It's IRS time, folks. Não se esqueçam da novidade: os sujeitos passivos de IRS podem atribuir uma quota equivalente a 0,5% do imposto liquidado a uma instituição humanitária de solidariedade social ou a uma pessoa colectiva de utilidade pública de beneficência ou de assistência humanitária. No Anexo H, Quadro 9, Campo 02, cada contribuinte pode indicar a denominação e NIPC da entidade à qual pretende atribuir o dinheirito. Confirmem que as vossas instituições favoritas podem receber esses donativos e perguntem-lhes o nº do NIPC. E aquel@s de vocês que estiverem em associações dessas, publicitem o facto.
Pertenço a muitas formas associativas: partidárias, como o Bloco; de movimentos sociais, como o lgbt (sou sócio da ILGA Portugal, por exemplo); profissionais/científicas (na área da antropologia); sindicais (SNESup); e, por defeito, ao condomínio onde moro (ah: sou também cidadão da República Portuguesa, mas essa não escolhi).
É esta diversidade - que não significa nem separatismo entre cada parte, nem contaminação completa entre elas - que enriquece a vida colectiva e que, já agora, me enriquece (no sentido de "sinto-me enriquecido por ela").
Isto para dizer o quê? Que não subscrevo o discurso da novidade absoluta, salvífica, fantástica, originalérrima, do Bloco no quadro político-partidário. Nem quando esse discurso é feito pelo BE, nem quando isso é esperado ou exigido cá fora. Mas também não subscrevo o discurso que diz que o Bloco prometeu e não cumpriu, que "afinal é igual aos outros".
Porquê? Porque acho que um partido político é um partido político, e não tenho grandes ilusões quanto a isso. Serve para o que serve. E outras coisas servem para outras coisas. Nisto não concordo com muitos dos meus colegas do Bloco, e sou tido como uma pessoa "menos movimento e mais partido", além de pertencer ao que eu próprio classifiquei, auto-ironicamente, como "a direita da esquerda (que não é o mesmo que dizer a esquerda da direita)".
Ao fim de cinco anos, continuo no Bloco. Invisto menos do que investi, observo mais do que participo. O que também não me dá muita autoridade para criticar aquilo que não ajude a mudar ou que não impeça de mudar. Faço agora mais política por outros meios - meios que domino melhor (no sentido de ter mais capacidades para), onde posso contribuir melhor, onde tenho mais prazer (e estas três coisas ligam-se). Mas continuo a achar fundamental que no sistema político-partidário e representativo português exista um Bloco. E que, no PS, no PC, nos Renovadores Comunistas, no Partido da Terra, ou onde quer que seja, existam pessoas com ideias como as que fundaram o Bloco e como as que germinaram a partir dos encontros que nele se deram. As propostas e actuação política do Bloco têm o que o PC nunca soube/quis fazer e o que o PS tinha obrigação de saber/querer fazer.
Enough party politics for now. Voltarei ao tema no sexto aniversário.
Excelente post do Daniel Oliveira no Barnabé. De facto, os jornais estão a dar conta de uma aguerrida "guerra cultural" em torno quer do aborto, quer dos direitos lgbt. Uma estranha aliança entre liberais, conservadores e reaccionários torna-se cada vez mais visível. Os liberais acham que estas coisas do sexo e da identidade são para ser vividas portas adentro; os conservadores acham que estas modernices põem em causa o tecido da sociedade; e os reaccionários juntam-se em movimentos da "Vida" ou de "Famílias numerosas" para atacarem de frente a modernidade. Mas todos se unem na suspeita em relação ao progresso.
Uma das estratégias é pegarem em noções que nem sequer têm efeito em Portugal, e dizerem que elas estão ultrapassadas e são ridículas, apenas porque estão sujeitas a debate feroz noutros locais, nomeadamente nos EUA. É o caso do "politicamente correcto" (o "alvo" de Henrique Monteiro do Expresso, que o Daniel critica). "Politicamente correcto", em rigor, não é uma brincadeira com as palavras (e estas "não são para brincadeiras", de qualquer modo...): politicamente correcto é o que nós somos quando exigimos direitos iguais, sabendo que a hegemonia nos remete para a margem, a sombra e o fim da escala.
Ontem na "Mad TV" (programa de que gosto muito, na SIC Radical) faziam um sketch com o "All in the Family" actualizado para os nossos tempos. Archie Bunker já não dizia barbaridades sexistas e racistas: desculpava-se imenso e usava as palavras "certas". No fim, o slogan dizia: "All in the Family 2001: no longer offensive; no longer funny". A ironia é certeira. Mas: ela é feita nos EUA (e num programa que tem sempre um discurso emancipatório), onde a correcção política já deu direitos e visibilidade a muita gente excluída. Não é transponível para cá, onde as "opiniões" sobre a inferioridade dos negros ou a anormalidade dos homossexuais não são as opiniões de lobbies reaças organizados que discutem na praça pública contra um senso comum político que já interiorizou a correcção política (e pouco importa se hipocritamente: eu quero é ter direitos, não quero que as pessoas estejam convencidas).
Cá, as opiniões racistas e homofóbicas (e sexistas) é que são hegemónicas no discurso público e político. Só mesmo isso explica que LVB não tenha sido demitido do cargo de indigitação pública que ocupa, e que o que disse seja visto como "opinião". E que se culpem as vítimas dizendo que somos nós que queremos logo ver homofobia em tudo.
Falei com pessoas do grupo parlamentar do Bloco e foi-me garantido que, afinal, foi feito e emitido, logo no dia seguinte, um comunicado criticando duramente as afirmações de Luis Villas-Boas. Estou à espera de receber uma cópia desse comunicado para, por razões de rigor e justiça, colocá-lo aqui. O comunicado não foi noticiado nos jornais, o que é responsabilidade destes. Mas não posso deixar de fazer notar que tão-pouco foi colocado na página do Bloco - e aí já é uma questão de quanta visibilidade se dá. Foi-me também dito que nesse comunicado não é pedida a demissão de LVB. E nisto estou em pleno desacordo. Mas não quis deixar de fazer este "desmentido" de um post anterior em que dizia que o Bloco não se tinha pronunciado.
Das manifestações de "donas de casa" batendo em panelas contra o Allende no Chile pré-golpe até esta que se anuncia, "silenciosa" (como a maioria silenciosa do Spínola contra a revolução de Abril, alguém mais mature se lembra?), a direita-direita que quer impor aos outros as suas opções religiosas manifesta-se nas ruas muito de vez em quando. Mas quando o faz, fá-lo com o azedume de quem se viu obrigado a sair do sofá. Quando "eles" descem à rua, podemos ter a certeza de uma coisa: a sociedade está mesmo crispada e dividida. Como foram eles que inventaram a balela de que as ideologias acabaram, de que acabou a diferença esquerda/direita (porque isso lhes dá jeito, sobretudo no plano político-económico), não se queixem agora se a política for feita em torno das questões dos estilos de vida, das identidades e dos direitos de cidadania. Estas manifs não são a favor dos embriões: são contra quem quer direitos modernos (quem tenha ontem visto o homem do "Maternidade e Vida" no debate na NTV sobre adopção por homossexuais sabe o que digo. Ele vai lá estar, com certeza, ofegante e vermelhusco (salvo seja), walking for the embryos...)
Something's gotta give. À partida, um problema, um dilema, e uma esperança: o problema é que nunca consegui engolir (salvo seja) o Jack Nicholson; o dilema é que o Keanu é uma velha (?) fantasia minha, mas-coitadinho-nunca-soube-representar; e a esperança era Keaton, que sempre achei encantadora. Bem, o Old Jack lá se aguenta igual a si mesmo, Keanu idem, e Keaton está óptima (excepto numa ou outra cena, culpa do argumento, como quando chora...). Embora um pouco para o chato-e-comprido, gosto muito (pudera...) do tema dos amores tardios na idade e da questão das diferenças de geração e preconceitos de ageism associados. Mas se, de facto, os mais velhos não devem ser postos na prateleira só por o serem, isso não é razão para maltratar os mais novos (e é isso que Keaton-personagem faz, sem que o filme o assuma, a Keanu-personagem - e isso não se faz, ouviu?).
Enfim, ligeirinho, e lá deu para pensar em como será importante começar já a fazer um condomínio para gays e lésbicas reformad@s, de preferência com uma discoteca por perto onde não nos façam sentir que ter mais de 40 (que digo eu, mais de 30!) é uma doença venérea que só os descuidados apanham...
Os corredores aqui na minha faculdade estão cheios de publicidade a um evento chamado "Cidade Janeiro", ou "Janeiro", nem sei. O que é certo é que o texto publicitário (o evento deve ter a ver com saídas profissionais), é uma sucessão de frases do tipo "tu escolhes o teu clube, tu escolhes o teu carro, tu escolhes o teu estilo" e por aí fora. Além de ser estranho promover esta ilusão ideológica de que os estudantes de facto escolhem, duas das frases rezam assim: "tu escolhes a tua namorada; tu escolhes a tua amante". O equivalente feminino (pelo menos esse...) não surge. O alvo é, portanto, masculino (e hetero; e com "amante"): só não sabemos se o é porque o estudo de mercado assim o revelou, se porque a ideologia de género funcionou por defeito. É claro que é suposto ter "graça" (ah, ah). Mas a julgar pela incapacidade desta campanha em me explicar de que trata o evento, deve ser por defeito. E isso ainda assusta mais.
Ah: e esta é uma faculdade de ciências sociais. Isto é, em parte.
Estou aqui na faculdade, no meu gabinete, preparando aulas para a semana. Leio um texto da minha colega e amiga Susana Viegas, e apeteceu-me partilhar uma passagem que, julgo, abre um pouco as janelas (pelo menos relativizando) das discussões recentes sobre família, adopção, etc...
«(...)Bodenhorn argues that, in the context of the Iñupiat [of Alaska] this notion of the revocability of kinship is related to the fact that children are considered autonomous beings who may 'choose' their own parents - an idea that Bodenhorn shows to be consistent with the frequency of adoptions amongst the Iñupiat, and with the Iñupiat notion that children get born by themselves and not as a direct result of a couple's procreative act (Bodenhorn 2000: 139-41). One consequence of the revocability of kin ties amongst the Iñupiat, Bodenhorn argues, is that kinship is regarded as a context in which relations need to be re-enacted daily, depending directly upon 'the work of being related - rather than the labour of giving birth or the "fact" of shared substance' and, as a result, 'permanence [of kin ties] lies in the ever-present potential for revivifying dormant relations' (Bodenhorn 2000:143)». (Viegas 2003: 23)
O PortugalGay continua a fazer um excelente trabalho de informação sobre questões de interesse social, cultural e político para @s LGBTs. Desta feita, publica a tomada de posição do Provedor da Justiça relativa a um pedido de reconhecimento, por parte de um português residente na Holanda, do seu casamento com outro homem naquele país. A resposta do PJ é longa, substanciada e denota trabalho e preocupação. O problema é que a lei portuguesa obriga-o sistematicamente a dizer que não é possível o reconhecimento do casamento. Várias coisas se notam nesta resposta: a primeira, e mais óbiva, é a situação nacional face a este assunto; a segunda, é que há portugueses a casarem-se no estrangeiro com pares do mesmo sexo; a terceira é que a União Europeia ainda é, em larga medida, uma fantasia; e a quarta é que a produção dos juristas portugueses sobre o assunto não pode ser apelidada de progressista (é pena que o PJ não tenha consultado especialistas de direito da família com ideias bem diferentes...)
Para quem achar que este é mais um exemplo da (minha) obsessão com as coisas lgbt, gostaria de dizer o seguinte. Há certos assuntos, normalmente de ordem legislativa relacionada com os direitos, que constituem autênticas "charneiras sociais", i.e., dilemas ou debates cujo desfecho pode ser decisivo para uma sociedade ir num sentido ou noutro. O casamento entre pessoas do mesmo sexo e a possibilidade de adopção por casais do mesmo sexo são um deles. Mas outros há, noutros campos (e penso em Portugal, sobretudo): o direito de voto para imigrantes ou de obtenção imediata de nacionalidade para os seus filhos; a obrigação de paridade de género e a descriminalização do aborto; e tantos outros no domínio dos direitos do trabalho, sociais e de implementação do estado providência.
Mas o que é especialmente fulcral nos direitos lgbt é que mexem directamente na teia mais apertada das mentalidades: porque mexem com o sexo, o género, os afectos, o corpo, a reprodução, a família. Não é por acaso que Bush apoia a proposta de uma emenda na constituição dos EUA para proibir a possibilidade de casamentos gay e lésbicos: o "assunto" está a tornar-se central na política contemporânea.
É também por isto que fico atónito com o silêncio dos partidos de esquerda - incluíndo o meu, que tão prontamente pediu a demissão de Mariana Cascais - perante Luís Villas-Boas. A nossa esquerda parece querer perceber, só que ainda não percebeu mesmo.
O Pagan coloca hoje várias imagens de São Sebastião. Também eu tenho uma "obsessão" com o SS desde há muito tempo - acho que ainda antes de saber que ele era um ícone gay... Ainda comecei uma base de dados com fotos tiradas por mim em tudo quanto era igreja por esse país fora, mas desisti (sempre tive pouca queda para o coleccionismo). Mas há pouco tempo descobri um site óptimo, com uma excelente cobertura de SS. É aqui. Enjoy.
(Mulher hetero no desfile de carnaval: para quê tanto "orgulho"?)
Encontrei esta peça de heterofobia nojenta no editorial do "Gay Times", publicado em Rainbow City, capital da República de El Gêbêtê:
«Não tenho nada contra os heterossexuais. Acho mesmo que cada qual faz o que bem entende na privacidade das suas casas. E até simpatizo com algumas das reivindicações do movimento hetero, no sentido de combater preconceitos antigos. Mas será mesmo necessário todo aquele exibicionismo nos seus desfiles carnavalescos? Chega o Carnaval e ei-los apostados no frenesi de exibir ostensivamente ancas e protuberâncias mamárias, músculos e pelagens peitorais; elas mostrando quanto podem atiçar o desejo deles e eles insultando a sociedade gay travestindo-se. Não me parece que consigam grande simpatia comportando-se desta maneira. Assim, apenas chocam. E quem choca, afasta as pessoas normais (...)».
Há muitos e muitos anos que, neste dia, fico fechadinho em casa, a fingir que o Carnaval não existe. A única vez que participei e gostei foi em Ilhéus, na Bahia, onde vivi uns meses e fiz pesquisa de campo. Nesse dia saí à avenida com o pessoal do Dilazenze, o bloco afro com que trabalhei. Ainda guardo algures o meu abadá (a fatiota). Mas durante o desfile nunca tirei os olhos da "primeira dama do Olodum" que, sem querer, deu todo um outro significado à imagem do Cristo Redentor...
LIDO. (Aliás: LIDO e VISTO, por ser BD. Logo, LISTO)
Já tinha lido há anos a primeira edição do "Tintin et l'Alph Art". Mas esta, recente, que o P me trouxe de França, é genial, porque tenta transformar o projecto nunca acabado de Hergé num quase-álbum normal: cada página tem o texto do argumento e os esboços respectivos. Parece que Hergé quis terminar a carreira gozando com o mundo da arte. E para o fazer convocou quase todas as personagens: de Lampion a Rastapopoulos, todos se encontram no tráfico e na falsificação.
Ontem lá fomos gravar o "Prós e Contras" da próxima semana. A Ana Pinheiro, da Editora Zayas estava na plateia para dar o seu testemunho como mãe e lésbica cuja filha ficou insultada com as afirmações de LVB. Este estava no painel, e afirmou que tudo o que disse na célebre entrevista foi deturpado pela jornalista (!). João César das Neves (lembram-se?) também lá estava e "passou-se" com a âncora do programa por ter levado ali pessoas de uma minoria, quando o programa era sobre educação e família. Alguns acólitos fizeram críticas na mesma linha: que o programa estava a ser transformado num programa sobre homossexualidade em vez de educação; que tinha havido um esforço concertado para incluir a questão LVB; e por aí fora. Eu até estou disposto a aceitar que o programa era suposto ser sobre "educação" (whatever that means, of course...). Mas os "argumentos" que por ali circularam iam todos dar a uma coisa terrível: a maioria é hetero, a maioria vive em famílias de casais com filhos, logo o resto é irrelevante. A isto chama-se ditadura da maioria - justamente o que os inventores das democracias modernas (nomeadamente os revolucionários americanos do século 18) tentaram evitar que acontecesse e que se resume numa frase simples "a democracia NÃO é a ditadura da maioria".
Quanto ao resto, vejam na próxima semana quando for para o ar. O programa foi aborrecido e lento, mas lá pelo meio (na segunda parte) virou aviário com a soltura de várias frangas. Espero não me ter espalhado - vocês dirão.
Ana Sá Lopes, desta feita em artigo de opinião, strikes again. Parabéns! Também Augusto M. Seabra, na mesma edição do Público de hoje.
Mas isto são artigos de opinião. Onde estão as notícias sobre posições tomadas pelos partidos? Onde estão as notícias sobre exigências de demissão? Onde estão notícias com membros do governo dando explicações, pedindo desculpas ou, nem que seja, tentando "dar a volta"? Em parte alguma: porque não existem essas notícias para serem dadas. Essa é a triste realidade.
21 grams. Mais um filme-mentira. Mascarado com a parafernália pós-modernaça do cinema indy - neste caso, a recusa da linearidade do tempo narrativo, o grão na imagem - não passa de uma telenovela-dramalhão. Até tem transplantes cardíacos e tudo, bem como amores inverosímeis, white trash em busca de redenção, crianças atropeladas, vinganças em móteis decadentes... Nem por um momento somos convencidos, nem por um momento hà empatia emocional. Se os filmes se classificassem por peso, o título seria apropriado a este.
Pela primeira vez desde que abri este blog, alterei seriamente um post. Algumas pessoas (via e-mail, não nos comentários) viram nele um outing. Não percebo como. Sou contra o outing, ponto parágrafo. Fiquei espantado. Mas sei que os textos são abertos a muitas interpretações. E eu não quero que essa interpretação possa reproduzir-se.
Mas um blog não é, de facto, um livro ou um artigo. É uma ongoing conversation. Numa conversa, pode-se sempre "retirar o que se disse". E, neste caso, o que não se disse.
As minhas desculpas a quem viu assim os seus comentários desaparecerem - o bébé teve mesmo que ir fora com a água do banho.
Ana Sá Lopes, secção "Sobe e Desce", Público de hoje:
«Luís Villas-Boas (desce)
Presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção
Se Portugal fosse um país civilizado, este cavalheiro já tinha sido obrigado a pedir demissão do cargo que ocupa, depois do arrazoado homofóbico que proferiu sobre a possibilidade de adopção por homossexuais, "uma perversão que se passa em alguns pontos da Europa". As enormidades foram várias, incluindo a que "ser lésbica não é ser mulher na plenitude natural do termo". Infelizmente, o homem que fala assim tem crianças a cargo, no refúgio Aboim Ascensão, onde lhes deve inculcar os valores de uma doentia homofobia. »
E eis que a pergunta se impõe: quando é que os partidos da oposição exigem a demissão de Villas-Boas?
A sociedade civil reagiu; os movimentos e associações exigiram; os media fizeram eco das reacções e exigências; resta aos partidos políticos pronunciarem-se.
É bom ver que estamos vivos e vivas. Na sequência do escândalo Villas-Boas, a reacção demonstrou-o. As associações lgbt emitiram comunicados, viram-nos publicados, deslocaram-se às TVs; os jornais referiram o assunto e hoje mesmo o Público deu espaço a várias cartas; o Fórum TSF-Mulher de anteontem foi ocupado pelo tema e os telefonemas de activistas foram muitos e muito bons; a RTP quer que este assunto tenha relevo no próximo "Prós e Contras" (curiosamente sobre o tema genérico da "Educação"...); psicólogos mobilizaram-se contra as opiniões do colega; comunicados, recortes de artigos, textos de apoio circularam rapidamente via mail para ajudarem a criar argumentos. E no mundo dos blogs (que já estabeleceu um género próprio, em que a subjectividade e o humor cáustico têm um lugar ao lado da formação/informação) expressou-se a revolta cívica e deu-se a contaminação de informação. Os media tradicionais já se aperceberam disto; e nós, bloguistas, começamos a interiorizar a responsabilidade de escrever na rede. These are interesting times, indeed.
Figuras sociais como LVB (note-se, não estou a falar da pessoa em si, que não conheço) vivem ainda num universo de referências em que pensam poder dizer de tudo a partir de um lugar de "autoridade" (científica, política, etc) que, na realidade, é apenas um lugar de "autoritarismo" pré-moderno ("o sr. dr. fala muito bem"; "ele lá sabe o que diz, tem estudos"). Eu suspeito que ele nem suspeitou (!) que centenas de pessoas comunicam e lêem-se num lugar silencioso chamado rede. Quando confrontadas com o contra-ataque, figuras sociais como LVB ficam com uma expressão genuinamente espantada: não só porque não esperavam a reacção, mas porque no seu isolamento autocrático acham que as suas ideias são de facto as ideias do senso comum. Pois bem: já não são.
Normalmente até nem me irrito muito. Acho. Tenho até fama, entre amigos e próximos, de ser conciliador. Mas às vezes PASSO-ME.
E gostaria tanto de não ter que postar sobre isto. Há tanta coisa sobre o que "escrever"... Só que com estas coisas, PASSO-ME.
Vasculho desenhos antigos. A ideia era encontrar um que ilustrasse um outro post. Adiado. Encontrei o cão raivoso, tão eighties. Atiçou-me. É que PASSO-ME.
Dedico-o, então, ao eminente psicólogo Luís Villas-Boas. Um homem que, caso tivesse feito um comentário racista, já estaria na rua. Mas como fez dez comentários homofóbicos, está num cargo de indigitação política. Nosso, portanto.
Um homem que, a partir de um lugar de poder e responsabilidade, emitiu juízos discriminatórios, mascarando-os de saber científico, ainda por cima factualmente errado. PASSO-ME.
O país retrógrado instalou-se no poder. Em segurança, saiem das tocas todos os espíritos naftalíneos. Cheira mal! Abram as janelas! Abram os armários!
Única possível conclusão: Luís Villas-Boas deve ser posto na rua, já.
(Que eu me passe, que tu te passes, que ela se passe, ainda vá que não vá. Mas quando é que nos PASSAMOS TOD@S?)
Um tribunal de Navarra (Estado Español) reconheceu a custódia de duas crianças a um casal de lésbicas. O Público noticiou. De seguida o jornal entrevista um psicólogo chamado Luís Villas-Boas (fixem o nome) que declara ser uma "infelicidade" ser educado por homossexuais. Celeste Cardona e Bagão Félix empossaram este senhor do Refúgio Aboím Ascensão como presidente da Comissão de Acompanhamento da Aplicação da Lei da Adopção em Novembro de 2003.
Ele diz-nos agora que a adopção por casais do mesmo sexo praticada na Holanda é uma perversão. Ainda ontem na SIC, num debate sobre aborto, um anti-escolha também dizia que não devíamos seguir o que se faz em países como a Suécia. Se não fosse triste, acharia graça à forma como estes tramontanos nacionais tratam esses países como se fossem uns paísecos atrasados, onde se vive mal e sem direitos. Este espírito salazarengo domina de novo o país. É o que permite o imenso à-vontade em dizer que ser lésbica "não é ser mulher na plenitude natural do termo". O espírito salazarengo pretende o isolamento do país, a imposição a toda a gente de opções de fundo religioso mascaradas de "normalidade", "natureza" (e, qualquer dia, de "bons costumes").
Fazem isto usando o falso argumento do supremo interesse das crianças; repito, falso, porque só é usado para excluir casais do mesmo sexo; porque quem quer mesmo adoptar fá-lo com certeza pensando no interesse das crianças (não deveria ser a verificação dessa motivação para adoptar a principal tarefa dos serviços de adopção, seja face a casais-candidatos do mesmo ou de diferentes sexos?); e porque a exclusão de casais do mesmo sexo não é feita na base da preocupação com as crianças mas sim na base de uma homofobia que encontra nas crianças o argumento demagógico para se legitimar.
Há muito tempo que acho que é no tópico da adopção que se joga o divisor de águas entre homofobia e não-homofobia. O liberalismo sexual que fala em tolerância, no direito à vida privada e outras simpatias que tais, pára sempre quando se chega à adopção. No momento mesmo em que o "tolerante" estabelece a ressalva relativa à adopção está - mas não tem disso consciência, admito - a destruir toda a "tolerância" anterior. Porque está a dizer que há algo de errado e perigoso na figura d@ homossexual e na sua capacidade parental.
Eu, que me considero uma pessoa bem formada - graças aos meus pais heterossexuais - considero mal formadas pessoas como Luís Villas-Boas: mal formadas como cidadãos, mal formadas como psicólogos. Nada, mas mesmo nada, do que ele diz naquela notícia, tem carácter de conhecimento consensual ou adquirido, verificado ou testado, no universo da disciplina que estuda e da actividade que exerce. Mas mais grave ainda é dar o salto da consideração "científica" para a intervenção cívica quando isso afecta directamente os direitos, liberdades e garantias de muita gente. Ele fêlo como político, é certo. Mas fê-lo também como psicólogo. Impõe-se, então, a pergunta: que têm a dizer sobre isto as associações profissionais de psicólogos? Vão ficar caladas? É que em muitos países desenvolvidos, preocupados com a equidade, a igualdade, o bem-estar e os direitos humanos, o que este senhor diz seria passível de uma acusação de discriminação, promoção de preconceitos, incitamento indirecto ao ódio e quebra de deontologia profissional. Para além , é claro, de patetice.
PS: À Holanda e à Suécia podem acrescentar-se os seguintes países e estados: Dinamarca, Islândia, Reino Unido, Canadá, África do Sul, California, Minnesota, New York, New Jersey, Connecticut, Pennsylvania; em breve, a Noruega. Tudo, como se sabe, países de talibãs, burkas e Casas Pias...
Runaway Jury. Acho que já li todos os livros do Grisham, em aeroportos e aviões. A técnica é brilhante: devoram-se as páginas. O truque consiste em mobilizar no leitor o seu habitus cinematográfico, através do qual visualiza a acção sem esta precisar de ser descrita em pormenor. Ou seja: Grisham faz "cinema" a escrever. Por isso é tão difícil fazer cinema com base em livros dele. Este filme - entertaining, sem dúvida - não consegue, porém, acrescentar algo de novo ao livro. A não ser transmitir duas emoções interessantes: o carácter pegajoso de New Orleans (?!), e o mistério da motivação da personagem de John Cusack.
Já está: toda a gente foi absolvida por falta de provas. Mesmo depois de anos de investigações que atropelaram direitos e esmagaram dignidades.
Haverá quem ache que a causa da despenalização e descriminalização ganharia mais com uma condenação. Isso seria cinismo do pior. E haverá quem, no lado anti-escolha, venha agora dizer que aqui está a prova de que os tribunais não têm necessariamente que condenar. Isso seria cinismo também do pior.
Fico contente com este desfecho. Mas revoltado por ter visto aquelas pessoas (todas, não só as mulheres) serem julgadas.
«Esperanza Aguirre, actual presidenta de la Comunidad de Madrid, en una visita a COGAM: "Qué bonito lo tenéis: qué bien conjuntado. Y qué bonita bandera: pega con todo"»
A Zero publica esta citação numa página dedicada às eleições de 14 de Março, chamada "Vota en Conciencia". É da Zero, não é paga por nenhum partido.
E Doña Esperanza faz-me mesmo lembrar as assessoras-tias ("assessorias") e as tias-vereadoras (tias veras) de Santana Lopes. (Sei do que falo: tive a infeliz experiência de ter sido deputado municipal...).
Por uma curiosa coincidência, comprámos o nº 2 da Diferente no mesmo dia em que recebemos o último número da Zero. Alguns factos podem ser listados a partir duma comparação: 1) A España é um país grande e Portugal um país pequeno; 2) Em España há massa crítica lgbt, em Portugal não; 3) Em España não há medo de a politização se confundir com a partidarização, em Portugal sim.
A Zero é uma excelente revista: dos pontos de vista editorial, político, gráfico. A Diferente, tendo começado há menos tempo e provavelmente com menor capital (financeiro, mas talvez também humano, cultural, etc.), melhorou no segundo número, mas é muito triste. E entristece-me ter que o dizer (e hesitei em dizê-lo...). Os factos acima assinalados ajudam a explicar esta diferença abissal. Mas é para isso que existem parcerias, franchising, syndication e outras cambalhotes do empresariado jornalístico (não há uma Elle portuga? Uma Cosmopolitan? Uma National Geographic?). Accione o pessoal da Diferente os mecanismos de inclusão ibérica e poderemos ter uma Zero portuguesa - se os capitais de cá não conseguirem inventar um produto próprio.
Parece que Cardona quer a polícia a vigiar e-mails e internet. A desculpa é sempre a mesma: porno infantil, abuso sexual, droga. O controlo do crime, em suma. Mas se a coisa começa assim, amanhã já serão pessoas como eu e muitos de vós a serem vigiad@s. Por exemplo, porque somos crític@s em relação ao maniqueísmo ou porque duvidamos ou simplesmente porque amamos a liberdade. Por menos do que isso fomos acusados de sermos pró-terroristas só porque duvidámos da justeza do ataque estadunidense ao Iraque...
Quem sabe dessas coisas - Boss? Sara? - não quererá inventar um banner para colocarmos nos nossos blogs e páginas, exigindo "Cardona fora da rede"?
House of Sand and Fog. Embora fracote, tem muita graça a mistura entre a cultura da lógica do mercado e a cultura da "honra" de um ex-militar iraniano. O resultado é um drama social em torno da propriedade. De uma casa, neste caso: o que faz com que a questão das fidelidades afectivas (familiares, amorosas, étnicas, etc.) se misture - como acontece, afinal, na vida real - com os interesses.
P.S.: Uma das experiências de alienação mais curiosas é a forma como somos expostos em Portugal às casas americanas representadas no cinema. Mesmo quando consideradas "pobres" pela narrativa americana, ou quando nelas vive uma empregada doméstica, ao público português devem parecer quase sempre casas de sonho. A questão da habitação em Portugal (de que a alta taxa de proprietários é mais sintoma de problema do que de bem estar) impedir-nos-á por muito tempo de acedermos ao patamar do Primeiro Mundo.
Os convertidos neo-liberais entusiasmaram-se com o "Compromisso Portugal". Este encontro de "jovens" homens empresários e economistas de 40 anos, supostamente apresentou duas grandes novidades. A primeira: não pedem nada ao Estado e elogiam a concorrência. A segunda: são a favor do fim do sigilo bancário. Quanto à segunda, há anos que ela é proposta, por exemplo, pelo BE. Quanto à primeira, seria interessante como atitude nova, mas o problema é que também não querem que o Estado intervenha no quer que seja - nomeadamente, não lhes interessa o Estado Providência.
Ora, outro dia, ao ouvir o Manuel Castells na Gulbenkian, gostei especialmente da sua apresentação do "caso finlandês": face ao desclabro provocado pelo fim da URSS, de que a economia finlandesa dependia imenso, foi tomada a decisão de transformar o país na primeira "sociedade da informação". Hoje a Finlândia é não só o país que mais cresceu economicamente, como aquele onde as pessoas e empresas estão mais conectadas. Mas Castells diz que tal só foi possível porque, desde o início dos anos noventa, a Finlândia investiu loucamente na formação e nas universidades e - espantem-se os Comprometidos com Portugal - porque o Estado Providência criou as condições para que o salto económico se desse. É que na Finlândia as pessoas não têm que se preocupar com a Saúde; o trabalho é imensamente flexível mas as pessoas são apoiadas nos períodos de transição e desemprego; e a taxa de sindicalização está perto dos 90% revelando que as decisões económicas e sociais são tomadas em verdadeira concertação. Entretanto, esta nova economia, de base social, partiu à descoberta do maior mercado em potência, a China, onde neste momento existem mais de 300 empresas finlandesas (mais do que americanas, por exemplo).
Mas os nossos "jovens" têm um desejo provinciano de instalar os EUA em Portugal por decreto. É um pouco assim como querer instalar a democracia no Iraque. Pelo caminho, o Estado Providência, que nunca foi verdadeiramente implementado entre nós, aparece como bode expiatório. A atenção aos modelos europeus, sobretudo os social-democratas do Norte, nem lhes ocorre. Estes "jovens", convém dizê-lo, não apresentam NADA de novo. Querem ainda mais liberdade de despedimentos; querem, apenas, um "assistencialismo" que não está longe das cautelas de Bagão Félix inspiradas na "Doutrina Social da Igreja" (meu deus, mas o que é isto? - a caridade?).
Entretanto, a Espanha, mesmo com um governo de direita, tem vindo a ensaiar aproximações a diferentes modelos - parte estadunidense, é certo, mas parte social-democrata, por exemplo com níveis de concertação bem mais reais do que os portugueses. Os resultados estão à vista. Quando o velho capitalista-que-enriqueceu-graças-ao-proteccionismo-do-Estado-Novo J. M. Mello propôs a adesão de Portugal à Espanha, infelizmente estava apenas a fazer ironia (coisa que os outros empresários - mas também os jornalistas - não perceberam, pois a iliteracia é across the board).
A aliança entre empresários da velha guarda proteccionista; "jovens" turcos que na universidade só aprenderam neo-liberalismo estadunidense; Igreja Católica com bancos, associações secretas e Doutrina "Social"; e convertidos do trauma esquerdista como Durão Barroso se unem, o país deveria tremer. Mas que digo eu? O país já treme.
Entre Intercidades, conferências, construção de uma webpagezita, e trabalho, afastei-me do blog por alguns posts (?). Como se diz em português comercial, "volto já (?!)". No meu caso, hoje ainda.
Hoje resolvi oferecer-me um par de horas e passeei, sem objectivo, pela Baixa. Dá-me prazer reencontar uma parte da cidade que não me revolta. Acho que uma das razões para isso tem a ver com preferências pessoais: gosto mais de espaços que revelam planeamento e trabalho mental. E gosto menos dos que revelam o caos, a especulação, as soluções atamancadas. Estes últimos agradam a muitos intelectuais, que vêem neles algo de "orgânico", como uma selva que vai crescendo; vêem neles até algo de "democrático"...
Nestas coisas voto mais no moderno do que no pós-moderno. Às vezes quase que concordo com quem diz que o "pós-moderno" é a parte cultural do capitalismo ultraliberal. É claro que sabemos que a modernidade e o humanismo, além de belas cidades, fizeram Auschwitz e o Gulag - no mesmo desejo de levar a racionalidade ao limite. Mas não é por isso que devemos deitar fora essa herança. Aliás, já aprendemos onde nos pode, infelizmente, levar. Não é essa aprendizagem uma vantagem? Que nos permita reinventar um outro humanismo?
Mas a Baixa é um guetozinho, uma nesga de cidade. E a partir das sete da tarde, um deserto. E uma amostra do estado da cidade. No metro de volta a casa, só eu e mais três pessoas saímos para a rua, isto é, para uma zona que (ainda) é "cidade". As outras 234 fizeram o transbordo do metro para comboios suburbanos. Sabendo o que é a paisagem "urbana" ao longo da Linha de Sintra, não é demais dizer que a estas pessoas foi negada a modernidade e o humanismo: saltaram directas para a pós-modernidade caótica - uma espécie de máquina do tempo que as coloca mais perto da pré-modernidade, só que com materiais de construção diferentes.
Meia-Noite ou o princípio do mundo, de Richard Zimler. Gostei sobretudo do retrato do Porto na passagem do XVIII para o XIX - e do lembrete de que, há tão pouco tempo, o anti-semitismo estava bem vivo entre nós. Entretanto impregnou-se, tornou-se disposição e não tanto dispositivo. O livro envereda, à medida que a personagem principal cresce, pelo universo da escravatura, desta vez centrando-se mais nos EUA. Mas, tal como com o anti-semistismo, bem poderia ter ficado por cá. Esqueletos no armário, que país não os tem? Mas alguns limpam o armário de vez em quando; e outros apostam na criação de traças.
Big Fish. Eis como, quando se quer agradar ao mainstream, se perde a alma. Burton já fez coisas com a sua voz e o seu olhar. Agora fez uma coisa com o olhar e a voz dos produtores apenas. Gosto bem mais do Tim Burton contador de histórias e ilustrador. Conhecem "A Morte Melancólica do Rapaz Ostra e Outras Estórias"? Está em português, publicado pela Errata, e com óptima tradução de Margarida Vale de Gato. Cruel, cruel, cruel - e sem campos de narcisos forever.
Na edição de 18 de Janeiro do Le Monde, o sociólogo Bruno Latour publicou um texto contra a Lei. Extraí esta passagem do Bladi.Net, "portal dos marroquinos no estrangeiro".
"(...) Il faut reconnaître que l'inconscient collectif a bien choisi son nœud : quel merveilleux chiffon avec tous ces plis et ces replis ! Ces jeunes filles, qui souffrent depuis des dizaines d'années d'une discrimination incessante, deviennent enfin visibles dans l'espace public grâce au voile qui leur dissimule les cheveux et parfois le visage... Comment réagit d'abord la vieille République ? "Enlevez ce voile qui vous dissimule afin que vous redeveniez invisibles et que nous puissions à notre tour, nous les bons Français, nous voiler la face sur l'ampleur des discriminations que vous subissez ! Ou bien vous devenez visibles en vous voilant, et alors nous vous excluons de l'école ; ou bien vous vous dévoilez, et alors vous redevenez invisibles afin que nous puissions vous exclure comme avant... sans avoir même la gêne de vous apercevoir." A Tartuffe, Tartuffe et demi : "Couvrez ce voile que je ne saurais voir afin que je puisse vous ignorer comme avant." Si la métaphore du fichu cache quelque chose, ce n'est pas seulement l'archaïsme possible d'une religion, c'est surtout l'oubli de la tâche politique qui incombe aux républicains véritables.
Je n'ai pas la solution, mais, comme beaucoup de Français, j'ai le sentiment qu'il est périlleux de se retrancher derrière le petit doigt d'une règle inapplicable. Surtout au moment même où la République doit absorber les immigrations actuelles tout en explorant à tâtons la future identité européenne.
S'il faut lutter contre le terrorisme, que la police fasse son travail. S'il faut mettre fin au "malaise des profs", qu'on revalorise leur métier. S'il faut faire respecter l'assiduité aux cours, qu'on applique le règlement intérieur. Si l'ordre public est menacé, qu'on le défende. Mais, par pitié, qu'on n'exige pas des enfants qui nous sont confiés de choisir entre l'appartenance et la citoyenneté, alors que ce choix, on ne l'a demandé à aucun des Français plus anciennement installés.
Le travail de la République laïque, c'est de détricoter et de retricoter des identités multiples, ce n'est pas d'imposer un habit. Entre le voile et le code vestimentaire, faut-il vraiment choisir ? Si l'on décide de s'attaquer pour de bon au sexisme, n'est-ce pas toute la politique des corps qui demande à être dévoilée ? (...)"
A "questão do véu em França" levanta duas outras, de fundo. A primeira tem a ver com as fronteiras entre religião e cultura; a segunda, com as novas "fronteiras" da cidadania.
Os projectos políticos e de organização da sociedade separam necessariamente religião e cultura. Mas se olharmos mais "à antropólogo" para o assunto, vemos que tal é difícil. Um exemplo banal seria o facto de, não sendo eu católico nem a República Portuguesa confessional, o domingo funcionar como dia feriado. Outro exemplo banal seria o facto de coisas tidas por normais noutros contextos culturais/religiosos não o serem cá (por exemplo, é impossível em Lisboa encontrar um restaurante kosher). No caso francês, nem a République Française é tão laica como pretende, nem o véu das muçulmanas é muçulmano apenas. O pano de fundo cultural do projecto do Estado francês é culturalmente marcado pelo Cristianismo, mais do que, por exemplo, pelo Islão. E o véu é tão marcado por certas interpretações do Islão como por formas mais genéricas de desigualdade de género nas áreas culturais do Mediterrâneo e do Médio Oriente.
Muito daquilo que chamamos religião é sacralização da cultura; e muito daquilo que chamamos cultura é a concretização quoitidiana de preceitos religiosos. Eu não gosto que seja assim. E as coisas não têm que ser assim. O projecto da revolução francesa foi/é um projecto político para que as coisas não sejam assim. A secularização em alguns países de fundo islâmico também. Assim como, no lado oposto, os fundamentalismos (islâmicos, por exemplo) ou os totalitarismos nacionalistas (o de Le Pen, por exemplo) são projectos para que as coisas sejam ainda mais assim.
A segunda questão levantada pelo "caso do véu" concretiza-se neste dado historicamente novo: em França há 5 milhões de muçulmanos. Hoje em dia é muito difícil manter a fantasia do estado-nação com fronteiras, dentro das quais viveria uma população homogénea do ponto de vista linguístico, cultural e... religioso. Tão difícil que tem levado ao surgimento de novos nacionalismos, integristas e fundamentalistas, saudosos de uma realidade que, a bem dizer, ou nunca existiu ou foi conseguida a ferro e fogo (a própria França, por exemplo, foi unificada graças a um violento processo de perseguição das diversidades internas).
Esta questão tem sido discutida na base da oposição entre o princípio da cidadania e o princípio do comunitarismo. O primeiro seria francês, laico, baseado nos direitos individuais; o segundo seria americano, étnico-religioso, e baseado no que veio a designar-se por multiculturalismo. Em França, o que a questão do véu revela é que existe pânico face ao Islão, ao crescente número de muçulmanos e, entre estes, ao crescimento de variantes fundamentalistas que, ainda por cima, parecem mobilizar jovens. Não creio estar muito longe da verdade se sugerir que isto - esta deriva para o comunitarismo - acontece justamente porque as pessoas não conseguiram aceder à cidadania.
A ideia de garantir a laicidade da escola pública e a ideia de atacar formas de desigualdade de género são-me simpáticas. Mas há qualquer coisa que soa a falso em todo este processo em França: do lado dos defensores da lei, há dificuldade em esconder que a verdadeira motivação é o pânico face ao Islão em França; do lado dos mais fundamentalistas há a hipocrisia de embandeirar os valores do relativismo cultural.
Precisamos de criar formas e modelos de cidadania que levem em linha de conta a diversidade cultural (e "cultural" não é só "étnico"; é também religioso, sexual, etc...), mas que recusem confundi-la com relativismo ético - aquele que admite diferenças de poder mascaradas como "tradições". Em todos os quadrantes culturais e religiosos existem pessoas e sectores que acreditam neste "sonho". E a escola pública continua a ser um dos lugares privilegiados para criar o caldo de cultura étic@ desse novo humanismo. Mas a lei francesa não resolve o principal problema a montante: a recusa, de facto, da cidadania plena aos imigrantes, aos ex-colonizados, aos seus filhos e netos. Como não estimula, a jusante, os valores da miscigenação e da criação de algo de diferente quer de um estado-nação de raíz cristã (ou outra), quer de uma balcanização comunitarista.
Porque é que depois de 500 anos de colonialismo português e mais de vinte de ocupação indonésia, os timorenses, agora independentes, têm que se submeter a isto? Coitados... Eu bem sei que há quem pense que "para quem é, bacalhau basta"; ou seja, se Timor-Leste é terceiro mundo, o PDM da sua capital bem pode ser feito pela Câmara Municipal de Lisboa. Que crueldade! Com Sydney ali tão perto...
Ainda a propósito do "Anonymous". Lembrei-me de fazer, por puro gozo, o exercício básico necessário para sustentar qualquer afirmação generalizadora: uma estatisticazinha. Fui ver quantos posts fiz desde 1 de Janeiro de 2004. E fui ver quantos deles se referem, mesmo que de passagem, a homossexualidade, lgbt, etc.
Resultados: dos 50 posts, 14 referem-se ao nefasto assunto.
Isto é como com as pessoas que dizem no autocarro que a cidade está muito insegura, que é só assaltos e roubos. Pois, mas quantos? Afectando que percentagem da população? E por aí fora.
As coisas que nos horrorizam ganham proporções... desproporcionadas. Disto poder-se-ia inferir o seguinte: o problema não estará mais no facto dos Anonymous deste mundo sentirem esses horrores, do que na coisa em relação à qual sentem horror?
Être et Avoir. Fico contente por ver o documentário chegar às grandes salas comerciais. Talvez por causa da antropologia, tenho uma simpatia muito grande pelo género documental (e não sou só eu - muitos alunos e jovens antropólog@s partilham esta simpatia). Mas este filme tem uma mensagem escondida. Mostra a relação pedagógica entre um professor e os seus alunos, criancinhas ainda. Mas aquilo que me tocou foi sentir que o grande investimento daquele professor era na ética: do trabalho, do respeito mútuo, da transparência.
Além disso, a "acção" tem lugar numa aldeola do Auvergne. Os miúdos impressionaram-me pela sua calma. Não parecem ter aquela espécie de "enervamento" que vejo na maior parte das crianças por cá: uma espécie de energia que roça a histeria, uma desatenção que nada tem a ver com o sonho, mas sim com o short span do tempo televisivo e consumista.
Aquela qualidade de Yoda que os miúdos às vezes têm - ficarem parados, olhando para uma coisa insignificante como se fosse a mais importante do mundo, falarem para si próprios ou para amigos imaginários - já a vejo pouco. E é pena. Porque é uma qualidade humana espantosa - e dificílima de guardar para o resto da vida.
Dou comigo a estranhar-me. Isto é, apercebi-me que há já alguns posts que não faço comentário político puro e duro. Talvez isto queira dizer que não tenho mesmo inclinação para a política, isto é, o tipo de atenção constante aos acontecimentos e notícias que envolvem a actuação dos ocupantes dos cargos políticos, as suas decisões, conflitos, etc. Do ponto de vista anímico, estas coisas têm altos e baixos, é claro. E a atenção varia com outras prioridades da vida. Mas é justamente isso: quem se preocupa mesmo com a "política", tem menos esses altos e baixos, tem menos essas variações de prioridades. Já estive em cargos mais importantes na política formal. Tenho vindo a diminuir o investimento e a autoexcluir-me. Acho que o tenho feito com honestidade (ser verdadeiro consigo mesmo, é o que eu acho que o palavrão quer dizer). O princípio é simples: investir no que se sabe fazer bem e com gosto resulta mais positivo para o próprio e para os outros.
Mas um bichinho (o diabo no ombro esquerdo do capitão Haddock, ou o anjo no ombro direito? Ou vice-versa?), vindo lá ainda do 25 de Abril, acho, faz-me sentir um pouco de "culpa". Isto se calhar deve-se a uma coisa mais religiosa do que política: como não tive nenhuma educação católica e a única religião a que fui exposto foi o judaísmo (quando vivi aos dezassete anos com uma família judia americana), a guilt marca-me mais do que a facilidade de lavar o pecado através da confissão...
(Oops, eis senão quando, o que estou a fazer é uma confissão...)
Regressando à política e relativizando: o que me acontece neste momento é que o que leio nos media sobre "política" me aborrece tremenda e visceralmente. Desmerece-me respeito. E, no entanto, estamos a viver um dos piores momentos da democracia portuguesa - o triunfo da direita no seu fulgor reaccionário, que é quando se mascara de (ultra)liberalismo (porque "liberal" é invariavelmente uma palavra simpática). Culpa, culpa, culpa.
("Mas com o trabalho que te espera a partir de segunda feira, isso passa, deixa lá" - diz o diabrete. Ou o anjolete.)
PS: Já tinha escrito este post quando li um comentário de "Anonymous" a dizer que não volta mais aqui porque escrevo demasiado sobre homossexualidade. Diz ele ou ela que pensava que eu era mais "equilibrado". Bem, com acusações de "desequilíbrio" posso eu bem (e podemos nós, historicamente, bem). Mas talvez "Anonymous" ( que é bem mais do que um nick, é todo um programa) devesse pensar um pouco sobre o significado psicológico do seu... anonimato. Seja como for, é sempre bem-vind@, se alguma curiosidade mórbida @ possuir... Assim como espero que venha a fazer comentários que sejam mais comentários e menos birras.
"EXISTEN POCOS COLECTIVOS ORGANIZADOS, CUATRO O CINCO, MUY DÉBILES ECONOMICAMENTE, CON POCOS SOCIOS, Y MUY FRAGMENTADOS POR CUESTIONES POLITICO-PARTIDARISTAS. UNO DE ELLOS, LIGADO A MOVIMIENTOS TROSKISTAS Y RADICALES CON BASTANTE REPRESENTACIÓN DE UN PARTIDO POLÍTICO PORTUGUÉS, INTIENTA SIEMPRE IMPONER AL MOVIMIENTO SU AGENDA MARCADAMENTE ANTICAPITALISTA Y, SOBRETODO, EL COLOR DE SU PARTIDO, PERO TIENE MUCHAS DIFICULDADES EN AVANZAR". Esta é uma citação da entrevista concedida por António Serzedelo à revista espanhola Zero, e que ele teve a gentileza de me enviar.
Somos todos livres de expressar as nossas opiniões, e não questiono esse direito. Mas somos também livres de discordar, por um lado, e de distinguir entre opinião e deturpação, por outro. Não há dúvida que as associações lgbt portuguesas são débeis, fragmentadas e pobres. Concordo com a afirmação e creio ser verdadeira. Mas as linhas divisórias não são sobretudo partidárias (qual a cor partidária da rede ex aequo? Da Ilga Portugal? Do Clube Safo? Da Opus Gay? Da ªt? Do Portugal Gay? Dos Angels? Do #GayTeen Portugal? Da Não Te Prives?). As divisões resultam muito mais de incompatibilidades pessoais e de diferentes redes de amizades e sociabilidades (o que, em si, é um sinal da fraqueza do movimento e da reduzida escala e massa crítica do mesmo, e de quase tudo no país). Só num sistema totalitário é que se suspeitaria da independência das associações pelo facto de alguns membros serem (e assumidamente) militantes de certos partidos. E se o Bloco tem militantes no movimento lgbt, também é verdadeiro afirmar que o movimento lgbt tem militantes no Bloco. E que culpa tem o Bloco, ou qualquer um de nós, se as pessoas do PC, do PS, do PSD, do CDS, não participam (pelo menos assumidamente) no movimento lgbt? E vice-versa? E não será isso porque a agenda lgbt é contraditória com certas agendas ideológicas? A não ser que A. S. desejasse que o movimento lgbt fosse uma espécie de Mattachine Society dos anos 50 americanos - homens de fato implorando a "inclusão" na sociedade mainstream.
Quanto à coisa trotskista - numa clara alusão ao Bloco de Esquerda, às Panteras Rosa, e a pessoas que participam nestes grupos, em várias associações lgbt, e no movimento em geral - já é deturpador dizer que existe uma tentativa de imposição de agenda. António Serzedelo parece esquecer uma explicação bem mais simples para o fenómeno que refere: o facto de que quanto mais as pessoas participam em várias esferas do Político (partidos, movimentos, sindicatos, associações...), maior é a articulação de estratégias e tácticas; Maiores as sinergias, como é moda dizer-se; Maior a integração da visão do mundo e da capacidade de transformá-lo. Isto é uma realidade, mas não decorre de uma conspiração (qualquer pessoa de qualquer partido poderia/deveria fazer o mesmo, desde que não esconda as suas filiações).
Mas o mais preocupante é algo que sempre apontei a algumas posições públicas do António, e da Opus Gay em geral: a tristeza por ver pessoas ligadas, e com mérito, ao movimento lgbt, subscreverem as piores e mais baixas formas de populismo anti-partidos, sob a forma do papão do partido controlador.
Eu não partilho a ideia de que existe um mundo do Político corrompido por associações criminosas chamadas partidos, em vias de ser salvo por associações inocentes e puras chamadas movimentos sociais. Acho que ambas são impuras, graças a d***, e ambas são necessárias - e não têm que navegar sozinhas. Tão-pouco têm que navegar atreladas - simplesmente a ligação deve fazer-se através da negociação, e parte dessa negociação é a participação de algumas pessoas (as que desejam fazê-lo, é claro) em ambas as formas de fazer... política.
O meu ideal de um movimento lgbt em Portugal é um ideal de diversidade e múltiplas funções: grupos de ajuda, grupos em partidos, grupos apartidários, grupos de acção directa, grupos culturais, grupos académicos, corais, equipas de futebol, condomínios, cooperativas, lojas, you name it. Mas nunca - nunca - conseguiremos esse pluralismo (que significa também a possibilidade de crescimento) se a obsessão com o problema dos partidária, vinda das profundas dos conflitos do PREC (e que, curiosamente, caracteriza muito mais as posições de Serzedelo do que de alguns de nós, bloquistas) assustar todos os jovens e todas as jovens que hesitam em aderir ao movimento, em fazerem os seus coming outs, em aparecerem na marcha ou no Pride.
PS: Já agora, só um esclarecimentozito: sou do Bloco de Esquerda mas não sou trotskista. Nem sequer compro por atacado o pacote socialista-marxista-anticapitalista. Se precisasse de definir-me, diria que sou algo como um social-democrata radical...
A R. e a S. postaram a sua foto de casal no Cacaoccino. O gesto (além de a foto ser bonita, elas serem bonitas e o efeito social ser bonito) fez-me pensar numa coisa: poderíamos (o "nós" refere-se às pessoas mais activas no movimento lgbt e a quem mais quiser/puder dar a cara) seduzir algum/a documentarista a fazer um filme sobre gente como nós. Cinquenta minutos de gente real a contar histórias reais e a fazer coisas tão reais como ir ao supermercado ou ao aniversário de uma sobrinha. Mostrando o que é ser lgbt em Portugal, hoje.
Não sei se as minhas amigas dos docs (olá Catarinas, olá Leonor!) vão ler este post (e eu sou tãããão preguiçoso com os telefones, meus deuses...), mas se lerem espero que a ideia as contamine.
Não sugiro nada de "militante" ou sequer "jornalístico". Mas sim algo que diga, tão simplesmente, people like us (and, yet, not quite like us...).
O caso Janet Jackson dá pano para mamas. Mas a coisa pode resumir-se assim: a indústria da música pop é uma... indústria. Uma das matérias primas que usa é o sexo. E o sexo tem valor como mercadoria, porque os consumidores foram endoutrinados num regime puritano. Assim, estimulação do sexo e repressão do sexo vão juntos como um par de mamas, criando uma tensão nervosa. A indústria pop - seja de música ou imagens - vive dessa e para essa tensão/tesão, ora oferecendo estimulantes, ora ansiolíticos.
No intervalo da transmissão do Superbowl - a grande celebração da outra alienação de massas, o futebol - acontece ver-se uma das mamas de Jackson. Não importa nada se foi planeado ou não. O que importa é o escândalo puritano que causou. E o escândalo económico. A mama de Jackson não é a mama de Jackson, mas uma espécie de (pequeno ou grande, não sei) símbolo do que faz mexer o futebol, as TVs, a publicidade, a indústria pop, as igrejas e a política americanas: a relação entre sexo e dinheiro.
Jackson, como qualquer moça da indústria, faz canções e coreografias para explorar a dita tensão/tesão. Mas quando "acontece" mostrar a mama, desfaz-se em desculpas: "Desculpem se vos ofendi". Isto é, "desculpem se o meu corpo vos ofendeu". Pode descer-se mais baixo no denegrimento do sexo e ir mais longe no elogio da hipocrisia? Creio que não. Porque a única actividade humana em que a relação entre sexo e dinheiro é límpida, honesta e transparente é a prostituição. E as prostitutas e os prostitutos não estão no prime time do intervalo da superbowl das grandes cadeias de TV que apoiam os grandes partidos americanos que mandam os grandes homens puritanos para o Centro de Comando Militar que dá pelo nome de Casa Branca.
Algures na América, o mano de Janet, que também dança e canta para estimular as partes que não devem ser mostradas, na vida íntima é o pedófilo ex plus ultra - aquele que não só aparentemente gosta de putos, como gosta de ser puto - partilhando a fantasia esquizóide de que as crianças não têm nem sexo nem sexualidade.
No Novo Mundo em geral aconteceu um curioso fenómeno. Ao mesmo tempo que, no tempo das descobertas e das colonizações aquelas paragens foram vistas como lugares de libertação e libertinagem, livres dos trapos da civilização e boas para sexo, as agendas de repressão (puritanas a Norte, católicas a Sul) ganharam raízes e desenvolveram-se num caminho diferente da Europa. É que também no meu querido Brasil existe um puritanismo não assumido: é a síndrome do fio dental que sugere mas não revela, versus a relativa banalidade do nudismo nas praias do lado de cá (e raro nas do lado de lá). Jackson também tinha o seu "fio dental": uma daquelas tampinhas para os mamilos, já que é proibido estes serem vistos na TV americana (sim, é verdade, caros europeus e caras europeias - e podem rir-se à vontade que o tio George não ouve (ele nunca ouve)).
A Kelly, uma brasileira que trabalhou um pouco comigo antes de ir fazer pesquisa em Timor-Leste, pergunta-me num mail quando é que vou ao Brasil. A minha amiga Susana está lá agora, na nossa Ilhéus. Coisas assim, pontuais (um mail a propósito de trabalho, uma amiga que vai de viagem, um anúncio na Veja folheada na papelaria), dão-me saudades da terrinha (isto é para inverter o estereótipo...). E quando tenho saudades da terrinha ocorre-me sempre uma imagem - não associada a qualquer pessoa ou situação, mas sim uma espécie de coisa vaga, como a memória de cores ou de cheiros. É a preto e branco, ou melhor, cinzento. Não tarda nada vai chover. O ar pesa, Não acontece nada. Deve ser apenas uma paisagem para a minha cabeça habitar.
No meio de arrumações na arrecadação fui encontrar um livro da Elizabeth Bishop, "Poemas do Brasil". E não é que a capa - reminiscente do Dorée e das ilustrações dos livros do Jules Verne - é essa imagem?
Passei grande parte do dia em volta de L'Homophobie, de Daniel Borrillo (PUF, Col. "Que Sais-je?", 2000), por causa da preparação de uma conferência. Não sei se ainda há quem leia em francês (cá me vou safando...), mas o livro é excelente. Curto, incisivo, pedagógico, mas sem concessões militantes e muito bem apoiado em leituras. O Daniel é um argentino que vive em Paris, jurista, prof., e teve um papel importantíssimo na campanha pela PACS (as uniões de facto gaulesas). Quero muito traduzi-lo e publicá-lo por cá, mas até lá (e os editores que me perdoem) mandem vir - isto é, mandem-no vir.
Durante imenso tempo (uns mesitos...) resisti a colocar links. Não era a "esfera" que me apetecia, mas escrever opinações. Agora os links aumentam (e hoje mesmo entrou um colega que vive em Moçambique). Depois resisti a usar comentários. Agora já comento. Depois concentrei a minha blogo-misantropia nos ratos-cursores (a chávena do Cacaoccino, os deer dos dear Renas e Veados...). Agora tenho um rato-rato. Gosto dele: ora é preto, ora é branco, e corre que se farta, como os tempos. Não se assustem com a mensagem de instalação do programa - é inócuo, e permite aceder a todos os cursores especiais que abundam na "esfera".
Nunca fui muito "coerente" nem grande fã do vírus da coerência (sobretudo quando confundida orgulhosamente com a casmurrice ao longo do tempo). Comecei hesitante na "esfera" e agora dou cambalhotas. Mudei. Não consigo imaginar - mas devia - o que seria a vida sem net. E, agora, sem blogar.
Mas algures no mundo alguém diz que não consegue imaginar o que seria a vida sem o cheiro a bosta de vaca, ou sem o mel tirado directamente de uma colmeia bojuda pendurada duma árvore. O que é curioso é que tem razão. Bom, bom, era se um dia fosse possível sacar o mel de manhã e blogar à noite.
Lost in translation. O filme quase que vale pela cena final. Jogando com as comédias românticas, o homem a caminho do aeroporto volta atrás, procura na rua a mulher, aborda-a e... segreda-lhe ao ouvido algo que não ouvimos. E despedem-se para sempre. Claro que faz uma enorme diferença que a mulher seja a Johansson, excelente actriz e modelo de uma beleza não estereótipa (desde logo: "gordinha"). E, apesar de Bill Murray conseguir sempre arrancar-me um bocejo, ele fica bem no papel de cansado da vida. Mas o mais interessante do filme, na maneira como o li, é que o facto de se tratar de um homem e duma mulher é um decoy: na realidade, aquela jovem inteligente vê que, décadas mais tarde na vida, pode sentir-se a mesma incapacidade de traduzir o mundo e as pessoas à nossa volta. Ele confirma isso, mas, intuimos, dá-lhe alguma esperança. Não podemos é ter acesso à receita - simplesmente porque ela não existe, ao contrário do que prometem os CDs de auto-ajuda.
Pena é que tudo isto se passe num ambiente de desagradável gozo com os japoneses - sem que a realizadora consiga convencer-nos que essa é a perspectiva das personagens e não a sua. O achado do filme está ali, na cena final do segredo. Mas o que a argumentista construiu para trás não é tão sólido quanto prometem, por exemplo, os momentos de clarividência que a personagem de Johansson demonstra.
In the cut. Finalmente um filme novo. E no qual a inovação não existe for the sake of innovation (coisa demasiado comum hoje - veja-se Kill Bill, ou Bully), mas sim porque há algo de novo a mostrar. E esse algo tem a ver com um novo olhar, um olhar próprio - um olhar alternativo. É isso que acontece com a forma como a cidade é filmada; com os pedacitos de visão periférica da personagem - ora uma pessoa a correr dobrando uma esquina, ora outra vociferando (microsegundos da realidade urbana, à velocidade da janela de um automóvel); é isso que acontece com a forma como caras e corpos são filmados - eles são reais. Como aqueles que conhecemos e não como os que vemos nas revistas, na net, no cinema.
Sobretudo as mulheres, que aqui não são nem caricaturas, nem estereótipos, nem fetiches, nem mulheres-drag queens. São simplesmente (?) matéria humana, com pele marcada pelo microclima da cidade, com dedos dos pés, com desleixos do corpo, com desatenções. E com atenções a outras coisas - coisas que lhes interessam. Mais do que um filme feito por uma mulher, é um filme feito por uma mulher feminista, porque sabe que é preciso um outro olhar. Por favor, vão ver - e não se irritem com algum público, cujas risadinhas apenas revelam que não partilha as premissas necessárias para usufruir este filme. A saber: que as mulheres não são nem anjos, nem putas, nem caniches, nem bonecas insufláveis, nem mártires-avé-maria, nem musas intocáveis, nem objectos de desejo-culto obsessivo. Não são um mistério, uma coisa que precisa de ser explicada, ou uma subespécie. São, simplesmente - só que vivem numa gaveta de armário (que é também feita de representações, como as do cinema) cuja etiqueta diz "em classificação".
PS: Coloquei a foto da "secundária" J.J. Leigh apenas porque acho que revela o que quero dizer. Reparem como a forma como olha para uma chuva de pétalas (é disso que se trata) é de natural e humano espanto, mas não de romantismo-rebuçado (para o qual seria necessário que estivesse maquilhada como uma boneca technicolor...).