OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


2.2.04  

VISTO.


In the cut. Finalmente um filme novo. E no qual a inovação não existe for the sake of innovation (coisa demasiado comum hoje - veja-se Kill Bill, ou Bully), mas sim porque há algo de novo a mostrar. E esse algo tem a ver com um novo olhar, um olhar próprio - um olhar alternativo. É isso que acontece com a forma como a cidade é filmada; com os pedacitos de visão periférica da personagem - ora uma pessoa a correr dobrando uma esquina, ora outra vociferando (microsegundos da realidade urbana, à velocidade da janela de um automóvel); é isso que acontece com a forma como caras e corpos são filmados - eles são reais. Como aqueles que conhecemos e não como os que vemos nas revistas, na net, no cinema.

Sobretudo as mulheres, que aqui não são nem caricaturas, nem estereótipos, nem fetiches, nem mulheres-drag queens. São simplesmente (?) matéria humana, com pele marcada pelo microclima da cidade, com dedos dos pés, com desleixos do corpo, com desatenções. E com atenções a outras coisas - coisas que lhes interessam. Mais do que um filme feito por uma mulher, é um filme feito por uma mulher feminista, porque sabe que é preciso um outro olhar. Por favor, vão ver - e não se irritem com algum público, cujas risadinhas apenas revelam que não partilha as premissas necessárias para usufruir este filme. A saber: que as mulheres não são nem anjos, nem putas, nem caniches, nem bonecas insufláveis, nem mártires-avé-maria, nem musas intocáveis, nem objectos de desejo-culto obsessivo. Não são um mistério, uma coisa que precisa de ser explicada, ou uma subespécie. São, simplesmente - só que vivem numa gaveta de armário (que é também feita de representações, como as do cinema) cuja etiqueta diz "em classificação".

PS: Coloquei a foto da "secundária" J.J. Leigh apenas porque acho que revela o que quero dizer. Reparem como a forma como olha para uma chuva de pétalas (é disso que se trata) é de natural e humano espanto, mas não de romantismo-rebuçado (para o qual seria necessário que estivesse maquilhada como uma boneca technicolor...).

mva | 19:53|