça para fazer aquilo para que somos de facto dotados (que é quase sempre aquilo em que somos bons e aquilo em que temos prazer). Há sem dúvida formas e formas de fazer política.
A explicação vale o que vale e a experiência e a consciência não tardarão a dar o seu veredicto sobre a validade das escolhas... A Zamba também serve para fazer balanços - mas seja como for não deixarei de conduzir 3+3 horas para ir votar.
Fui ver o Almodóvar a seguir a ter postado o Hockney... Curiosa coincidência. Até porque posto pinturas quando tenho "silêncios mentais" e ocorrem-me imagens que imediatamente me conduzem a quadros específicos cá na minha pinacoteca cerebral...
La Mala Educación, portanto: filme muito bom. A brincadeira com o género noir resulta no que poderia chamar-se queer noir, pois Almodóvar joga com a sexualidade e as personagens numa esfera para lá das categorias. Ele está em Espanha, dentro de Espanha em Madrid e dentro de Madrid na crista cosmopolita que lhe permite pensar e fazer filmes para lá da preocupação pedagógica ou política. É por isso que não importa que o padre pedófilo se transforme em homossexual no armário mais tarde na vida; ou que a sugestão do amor entre os miúdos como algo de positivo versus o seu ódio ao assédio do padre de que um deles é vítima não seja apresentada como um "programa" sobre a separação entre homossexualidade e pedofilia; ou que Ignacio acabe sendo transexual. Almodóvar não vive cá, na pia casa portuguesa, onde seria difícil fazer este filme, hoje.(O que me leva a temer como a maior parte do público absorverá este filme...). Mas, é claro que estas questões não se resumem à pobreza de uma comparação entre contextos: Almodóvar é um cineasta maior, universal e, por isso, diz, mostra e faz exactamente o que tem a dizer, mostrar e fazer.
E, depois, é um filme lindo plasticamente, como é lindo Gael García Bernal - o meu mergulhador do Hockney antes de o ser...