OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


29.2.04  

Politicamente correcto.

Excelente post do Daniel Oliveira no Barnabé. De facto, os jornais estão a dar conta de uma aguerrida "guerra cultural" em torno quer do aborto, quer dos direitos lgbt. Uma estranha aliança entre liberais, conservadores e reaccionários torna-se cada vez mais visível. Os liberais acham que estas coisas do sexo e da identidade são para ser vividas portas adentro; os conservadores acham que estas modernices põem em causa o tecido da sociedade; e os reaccionários juntam-se em movimentos da "Vida" ou de "Famílias numerosas" para atacarem de frente a modernidade. Mas todos se unem na suspeita em relação ao progresso.

Uma das estratégias é pegarem em noções que nem sequer têm efeito em Portugal, e dizerem que elas estão ultrapassadas e são ridículas, apenas porque estão sujeitas a debate feroz noutros locais, nomeadamente nos EUA. É o caso do "politicamente correcto" (o "alvo" de Henrique Monteiro do Expresso, que o Daniel critica). "Politicamente correcto", em rigor, não é uma brincadeira com as palavras (e estas "não são para brincadeiras", de qualquer modo...): politicamente correcto é o que nós somos quando exigimos direitos iguais, sabendo que a hegemonia nos remete para a margem, a sombra e o fim da escala.

Ontem na "Mad TV" (programa de que gosto muito, na SIC Radical) faziam um sketch com o "All in the Family" actualizado para os nossos tempos. Archie Bunker já não dizia barbaridades sexistas e racistas: desculpava-se imenso e usava as palavras "certas". No fim, o slogan dizia: "All in the Family 2001: no longer offensive; no longer funny". A ironia é certeira. Mas: ela é feita nos EUA (e num programa que tem sempre um discurso emancipatório), onde a correcção política já deu direitos e visibilidade a muita gente excluída. Não é transponível para cá, onde as "opiniões" sobre a inferioridade dos negros ou a anormalidade dos homossexuais não são as opiniões de lobbies reaças organizados que discutem na praça pública contra um senso comum político que já interiorizou a correcção política (e pouco importa se hipocritamente: eu quero é ter direitos, não quero que as pessoas estejam convencidas).

Cá, as opiniões racistas e homofóbicas (e sexistas) é que são hegemónicas no discurso público e político. Só mesmo isso explica que LVB não tenha sido demitido do cargo de indigitação pública que ocupa, e que o que disse seja visto como "opinião". E que se culpem as vítimas dizendo que somos nós que queremos logo ver homofobia em tudo.

mva | 15:31|