OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


30.6.04  

O futebol-pátria.



Há muito tempo que penso explicar a muita gente porque não aprecio futebol e porque não consigo participar da euforia nacional em torno do Euro. A primeira e mais simples explicação é estereotípica: eu seria um intelectual, esquerdista, burguês, estrangeirado, elitista e gay - tudo condições propícias para desprezar o futebol e o patriotismo como emoções menores. É verdade que sou todas aquelas coisas. Mas também é verdade que - por razões éticas e por ser antropólogo - critico algumas delas como posturas demasiado fáceis, e tento vigiá-las e até recusá-las (o elitismo estrangeirado e intelectual, claro...). Também como antropólogo conheço (e concordo com) as interpretações do carácter, função e simbologia culturais e sociais do futebol e do patriotismo. Mas como pessoa isso não faz com que as aceite. Quanto ao futebol, até nem tenho grande coisa a dizer: simplesmente não aprecio, como não aprecio camarões, diospiros ou caviar. Quanto ao patriotismo em geral, e em torno do futebol em particular, já se trata de uma postura mais ética e propositiva. Sei - e sinto-o e exerço-o noutras esferas - que toda a gente precisa de se emocionar em colectivo, de sentir o espírito de comunidade e pertença, de vibrar com alguma forma de competição, torcendo pelo mesmo lado com outros. Sei também que há aspectos da identidade nacional que são estruturantes: é claro que falar a mesma língua me coloca até certo ponto numa comunidade de comunicação; assim como viver em Portugal é para mim mais fácil do que viver noutros sítios e há lugares, cheiros e sabores de memória e mesmo nostalgia. Mas isto rapidamente demonstra os seus limites: comunico melhor sobre certas coisas com um eslovaco com quem partilhe valores e ideias do que (e mesmo assim só em princípio) com um militante anti-aborto homofóbico, classista, sexista e racista, por exemplo; e a sensação de "lar" em Portugal advém simplesmente do hábito, de ter incorporado o funcionamento de muitas coisas. Quanto à vontade de comunidade, também a tenho. Só que não a tenho em relação a esta comunidade do futebol-pátria. Porque - do ponto de vista colectivo e social, logo político (que não estritamente pessoal) - acho que demonstra o pior do nacionalismo e do patriotismo, que é a nivelação por baixo, a invisibilização das diferenças, o escamoteamento das desigualdades, e porque dá azo a manipulações políticas alienantes (como se vê por estes dias de crise política). Isto resulta de um puro esforço intelectual e de juízo ético e de valores? Também, mas não só. É que do lado emocional, imediato, já há algum tempo (não foi sempre assim, nomeadamente na juventude) que não vibro com a selecção nacional, não vibro com o hino, não vibro com a bandeira (a questão aqui até é mais estética...), não vibro com vitórias portuguesas só por serem portuguesas. E voltamos ao princípio: sei que muita gente não vai acreditar que é mesmo assim. E muita gente dirá que concorda comigo, só que também vibra com o patriotismo futebolístico, sentindo assim que tem algo a mais, que a mim me falta. Talvez. Mas a verdade é que quando vejo as bandeiras todas, quando as conversas giram esmagadoramente em torno da "coisa", quando a "coisa" ganha prioridade sobre a crise política, quando as celebrações das vitórias (ou os choros das derrotas) geram etnocentrismos bacocos, ou quando os políticos de direita fazem cálculos com o futebol-pátria, prevalece em mim a raiva e o des-gosto. Dir-me-ão que isto é dar demasiada importância ao circo romano. Pois... justamente: circo romano.

Nada do que aqui digo implica que despreze as pessoas que gostam do futebol-pátria. Entre elas estão algumas das que me são mais queridas. O meu ponto é que o contrário também deve ser verdadeiro: o meu des-gosto com o futebol-pátria não pode ser demitido, de uma penada, como prova de snobismo.

mva | 17:21|