OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


11.6.04  

Eleições e outras emoções.

A morte de Sousa Franco abalou-me, mas não farei aqui um daqueles panegíricos mais ou menos hipócritas de última hora (quem deveria fazer isso era a senhora Ana Manso, por exemplo...). Abalou-me porque a morte é uma coisa palerma (o melhor insulto para coisas horríveis é ao mesmo tempo desprezá-las): mas sobretudo porque aconteceu no meio de uma campanha eleitoral onde ficou demonstrado (e aqui concordo com Pacheco Pereira) que o "sistema" não funciona. Refiro-me ao sistema das próprias campanhas, dependente dos caciquismos partidários locais e da preguiça e sensacionalismo de grande parte da comunicação social. Peixeiras (o estereótipo delas, não as pobres senhoras, perfeitamente respeitáveis), insultos, macacadas, e multidões fazem sistema com políticos apparatchik, jornalistas da treta, TVs de grandes conglomerados, e falta de ideias. Que Sousa Franco tivesse que morrer neste lodaçal, é triste. Que as últimas imagens dele sejam ao lado de dois capangas a quem não compraria nem um relógio, é tristíssimo. Como é triste que o PS aceite ter esta gente - ou que o PS seja, em grande medida, esta gente.

Não se percebe porque as campanhas não funcionam simplesmente na TV e com sessões de esclarecimento. Assim como não se percebe porque não é possível votar à distância, ou pela net ou nos postos de correio (oferecendo recursos adequados a vários estratos em termos sociais e de literacia), diminuindo assim a abstenção.

Vejo o país inundado de bandeiras portuguesas. Sobretudo os táxis. Quando vejo os táxis fazerem alguma coisa, "saco da pistola". Ainda pertenço à geração da associação entre os símbolos nacionais e o antigo regime - uma associação que o Portugal pós-25 de Abril não soube desfazer. Compreendo que outras gerações possam não ter este problema e adiram aos símbolos de outra forma - que até poderia ser semelhante ao tipo de comunitarismo não-agressivo dos escandinavos quando colocam a bandeira mesmo na mesa do restaurante. Mas quando isto acontece por causa do futebol, e no meio de uma campanha para as europeias, há qualquer coisa de feio e triste, como se as pessoas tivessem que se agarrar a isto (os símbolos do grupo e os jovens futebolistas), na ausência de outras motivações: construir comunidade(s), ajudar a mudar o mundo, criar algo, solidarizarem-se com algo, enfim, coisas positivas e não coisas negativas - porque a redução ao clã, perdoem-me, só pode ser negativa; assim como a remissão da capacidade de "ganhar" para um grupo de jovens, masculinos, dopados e altamente financiados. É triste, pronto. Vejo a bandeirola e sinto enjôo.

Se calhar sou "um intelectual" (understatement of the year!). Gosto, por exemplo, da ideia de Europa, que não diz nada a quase ninguém. Não me importa nada que não haja uma identidade europeia "sentida". Gosto de uma coisa que não é "sobreidentificada", que não tem símbolos que põem as pessoas em estado de emoção de massa, que não sobrevive aos sentimentos nacionais e regionais. Gosto. Porque me parece uma ideia mais grega do que romana (para plagiar o Eduardo Lourenço no Público de hoje). Com todos os defeitos que tem, a Europa pode servir para contrabalançar quer o nacionalismo, quer a hegemonia do Império. E a forma de demonstrar que se apoia esse desígnio é ir votar.

PS: Gosto de pensar que não é por snobeira que digo isto. Sou perfeitamente capaz de sentir emoções em grupo e mesmo em massa em torno de várias identificações, símbolos e causas. Nisso, somos todos iguais. Para mim a questão está no nível e no conteúdo daquilo que gera a emoção: quanto mais abrangente, colectivista e abstracto o nível (como a Nação) pior. Quanto mais igualizador no mau sentido o conteúdo (como o nacionalismo), pior.

mva | 17:25|