Ainda em Caxambu, um argentino com formação académica no Brasil apresenta um trabalho sobre Moçambique. A certo momento menciona o nome de Jorge Jardim. Minutos depois menciona Baltazar Rebelo de Sousa. De repente, estes nomes coloniais tranportaram-me para Portugal. Os seus filhos - respectivamente Cinha Jardim e Marcelo Rebelo de Sousa - são hoje duas estrelas mediáticas: em campos de actividade diferentes, segundo linhas de género diferentes, mas coincidindo no espaço televisivo e na centralidade que para eles é a gestão da imagem. São as verdadeiras personagens do Portugal... pós-colonial.
Chego a São Paulo ao fim do dia, depois de uma infeliz passagem pela N S Aparecida (um santuário mariano de massas é sempre um santuário mariano de massas - e um lugar de puro horror). Bairros como este de Higienópolis (sim, Higienópolis) são a parte Bélgica da Belíndia. Muito bom aspecto e cheiro a jasmim nas ruas. Um coro masculino soa do interior de uma igreja. É um casamento. Entro na igreja a tempo de ver a noiva entrar através de portas que se abrem automaticamente, de modo a aumentar o efeito angélico da coisa. O coro masculino, percebo ao fim de uns segundos, está a entoar a música do 2001 Odisseia no Espaço.
Também o hotel está fervilhante de celebração religiosa. Deve haver um Bar Mitzvah ou um casamento importante, pois a população de Hassidim é bem maior que a de goyim das várias espécies, sejam estes não judeus ou judeus... O resultado é que o quarto ao lado tem a banda sonora de uma família saída de algum pesadelo psicanalítico de Woody Allen - e em yiddish.
Mas hoje, a atenção às coisas não será de ordem étnica. Neste dia de descanso, conto ir à Bienal (os deuses ajudam-me e trazem-me a Sampa sempre que há Bienal...) e depois acompanhar os resultados da segunda volta das eleições locais. Torço pela Marta Suplicy, por quem torce também o anónimo grafitista que num viaduto aqui ao pé escreveu a spray verde sobre o cinzento do cimento: "Marta gostosa!"
Ontem, no boteco do Paulão, em torno de umas cervejas, pude reencontrar a Ju e a Kelly. A Ju passou uma temporada longa em Portugal, como parte da sua pesquisa sobre transexualidade. Foi através dela, inclusive, que consolidei a minha amizade com a Jó e que comecei a perceber melhor o universo trans. A Kelly também passou uma temporada em Lisboa, preparando a pesquisa em Timor. Ambas produziram excelentes trabalhos que ganharam com a sua multilocalização. Estes trânsitos entre territórios com língua partilhada interessam-me, mas não por qualquer elogio da "lusofonia": o que elas fizeram não foi reproduzir ideologias culturais apressadamente criadas no desespero pós-colonial português, mas sim usar a língua comum como instrumento facilitador para produzir conhecimento mais rico sobre objectos que não a dita lusofonia. E conhecimento útil em qualquer lugar do mundo. (PS: é claro que nos congressos se tomam uns quantos copos - não estamos aqui para enganar ninguém...)
Dizer, como no último post, que estou home é um exagero retórico, claro. Home is where the heart is, e embora o transporte comigo, ele não está, infelizmente, aqui... Mas há outra coisa que torna difícil estar-se totalmente home alhures. Quem diria que essa outra coisa é a política? De facto, é-me muito difícil perceber a política brasileira, porque conhecer a política requer uma intimidade difícil de adquirir. Posso perceber que este ou aquele político é de direita ou de esquerda, mas não vibro com as subtis diferenças, e essas é que importam. A milhares de km de distância, o que me faz vibrar é a notícia durano-buttiglionesca, a notícia marcelista...
A propósito: é da distância ou poderá dizer-se que o caso Buttiglione foi a primeira vez que houve política democrática e participada ao nível auropeu? Quer dizer: houve de facto um movimento europeu, que envolveu movimentos sociais, partidos, opiniões públicas, jornais, em todos os países; e que teve sem dúvida um efeito. Foi a hipótese de aquela personagem ocupar aquele lugar que mexeu com as pessoas.
Em que consistiu o meu fascínio inicial pelo Brasil há uns dez anos atrás? O facto de ter cá vindo pela primeira vez na sequência de um convite (o Brasil não me atraía e não pensava cá vir...) e ter logo ficado siderado com a oscilação constante (minuto a minuto, de facto...) entre extrema semelhança e extrema diferença. Um balancé desses é ouro sobre azul para um antropólogo que, como eu, não é atraído por purezas e fronteiras definidas, mas sim por ambiguidades.
Acordo com a notícia da débacle José Barroso/Buttiglione. As famosas "credenciais liberais" do amigo do Papa, tão proclamadas pelo director do Público, de pouco valeram. Este caso demonstra a acepção de "liberal" usada por esta nova direita que não se diz de direita e que domina cada vez mais o espaço público português. Trata-se de uma acepção que reduz o liberalismo à economia e a uma concepção minimalista de democracia. Por isso tudo o que tenha a ver com ideologias, valores e política relacionados com a família, o género, a sexualidade, etc, é remetido para o domínio do subjectivo, da opinião, do não passível de debate político e decisão democrática. Em americano chama-se a isso "wishing away". Mas na realidade, este neo-conservadorismo que se afirma liberal é constituído por posicionamentos medrosos e tudo o que pareça novo é etiquetado - e vejam que etiquetas paradoxais - como ou demasiado americano/politicamente correcto, ou demasiado esquerdista... Em Portugal este medo tem um ambiente fértil, feito de uma obsessão pequeno-burguesa com a "moderação", que não é o mesmo que o rigor da análise ou a discussão de uma pluralidade de pontos de vista, mas simplesmente um eufemismo para "deixar as coisas como estão". Por que outra razão não se falou praticamente nada na comunicação social portuguesa da lei dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo em Espanha, por exemplo?
Estou em Caxambu, uma estância termal nas montanhas de Minas Gerais. Aqui reunem-se, num desses hotéis românticos frente a um parque frequentado em tempos pelo imperador, os cientistas sociais brasileiros. Venho de assistir a uma discussão renhida sobre quotas para negros nas universidades públicas. Regressar ao Brasil após 4 anos de interregno assustava-me. Regressar a sítios onde vivemos normalmente resulta em dersilusão ou, pelo contrário, numa espécie de sobre-excitação. Nenhuma das duas aconteceu. Sinto outra coisa, bem melhor: normalidade absoluta. I´m home, como em Portugal.
Chegam-me notícias de que os jornais portugueses continuam a publicar artigos em que passa a seguinte ideia: as reaccões (é verdade, não descubro a cedilha neste teclado de hotel!) contra Buttiglione seriam manifestacões de extremismo, intolerância, negacão da liberdade de opinião e por aí fora. Acho isto espantoso. A questão nunca se poria assim noutros países. É que nem tudo é simples opinião. Uma opinião racista não é simples opinião. Uma opinião anti-semita não é simples opinião. Donde se conclui: o que querem passar é a ideia de que uma opinião sexista ou homofóbica é... uma simples opinião.
Mas pelo menos uma coisa boa está a acontecer: estas reaccões demonstram que os sectores estabelecidos e conservadores da nossa sociedade estão a ver-se confrontados com algo que para eles é novo e surpreendente. Estão a sentir a modernidade bater-lhes à porta. E estão à rasca.
(Folheio um jornal diário brasileiro e na seccão de sociedade e gente há uma coluna específica chamada Gay Society. Vale o que vale e está onde está, mas é curiosamente inimaginável nos nossos jornais, não é?)
Amanhã parto - por alguns dias - para uma das minhas pátrias alternativas do outro lado do charco (a do lado de baixo, mais exactamente). Tentarei postar o mais possível.
Deixo-vos com dois quadros da Tarsila do Amaral, ambos de 1928: A Lua e Cartão Postal (assim, este fica já enviado).
Espero que o Casal Gay reconsidere e volte à blog(o/ay)esfera. Porque faz falta. Todas as formas colectivas de acção - políticas, associativas, de amizade, familiares, etc. - são complicadas, conflituosas, equivocadas. Quanto mais vozes - decentes, como o Casal Gay - maior a possibilidade de atinarmos. Por enquanto não retiro o blink.
O último post demorou dois dias - dois - a ser feito. Era daqueles posts concebidos como brincadeira fútil (faz-se-agora-e-não-se-pensa-mais-nisso) e acabou por ser uma guerra contra mim mesmo: por culpa da catástrofe do blogspot, ou do meu blog, ou do meu computador, ou da netcabo, ou do enguiço de alguém com inveja e capacidades de brux@, ou do Santana Lopes, ou de... Mas ganhei a batalha. Um dia destes parto mas é para os antípodas, para o mais longe possível...
Desde miúdo que sou taradinho por mapas. É uma condição psiquiátrica como coleccionar caixas de fósforos ou saber os resultados do futebol dos últimos 50 anos. A ideia de saber qual o sítio mais longe do nosso onde se pode ir é atraente. Há mais simpáticos maluquinhos que se preocupam com estas coisas dos antípodas. Como já sabia, o de Lisboa é algures nas imediações da Nova Zelândia. Fui verificar e, por Neptuno!, calha exactamente no oceano, a 277 km de terra. Exactamente no centro desta grelha:
Mas felizmente há outros prestimosos loucos (link) que dizem ser possível, no jogo dos antípodas, procurar o local seco mais próximo. Foi assim que descobri este, no site do "jogo" do Confluence Project, a 25 km a Oeste de Te Awamutu, na Ilha Norte da Nova Zelândia. Eis o mapa e a foto:
O antípoda deste antípoda (!) não fica em Portugal, mas sim na Andaluzia, mais exactamente a 10 km a Sul de Villaviciosa de Córdova. Eis o mapa e a foto:
Mas é óbvio que o ponto seco mais próximo do meu antípoda líquido há-de estar mais próximo da costa do que aquele pasto de ovelhas nas cercanias de Te Awamutu. O jogo dos antípodas já não me ajuda nisto, por isso, a partir do mapa, tracei uma recta até à costa e fui dar a Kawhia (não é linda?). Parece que este sítio foi um dos pontos de chegada dos Maori, quando descobriram a Nova Zelândia/Aotearoa (portanto, "descobridores" também...).
PS: Para saber o antípoda, transforme a sua latitude na contrária (Norte em Sul e vice-versa) e subtraia a sua longitude a 180.
PPS: Gostar de mapas é uma forma de juntar racionalidade e sonho, as coordenadas e os lugares imaginados...
É claro que nem sequer chega ao nível do humor negro gozar com a queda de Fidel. Com a queda em si, quero dizer. Mas para nós, tugas, isto das quedas tem muito que se lhe diga de metafórico. O outro, o impronunciável que calçava botas remendadas, caíu da cadeira; este, o das botas militares mascaradas de rebeldes, caíu do palco... Os cenários, ainda por cima, batem certo: o Outro era reservado, tímido e sacrista - só podia ter caído da cadeira, em casa, longe da vista (e do coração...); Este, bicho de comício e propaganda, só podia ter caído do palco...
«FRANCE:Today more than 140 prominent Catholic leaders and organisations submitted a letter to European Parliament president Josep Borrell Fontelles in protest against the appointment of Rocco Buttiglione as Commissioner for Freedom, Security and Justice.
"As European Catholics we disagree with Rocco Buttiglione's positions on the family, on homosexuals, on women, as well as on his promotion of camps for asylum seekers at the borders of the EU," stated the letter. "His positions on these issues do not reflect mainstream Catholic attitudes." The signers addressed Dr. Buttiglione's dismal record on women's rights and the civil rights of homosexuals and as a Minister of European Affairs for Italy. They also objected to his appointment on the basis that he has not upheld the EU principle of non-discrimination in his own country. While some supporters of Dr. Buttiglione tried to depict the opposition to his appointment as anti-Catholic. Catholic leaders and lay groups laid that argument aside, stating that, as Catholics, they disagreed with any suggestion that EU institutions are anti-Catholic. "We strongly disagree with this false complaint of 'anti-Catholicism'" the letter stated. "It is not because of his affiliation to the Catholic church that he is opposed but because his political record does not demonstrate that he has the qualifications to be a Commissioner who will promote justice and civil rights in the European Union." "Dr. Buttiglione blames the low birth rate in Europe on women with careers. He has called homosexuality a sin. He believes that AIDS is a 'divine punishment for homosexuality and drug use,'" said Elfriede Harth, the European representative of Catholics for a Free Choice. "Our opposition to this appointment is based on Dr. Buttiglione's lack of credentials and his egregious record of discriminatory remarks and actions. It's not anti-Catholicism. It's anti-bigotry."
Catholics for a Free Choice has developed a fact sheet on Dr. Buttiglione as part of its "Conservative Catholic Influence in Europe" series. (Available at Catholics for a Free Choice
Ontem estive horas sem acesso ao blogspot, ao meu blog ou a qualquer blog da blogspot (que cacafonia...). Mas hoje não vejo nenhuma explicação... Alguém teve o mesmo problema?
Recuo à adolescência. Na época as coisas eram muito marcadas (o 25 de Abril tinha sido há pouco tempo e as pessoas - espanto! - estavam muito politizadas, como se dizia então...). "Esquerda" e "direita" eram metáforas para muito mais do que opções ideológicas ou programas político-partidários. Na época eu achava que as pessoas de direita eram todas aquelas que, por boa ou má fé (do camponês ao dirigente do CDS) aceitavam o senso comum, o "as coisas são assim porque sempre foram assim e sempre hão-de ser assim"; e as de esquerda eram aquelas que, convictamente ou não (do vidreiro da Marinha Grande ao intelectual) achavam que o mundo "é composto de mudança" e que é possível libertar as mentes e garantir o máximo de igualdade para o máximo de pessoas.
«Pelo menos cem mil pessoas a copiar o texto bíblico à mão. Tal é a expectativa dos responsáveis pelo projecto "A Bíblia Manuscrita" que, entre 6 e 21 de Novembro, aos fins-de-semana, decorrerá em todas as capitais de distrito do país. Em Março, a Sociedade Bíblica Portuguesa (SBP), responsável pela ideia, promoveu uma primeira parte da iniciativa nas escolas, mobilizando cerca de 50 mil estudantes do 2º e 3º ciclo e do secundário. Agora, todos os interessados podem deslocar-se a um "scriptorium" onde copiarão um versículo da Bíblia.»
Que tal fazerem o mesmo com a Constituição? Ou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Sempre aprendiam alguma coisa e confrontavam-se com menos sangue, incesto e passagens escritas por autênticos contabilistas. Ou então o Corão: para corarem de vergonha quando descobrirem as semelhanças...
Respondendo a uma carta dum leitor sobre o caso Buttiglione, José Manuel Fernandes publica esta prosa surpreendente (?):
«N.D. - O ponto em que discordamos é transparente: eu acho que ninguém deve ser discriminado; na sua carta defende que os homossexuais devem ser discriminados positivamente. Agradeço-lhe ter dito alto o que muitos pensam, mas não assumem. J.M.F.».
Das duas uma: ou não sabe mesmo o que é discriminação positiva, ou finge que não sabe. É assim como o Buttiglione, que não sabe (ou finge não saber) o que é uma política pró-activa contra a discriminação.
Que diria JMF dos anúncios de emprego nos EUA relativos à minha área e nos quais vem quase sempre especificado o seguinte: "Este empregador proíbe a discriminação com base na orientação/preferência sexual ou baseada na identidade/expressão de género"?
«É óbvio que Gomes da Silva executa uma tarefa de assassino profissional por conta do primeiro-ministro Santana Lopes. O primeiro-ministro abre os braços, num gesto de comovida inocência, e declara: "Eu? De modo algum, não é possível, eu até estava a dormir a sesta..." (...) O depoimento prestado à Alta-Autoridade por Gomes da Silva foi de tal modo desastroso que tudo parece levar a pensar que ele só pode fazer de propósito. Ninguém é tonto tantas vezes. Há um Guiness para estas coisas. Gomes da Silva acha que é um político (se a política fosse isto, melhor seria o suicídio) respondendo a outro político.» (Eduardo Prado Coelho)
«Qual é o verdadeiro ministro Morais Sarmento? O que anteontem, depois de fazer uma intervenção sobre a filosofia do serviço público a que nada haveria a apontar, veio esgrimir argumentos perigosos sobre quem vai ou não a votos e sugerir o que não se pode tolerar: uma menor independência da RTP em relação ao Governo? Ou o que ontem esteve na Assembleia da República reafirmando os princípios formulados durante o anterior Governo relativamente à estação pública e que, podendo ser discutidos como opções políticas, não podem ser atacados como atentados aos direitos fundamentais?» (José Manuel Fernandes)
Quando a URSS colapsou, a Bielorússia tornou-se independente e adoptou uma antiga bandeira, a da esquerda. Mas quando Lukaschenko - "o último ditador da Europa" - chegou ao poder, re-adoptou a bandeira da república soviética. Assim se simboliza a recusa da História (ou a obsessão com ela...): Entalada entre novos países da UE cujos governos preferem definir-se como "da NATO" e uma Rússia onde nenhum governante deve saber soletrar a palavra "democracia", aos bielorussos só lhes resta comer a sopa de beterraba calados.
«Temos grandes dúvidas e receios relativamente à adesão de Portugal à União Europeia. Trata-se de um país maioritariamente católico, dado a rasgos de fundamentalismo, como fica patente na sua lei do aborto. Por outro lado, nem sequer temos bem a certeza de se situar na Europa: está mais perto de África do que a Turquia e tem uma longa história extra-europeia. Embora seja oficialmente uma república laica e um Estado de direito, teve até há muito pouco tempo a mais longa ditadura de direita nesta parte do mundo e há sinais preocupantes de dificuldade de estabelecimento de uma cultura democrática, como sejam a influência do governo nas televisões, um primeiro-ministro não-eleito, líderes regionais sem limites de repetição de mandatos, e uma série de outras questões. É claro que é uma pequena economia e um país pouco significativo demograficamente, mas a Europa tem que definir melhor quem pode ou não pertencer à União.» (Primeiro-ministro turco, in O Mundo Alternativo)
Yossi and Jagger, do israelita Eytan Fox: uma agradável surpresa obtida através de meios néticos (u know what I mean...). Dois soldados israelitas apaixonados, um mais out, outro quase nada. Pequena história romântica de sabor trágico, mas excelente na normalidade do retrato da atracção entre dois homens. Para mais, dá-nos a conhecer dois exemplos bem curiosos da música israelita: Rita, que a personagem mais out de Jagger adora interpretar; e o mais jorgepalmense Banai Evyatar - ambos difíceis de encontrar na net, a não ser sites com letras de canções, vendas de discos e grupos de discussão...
Tudo indica que nos Açores o PS não só ganha, como sobe. E o PSD, aliado agora ao PP, desce aos piores níveis de sempre. É a primeira derrota de Santana Lopes, que investiu na campanha com ministros, promessas e ele próprio. Já a vitória do cacique da Madeira pouca satisfação trará ao PSD. A carga simbólica estava toda em conseguir ganhar de novo os Açores.
1) Os blogs - sobretudo do tipo deste - são espaços de publicação privados. Este tem um autor, e identificado. Neste sentido, não é muito diferente da publicação de um livro ou artigo.
2) Fazendo-se acessíveis ao público (como um livro, um artigo, etc), os blogs não são, todavia, espaço público puro e simples; não são imprensa.
3) Os blogs podem ter, ou não, caixa de comentários. O autor do blog é que decide.
4) Quando a têm, os fornecedores de serviço de comentários (neste caso a Haloscan) permitem a gestão dos comentários pelo "dono" do blog. Permitem apagar comentários e banir IPs.
5) Porquê? Porque deve ser possível apagar/banir certos tipos de comentários/comentadores: racistas, sexistas, homofóbicos, anti-semitas, spams, boatos, calúnias, apropriações indevidas de nomes de outras pessoas, etc. Tudo aquilo que numa sociedade democrática é considerado inadmissível.
Science can be dangerous and difficult, bitter struggles can set new standards. (1979)
Os cartazes e murais da propaganda totalitária exercem um bizarro fascínio: pelo kitsch (e às vezes até camp...), pelo seu aspecto comic (e cómico) e... pelo medo que inspiram (medo da nossa própria fragilidade e credulidade). Encontrei alguns sites curiosos:
O grosso da documentação é sobre o nazismo e a China comunista. Não é fácil encontrar algo de sistemático sobre a Itália fascista ou a Espanha franquista. Mas, sobretudo, dois pequenos países são muito difíceis de encontrar: a Albânia e Portugal (respectivamente sob Enver Hoxa e Salazar). Sugestões?
Finalmente, um site holandês sobre arte de propaganda (vários contextos); um site americano de análise e crítica geral da propaganda; e este, também americano, onde se faz remix provocatório da propaganda do regime do W (muito divertido).
Vejam esta excelente crónica do Augusto M Seabra. Não resisto a citar três trechos:
«(...) Buttiglione acha que "o Estado não tem o direito de meter o seu nariz neste domínio" e J.M.F. fica em êxtase "liberal"! Será assim tão simples? O Estado não tem que regular a vida privada (era o que faltava!), mas tem que assegurar justamente que cada indivíduo, cada cidadão e cidadã, livres e iguais perante a lei (uma matriz da cultura europeia e mesmo "ocidental" de que J.M.F. tanto se reivindica, e eu também), possam usufruir do seu estatuto. O que Buttiglione propõe é que as mulheres aceitem uma função especificamente reprodutora dentro do "matrimónio", e que os "homossexuais" usufruam o seu "pecado" no estrito domínio da privacidade. São isto liberdades e direitos? É isto liberal? (...)
É muito fácil dizer, como Buttiglione fez, e outros repetiram, que ele separa as suas convicções pessoais da lei. Mas então, sabendo que a homofobia e a discriminação das mulheres (duas posições de facto tão reiteradas pelo Vaticano woytiliano a que o comissário está tão estritamente ligado) são matérias reais as quais, tendo que ser enfrentadas no plano das mentalidades, há também que considerar no quadro das acções políticas e dos enquadramentos legais, incluindo o nível supranacional europeu, sabendo-se isso, a indicação de Buttiglione é, das duas uma: ou uma opção pela inacção, ou um desafio a que viole a sua própria consciência - poderá ele levar por exemplo à consideração medidas "permissivas" do "pecado"? Então? (...)
Não é esta a primeira vez que J.M.F. usa de uma figura retórica de subscrever ou justificar uma argumentação dominante (é uma evidência empírica que num país como Portugal opiniões como a de Buttiglione colhem larga aceitação) como se fosse esta a estar acossada. Agora chega mesmo a falar, a propósito do voto da Comissão, dos que "vestem a pele de Torquemada dos nossos dias". Torquemada era inquisidor, e a sequela do Santo Ofício é a Congregação da Doutrina da Fé do cardeal Ratzinger que elabora os documentos pontifícios que o católico Buttiglione subscreve e o laico J.M.F. justifica (por exemplo, "A Coerência do Papa", editorial de 03/08).» (...)
Decidi há tempos não postar sistematicamente sobre filmes e livros - estava a ficar demasiado burocrático. Mas, de vez em quando, um filme, um livro, uma expo ou um espectáculo podem ter a força de um acontecimento - ou apenas fazer-nos cócegas, duma maneira que precisa de ser passada a/pela escrita. The Villagecai na última categoria: brinca com os nossos códigos, percepções e expectativas. De tal maneira, que a principal - e irritante - brincadeira é fazer com que não possa falar aqui sobre ela...
A estratégia vem nos manuais de propaganda. O grupo A, numa tentativa de rejuvenescimento, resolve inventar um boato imoral. A sua expectativa é que os grupo B, C ou D, seus opositores, reajam a favor da imoralidade, de modo a serem punidos publicamente. Acontece que o grupo A não previu que os outros não funcionam no mesmo registo de desarranjo mental e ético: os grupos B, C ou D simplesmente não reagiram. Desesperado, o grupo A resolve correr em frente. Parte do princípio delirante de que os outros grupos reagiram mesmo e aumenta o tom da "indignação" - e pelo caminho revela as suas intenções iniciais.
É claro que os manuais não dizem que certas estratégias normalmente acabam mal e que o feitiço se vira contra o feiticeiro. But then again, quem com um mínimo de inteligência e princípios decide enveredar por uma estratégia destas?
As Regiões Autónomas vão a votos. Uma delas, os Açores, diz-me muito. Cresci na Ilha de Santa Maria. Frequentei os Açores vezes sem conta desde que vim para o continente e ali passei temporadas inesquecíveis (porque será que nas coisas emotivas tropeçamos em clichés?...). Curiosamente, tendo ido a todas as ilhas ao longo dessas viagens, só voltei a Santa Maria no século XXI. Lapso freudiano, com certeza. Mas quando finalmente voltei, senti-me mais... autónomo.
Happy childhood memories, Stª Mª.
Praia de S. Lourenço, Stª Mª: a mais bonita do mundo.
Ganhe quem ganhar as eleições, por favor consigam melhorar as vidas das pessoas, mantendo a beleza dos Açores.
Estava eu a organizar os meus Google News Alerts sobre casamentos homossexuais em Espanha (uma das tarefas secantes de preparação duma pesquisa...) quando dei com esta foto que me tinha escapado. Genial.
José Manuel Fernandes apresenta um argumento de suposto bom-senso liberal, mas que morre na praia. Também eu, por uma fracção de segundo, achei bem que Buttiglione tivesse falado candidamente das suas crenças e valores. Mas logo me lembrei que isso é o que se deve exigir a qualquer candidato a um cargo político. Que ele o tenha feito quando os outros se escondem atrás de retórica, só diz mal desses outros e não necessariamente bem de Buttiglione.
É a partir da manifestação honesta de crenças e valores que se tomam as decisões políticas sobre a ocupação de cargos. Os cargos de poder político não são meros cargos administrativos: as crenças e valores dos candidatos são mesmo uma das variáveis mais importantes. E os parlamentos e os deputados, representando a diversidade de crenças e valores da sociedade não só podem, como devem, reagir em consonância.
Buttiglione não sabia sequer o que significa fazer políticas anti-discriminação pró-activas. Porque na realidade basta-lhe enunciar os princípios e sentar-se tranquilo com os seus valores e crenças, numa manifestação da famigerada teoria da "tolerância". Por detrás da análise de JMF - partilhada por muita gente - está a acusação de que o "politicamente correcto" é uma espécie de nova inquisição. Esta é uma falácia tremenda. Porque as políticas anti-discriminação fazem-se no sentido de obter mais igualdade e mais diversidade, e não pela repressão de grupos e identidades ou pela manutenção do status quo. Esta gigantesca diferença não permite confusões com políticas inquisitoriais.
Mais: onde traçaria JMF o limite entre a pura manifestação das "convicções" e a possibilidade da sua aplicação em políticas? Por exemplo, qual seria a sua reacção se Buttiglione tivesse demonstrado, candidamanete, "ser racista, mas não ir aplicar políticas racistas". Provavelmente ter-se-ia insurgido - o que só mostra o desprezo conservador pelas questões de género e sexualidade como questões sociais e políticas nobres. É aí mesmo que a porca torce o rabo: no caso de Buttiglione e no caso de JMF.
O truque da atribuição de características inquisitoriais às novas agendas da identidade (e que são, largamente, novas agendas de esquerda) é um dos truques mais eficazes do pensamento único da última década. Mas a verdade, valor liberal e democrático, obriga-nos a dizer que Torquemada era mesmo da Inquisição, era mesmo da ICAR. Ele sim, não nós.
Não vive entre nós. Floresceu lá fora. O estrume (a palavra não é negativa...) da sua pintura é o fascismo nacional-entranhado nas suas duas dimensões extremas: a política e o sexo. Impõe-se uma romaria ao Porto. E visite-se este excelente sítio, onde as reproduções são óptimas.
Confesso que me interessei pelo artigo baseado na pesquisa da antropóloga (física, ou biológica, para quem possa ter ficado confuso...) Cristina Padez sobre a subida da altura média dos portugueses. As razões são pessoais: meço 1,90 m e isso não é pera doce em Portugal. Em primeiro lugar, o relacionamento face-a-face fica comprometido: as pessoas estão sempre "lá em baixo", fico auto-consciente da diferença e tento compensar através de formas de "submissão" verbal e de opinião; em suma, "apago-me". Em segundo lugar, isso tem sido péssimo para a coluna e as costas, pelo que o meu CV já conta com uma operação a uma hérnia discal e vários meses de quase invalidez. E a lista não pára: todas as mesas e cadeiras de todos os cafés e restaurantes parecem-me mobiliário de jardim infantil; as salas de cinema e os aviões são câmaras de tortura; as crianças, na sua infinita mistura de má-criação e ingenuidade, comentam a altura como quem comenta uma freakishness de circo; a altura retira energia, maleabilidade e "jogo de cintura", colocando-me numa espécie de nirvana budista quando em aglomerações humanas, das manifs às discotecas; dormir em camas que não a minha retira-me qualquer vontade de experimentar os hotéis-cápsula japoneses; e por aí fora.
Felizmente a posição horizontal em que por vezes se faz amor é completamente indiferente à altura dos parceiros. Thank God for small mercies, indeed...
Pacheco Pereira começou hoje no Público um texto sobre a dicotomia esquerda/direita. A sua tese, pelo menos por agora, é que a distinção não faz muito sentido e que o regresso do tema é sintoma de provincianismo e de uma "reacção" (a expressão é minha) ao estado da política, explicável pelo contexto histórico português. Mais: seriam o PP e o BE a promover essa "reacção".
Não lhe nego a possibilidade de razão e até posso concordar nalguns pontos. Mas há que considerar a seguinte hipótese: e se ao recuperarem símbolos como esquerda e direita as pessoas estivessem a querer recuperar a Política, naquilo que ela tem (e isso não é mau, ao contrário do que Pacheco Pereira insinua) de identitário? Sobretudo numa situação onde lhes é atirado à cara constantemente que "eles são todos iguais", que o que interessa é a política concreta x (numa espécie de colonização da política pela gestão de empresas), ou que a imagem dos políticos é mais importante que as ideias?
A "extremização simbólica" do PP e do BE pode e deve ser criticada e controlada. Mas PP (o pensador) esquece que a plasticina do centrão não é necessariamente virtuosa. Interessante, para mim, é que os debates políticos e, sim, ideológicos, penetrem o centrão, como quase aconteceu na campanha interna do PS. Nada de semelhante se vislumbra, todavia, no PSD. E deve ser por isso que está a ser "comido" ideologicamente pelo PP.
Os argumentos contra a adopção por gays e lésbicas vão sempre dar ao fantasma da criança, a famosa terceira pessoa. Mas... e se pensássemos, por pedagogia, na terceira pessoa face a casais hetero? Deixemos de lado coisas que se aplicam igualmente a heteros e homos: violência física e psicológica, abuso, negligência, etc. Pensemos, isso sim, em como no caso hetero, três questões se colocam: 1) os hetero são a maioria, por isso mais crianças estão em risco com heteros; 2) os hetero, ao casarem-se/juntarem-se têm mais probabilidades de se reproduzirem; 3) os hetero podem adoptar no caso das uniões de facto, que proibem a adopção por casais homo. Sendo assim, as crianças nascidas de casais hetero não têm qualquer atenção a montante do seu nascimento: qualquer casal de idiotas incompetentes ou sádicos pode ter filhos. E, em virtude do próprio sistema de parentesco e família em que vivemos, as crianças são expostas (uma vez mais, deixemos de lado as violências físicas) a violências simbólicas terríveis: a "obrigação" de virem a reproduzir-se para "darem netos" aos pais; a "obrigação" de perpetuarem o nome da família através do sistema patrilinear; a violência de serem endoutrinadas segundo os padrões de género que os próprios pais já transportam consigo em virtude da sua associação através da lógica dos sexos diferentes (confundida com a dicotomia de género); a violência de terem que salvaguardar a honra da família nos seus comportamentos, de modo a não a "envergonharem"...
« La mauvaise utopie, c'est celle qui prétendrait réaliser l'harmonie parfaite, éliminer la douleur et tout conflit, rendre chaque individu transparent. C'était en quelque sorte, l'utopie de type soviétique, telle qu'elle s'est manifestée avec l'idée de Paradis soviétique. C'est cette utopie que prétendait avoir réalisé la Chine de Mao et ses propagandistes. » (Edgar Morin, Pour une utopie réaliste, 1996).
Manuel Alegre, Mário Soares, Boaventura Sousa Santos e tantos dos meus "correlegionários" gostam de insistir no valor - e na "necessidade de recuperar" - a ideia de "utopia" (palavra que quer dizer, convém não esquecer, "sítio nenhum"). Mas a palavra continua a provocar-me urticária. Coço-me todo quando a oiço. O leque de emoções e crenças que lhe está associado não bate certo comigo. É claro que, no fundo da minha alergia está o fantasma do "socialismo real"; mas está também o milenarismo, o pensamento religioso e, agora, o "new-agismo". Chamem-me cínico - ou realista - mas prefiro mesmo pensar em coisa fazíveis, e fazíveis no meu tempo de vida...
«P.S.: "Eles mentem, eles perdem", recordam-se? Na Austrália, o segundo governo da coligação a ir a votos depois da intervenção do Iraque, "eles" ganharam e reforçaram a maioria. Sendo que a oposição tinha como principal promessa de campanha fazer regressar os soldados...» (José Manuel Fernandes, Público)
Não pude deixar de rir quando li. E de reconhecer que JMF acertou na mouche político-humorística. Devemos reconhecer que, em política, tudo o que se diz é passível de desmontagem futura e de contradição, dada a velocidade e a complexidade dos acontecimentos...
«(...) Santana discursou para os portugueses normais, que estão longe das «tricas» mediáticas e que querem ver sinais de alívio nas suas vidas, já em 2005. Foi a parte mais importante da comunicação, e aquela que diz directamente respeito ao colectivo nacional. Os impostos vão baixar, o défice estará controlado, o investimento seguro, e os aumentos serão acima da média, para compensar anos de crise e sacrifício (...)» (Luís Delgado, no DN de hoje).
Se vivessemos em ditadura, este senhor era o Comissário da Propaganda.
Faz parte do chamado "pensamento único" pós-Muro de Berlim (coincidente com a hegemonia americana na actual fase da globalização) dizer que a diferença entre esquerda e direita não faz sentido. Aliás, quando se diz que alguma coisa não faz sentido (e todavia se continua a discuti-la) normalmente está-se a tentar atirar para a sombra uma questão que ainda está bem debaixo do foco de luz.
É útil para certos sectores dizer que a diferença esquerda-direita já não se coloca; normalmente a afirmação vai junto com um falso pragmatismo ou realismo que diz que as coisas, agora, são como são (modelo económico, político, social etc) e sê-lo-ão assim para sempre. (Não é por acaso que a ideia de "fim da História" triunfou nestes meios avessos às distinções esquerda-direita, ou que esta dicotomia foi substituída pelo sub-produto intelectual que é a ideia de "choque de civilizações"...).
Não é só do campo da direita que veio este desprezo pela distinção entre os campos. Também a tradição intelectual de esquerda contribuiu para isso com o pós-modernismo cínico que rapidamente levou ao abandono de perspectivas éticas - logo, políticas - na forma de pensar a vida em sociedade.
Creio que, felizmente, os tempos da desilusão cínica dos anos 80 e 90 estão a acabar. Em grande parte devido ao surgimento de novas áreas do político (a globalização e o movimento alter-globalização; as chamadas políticas da identidade ou da vida, politizando movimentos identitários como o LGBT, das mulheres, dos indígenas, dos imigrantes, etc); e em grande parte devido à necessidade de reinventar sistemas de regulação da desigualdade e de inventar sistemas de promoção da diferença. Pessoalmente, acho que a dicotomia simbólica esquerda-direita vai ser de novo útil para nos orientar.
Não quer isto dizer que a diferença esquerda-direita deva ser percebida da mesma maneira que o era há uns trinta anos. Espera-se bem que não. É claro que ela não se coloca hoje em termos de capitalismo puro versus comunismo puro, ou em termos de distinções partidárias baseadas em programas ideológicos dogmáticos. E é sem dúvida verdade - e de que maneira - que tanto a direita como a esquerda viram os seus exemplos máximos (as ditaduras fascistas e/ou militares e as ditaduras do Leste) ir pelo cano da História abaixo.
O que, sim, continua a fazer sentido - para lá das variações contextuais, do fim de certos modelos, e da crítica a certas utopias - é a distinção relativa entre esquerda e direita. Esta distinção, que é sempre relacional como qualquer processo identitário, e tendencialmente binária como em qualquer processo de simbolização, assume dois modos. O primeiro é o modo do continuum: "de mais à direita para mais à esquerda". O segundo é o modo da diferença inegociável, isto é, o(s) ponto(s) em que se dá(dão) clivagens. Ambos os modos constituem uma guerra de posições...
Assim, diferenciações colocadas num continuum podem incluir pontos extremos como economia de mercado livre e propriedade colectiva dos meios de produção; religião oficial de Estado e proibição de culto e associação religiosa, etc. Postas as coisas assim, a tendência será para uma aproximação ao centro, sobretudo porque a História (mais recente do que parece) mostra-nos os maus resultados das opções pelos pontos extremos deste continuum. É aqui - neste imaginário "Centro" - que as diferenças inegociáveis surgem (melhor: devem surgir) de novo. Até porque o centro tende a ser lamacento ou contraditório - por exemplo, com pessoas economicamente "de direita", mas "de esquerda" nos costumes. Curiosamente - e ainda bem - as diferenças são agora mais complexas e, ao mesmo tempo, mais baseadas em opções éticas: deve ou não o Estado controlar os serviços públicos? Deve-se ou não tentar atingir a máxima igualdade de oportunidades e como? Deve ou não compensar-se as pessoas e grupos mais desprivilegiados e como? Deve ou não promover-se a discriminação positiva? Até que ponto e como deve o Estado regular a economia? Qual a fronteira entre a garantia da laicidade do Estado e a garantia da liberdade religiosa? E por aí fora.
Esquerda e direita são termos úteis, não para definir a pertença a clãs, clubes ou tipos de pessoas, mas sim para designar inclinações - e pontos de fuga (como na perspectiva). Sem os nomes não nos orientamos; sem uma constelação de símbolos e significados por detrás desses nomes tão-pouco. Mas como os nomes podem rapidamente tornar-se etiquetas, é necessário que constantemente explicitemos / expliquemos, o que queremos dizer com eles.
As experiências totalitárias tiveram o condão de nos mostrar que em muitas áreas da vida a distinção esquerda-direita não servia. Basta pensar na abordagem da homossexualidade quer por regimes de direita, quer por regimes de esquerda. Ou pensar em como várias esquerdas se combateram sobre a legitimidade do uso da etiqueta. A ideia de "diferenças inegociáveis" deve estender-se a novos domínios, para lá das relações de classe, do contrato e conflito entre capital e trabalho ou do modelo económico - e abarcar os domínios das identidades e dos estilos de vida.
No fundo, no fundo - e retornando aos tempos míticos da fundação da dicotomia, a Revolução Francesa - continuamos a diferenciar-nos em torno da dicotomia tradição/progresso - mesmo com a tradição "já não sendo o que era" e mesmo com a ideia de "progresso" criticada como sendo eurocêntrica e conivente com vários processos de exploração. As "tradições" são outras; e o "progresso" deve, em consonância, ser reinventado.
Basta olhar para Espanha. O que parece estar a acontecer é um realinhamento das pessoas e dos grupos e dos interesses, em torno das funções do Estado, em torno do funcionamento da economia de mercado, em torno da política internacional, em torno das agendas de identidade - reorganizando assim a valência da dicotomia tradição/progresso. Reinventado a dicotomia direita/esquerda.
Buttiglione foi rejeitado pela Comissão de Liberdades Cívicas do Parlamento Europeu. Algures, lá longe, em Brasília (perdão, Bruxelas) alguém ainda pensa com critérios mínimos de decência. Berlusconi e o Papa da ICAR devem estar a pensar em como reciclá-lo, depois de descobrirem que o produto nem depósito tem. É tara perdida pura.
PS: Com este caso, ficou clara uma coisa: a primeira comissão presidida por um português dá o seu primeiro tropeção por causa da nomeação de um sexista e homófobo. Que bonito para o CV...
O primeiro-ministro não-eleito de Portugal contradiz os seus ministros em tempo de antena em todas as TVs, entre as quais uma sobre a qual exerceu censura. Dias antes prometia mundos e fundos numa campanha eleitoral (nos Açores), violando a própria Lei. Amanhã arranjará maneira de, duma só penada, calar o Presidente da República, fazer-se de vítima, e prometer frigoríficos. Quanto mais tempo se aguentar no programa (perdão, no governo) melhor se safará numas eleições antecipadas, porque os portugueses gostam de quem "sofre". Santana Lopes está, para todos os efeitos, a querer passar a imagem de que está na Quinta das Celebridades: o enfant terrible das discotecas está a sujar as mãos, a sofrer com concorrentes invejosos e a manipular o sistema das nomeações. Esperam-se truques fantásticos para se tornar no favorito dos portugueses...
Já se sabia que Herman José ia apresentar duas cantoras duma girl band que supostamente desejam casar-se. Por momentos pensou-se que talvez fosse esta a esperada oportunidade dum coming out vindo do mundo do espectáculo. E que HJ estivesse a dar algum sinal de consciência cívica - algo que não precisa, de todo, ser incompatível com o show business.
Big mistake. Logo à primeira vista se percebeu que as moças - com o seu ar de empregadas de casa de alterne - estavam a fazer um número publicitário instigado pelo seu empresário (este com o seu ar de porteiro de... casa de alterne).Estávamos, afinal, em pleno mundo reality show rasca (bem sei, é uma redundância).
Pior ainda do que a burla foi a performance de HJ. Em nome do humor desfiou toda a lista machista de observações sobre lésbicas. Ele acha - e provavelmente tem razão, do ponto de vista pecuniário - que o que vende é a chalaça rasteira.
Castelo Branco na Quinta das Celebridades com afirmações homofóbicas (mas, pelo menos, mostrando que a bichice é um traço pansexual, partilhado por Cinhas Jardins, etc); um par de alternadeiras desesperadas e exploradas fingindo que são lésbicas, para satisfação das fantasias pornográficas macho-heteras; o humorista mais mediático explorando o sexismo e a homofobia e os recantos obscuros e bafientos do armário - e pelo caminho não conseguindo, pelo menos, fazer humor. Se ainda assim aparecer um dia destes alguém com visibilidade e responsabilidade a defender o casamento para casais gay e lésbicos só pode mesmo ser por influência dos desenvolvimentos em Espanha.
PS1. Atenção ao "Prós e Contras" de logo na RTP1. Anuncia-se que uma série de "notáveis" vão falar, entre outras coisas, sobre "casamentos homossexuais".
PS2. E, já agora, atenção ao Santana Show: seremos brindados por profissões de fé democrática de igual calibre alternadeiro...
PS3. Relendo, não gostei muito do tom do que escrevi acima sobre alternadeiras. Quando fiz pesquisa no Alentejo conheci muitas alternadeiras nos bares onde ia com os meus infomantes. Não só não tenho nada contra, como não tenho que ter nada contra. A imagem que invoquei assenta na memória de um tipo muito específico de mulher que conheci - as de origem muito humilde, sobre-exploradas desde miúdas e na maior parte dos casos dependentes de drunfos e álcool. Nada que se pareça com a imagem positiva de quem gosta da profissão ou acha que vale a pena estar nela.
" I have the greatest admiration for your propaganda. Propaganda in the West is carried out by experts who have had the best training in the world -- in the field of advertizing -- and have mastered the techniques with exceptional proficiency ... Yours are subtle and persuasive; ours are crude and obvious ... I think that the fundamental difference between our worlds, with respect to propaganda, is quite simple. You tend to believe yours ... and we tend to disbelieve ours. " (a Soviet correspondent based five years in the U.S.)
"In a dictatorship, censorship in used; in a democracy, manipulation." (Ryszard Kapuscinski, journalist)
" [The] media, our top elected official, and our two dominant political parties rarely criticize the growing power of large corporations because they are bankrolled by them." (Nancy Snow, author)
" Governments lie." (I.F. Stone, journalist and author)
" The notion that journalism can regularly produce a product that violates the fundamental interests of media owners and advertisers ... is absurd." (Robert McChesney, journalist and author)
" There's a whole journalistic-industrial complex dedicated to keeping newsprint, TV screens and radio waves clean of destabilizing scoops damaging to corporations or the state." (Alexander Cockburn, journalist)
«La violencia de género no es un problema que afecte al ámbito privado. Al contrario, se manifiesta como el símbolo más brutal de la desigualdad existente en nuestra sociedad. Se trata de una violencia que se dirige sobre las mujeres por el hecho mismo de serlo, por ser consideradas, por sus agresores, carentes de los derechos mínimos de libertad, respeto y capacidad de decisión.» (Preâmbulo da Lei contra a Violência de Género, Espanha. O texto está aqui).
Duas figuras tornaram-se notórias nos últimos dias: Rocco Buttiglione e José Castelo-Branco. Estranha mistura ou emparelhamento? Nem por isso. O primeiro navega no poder político, o segundo no mediático. O primeiro poder legisla e toma decisões que afectam as vidas das pessoas, o segundo poder cria o senso-comum que alimenta o primeiro.
Rocco Buttiglione tem posições fortíssimas contra o aborto, os direitos de mulheres e LGBTs, dos imigrantes, etc. Frequentador do American Enterprise Institute, amigo e camarada político de Berlusconi, pode agora vir a ser comissário europeu na área que tutela a política anti-discriminação. Pior: pode vir a ser um dos vice-presidentes da Comissão.
A Castelo-Branco ouvi-o pela primeira vez numa entrevista em que debitava as maiores reaccionarices sobre relações de classe, "sangue", "genética", etc. Quando o vi da Quinta das Celebridades mudei de opinião, pois adorei a sua performance de bichice, aparentemente próxima do gender bending e de um certo queerismo. Horas (ou um dia) depois, apercebi-me que me tinha enganado: de imediato ele tratou de estabelecer distinções entre si e os gays, entre bichice e paneleirice e outras barbaridades do género. Há uns perversos lá fora que nada têm a ver com ele, que está dentro: dentro da classe e do dinheiro certo, dentro da moral certa, dentro das definições de género certas, que incluem a possibilidade (a necessidade?) de figuras como ele. Não há nisto qualquer performance, gender bending ou queerismo: há, pelo contrário, uma marcação e demarcação nítida de um projecto de identidade.
E qual é esse projecto ou essa identidade? Bem, a mais velha instituição da homofobia interiorizada à Portugal do Ancien Régime: aquela que tem as suas origens no provinmcianismo marialva, no catolicismo de crendice, no culto da hierarquia e da ascendência social, no heterosexismo, na crença em distinções claras de masculino e feminino, na homofobia perante quem se assuma como homossexual. A "performance" de bichice de Castelo-Branco é apenas a velha bichice de bobo da corte, há décadas aceite (e desejada) mesmo (ou sobretudo) nos círculos mais conservadores.
Portugal inteiro - sobretudo as "massas" - vão reconhecer(-se) na bicha de carnaval de aldeia que lhes vai aparecer nos ecrãs. Mas infelizmente não vai ser exposto a uma performance criativa e desafiadora dos códigos sexistas e homofóbicos (por momentos pensei que sim, depois desiludi-me); e vai ser exposto a um chorrilho de asneiras discriminatórias que vão afectar todo o trabalho de consciencialização.
Note-se: não por transmitir bichice versus uma suposta imagem arrumadinha e masculina de gay (não gosto desse "programa" e acho que há bichice mais revolucionária do que muita homossexualidade straight), mas por justamente negar a possibilidade de uma bichice desafiadora, cooptando-a para a perpetuação do conservadorismo. (Basta ver como os outros concorrentes aparentemente gay participam deste efeito de poder calando-se e fazendo-se passar despercebidos - o que significa como o "modelo" Castelo-Branco está do lado da hegemonia e do exercício do poder simbólico).
Do outro lado do espectro das instituições do poder, e lá bem no centro decisório de Bruxelas, poderá estar um político-sacristão a dar corpo de lei às mensagens que os Castelo-Brancos passam por outras vias.
PS: Desculpem a linguagem algo "teórica". Quando me desiludo com o potencial de alguém, parece que a teoria compensa com racionalidade o mal-estar emocional. Neste caso, a teoria funciona também como Betadine...
"Hatred is partial, but love is still more so." (Goethe, As Afinidades Electivas - obviamente na edição inglesa)
Depois desta reestruturação do blog, fiquei um pouco apreensivo com os possíveis efeitos da secção "Afinidades Electrónicas". Por que carga de água alguém publicita os "favoritos", deixando implicitamente os outros blogs numa "segunda" categoria? Gostaria de esclarecer que não é essa a intenção - nem o sentimento. Os outros blogs não ficam numa segunda categoria, ficam numa categoria própria - e se não fossem importantes para mim não estariam aqui. Só que as afinidades existem mesmo - e têm a ver com questões como estilo, temática, registo e, sim, amizade. Tornar explícita a ronda diária - o que não impede que haja dias, e muitos, em que outros blogs são visitados - pareceu-me apenas ser mais uma informação transparente sobre "por onde ando" e um passozinho no sentido de mais intimismo neste blog. Mas talvez ainda me venha a arrepender...
Está lançado - a partir do Bloco e de cidadãos independentes - um movimento pela abolição do segredo bancário:
«O segredo bancário tem sido usado para ajudar a encobrir a fraude e a evasão fiscal, agravando a injustiça de um regime em que os trabalhadores suportam grande parte da carga fiscal. Por isso, esse segredo foi abolido em muitos países, onde as declarações fiscais são hoje verificadas. Só quem foge aos impostos se opõe a tal medida. Justiça fiscal é a condição para que haja menos impostos sobre quem trabalha. Por isso, propõe-se que seja instituída como competência exclusiva da administração fiscal a verificação da compatibilidade entre os movimentos bancários e as declarações fiscais.» (tirado daqui)
No Brasil, o movimento LGBT está fortíssimo e o carácter liberal da sociedade brasileira tem feito com que as temáticas LGBT tenham uma dignidade (académica, mediática, política, etc) cada vez maior - e sem dúvida maior do que entre nós. Mas uma contracorrente existe no Brasil, vinda dos cada vez mais fortes sectores do fundamentalismo cristão.
«Recentemente, duas comissões da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) foram favoráveis ao projeto de lei nº 717/2003, que prevê a criação, pelo governo estadual, de um programa de auxílio às pessoas que, voluntariamente, optarem pela mudança da homossexualidade para a heterossexualidade. Segundo o parecer da Comissão de Saúde, assinado pelo deputado Samuel Malafaia, homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se complementarem e se procriarem (sic). O homossexualismo, apesar de aceito pela sociedade, é uma distorção da natureza do ser humano normal, diz o relatório. No parecer do relator da Comissão de Constituição e Justiça, deputado Domingos Brazão, "a proposição é de relevante cunho social".»
Pode ficar-se a saber mais sobre este caso aqui. E assinar a petição para impedir os talibãs-tupiniquins.
Apesar do calor, estamos mesmo no Outono, época de rentrée no Hemisfério Norte. No espírito tradicional dos recomeços, este blog levou uma lavagem. Começou por ser alaranjado-dourado; depois passou a azul celeste; agora entra na fase rosa: rosa de LGBT, rosa feminino, rosa da tradição da esquerda (não, não estou a pensar no PS, mas sim na expressão americana "pinko" para designar "comuna"...). Até mesmo rosa de (um pouco mais de) intimismo. Os blinks foram reorganizados, de acordo com categorias que se aproximam mais da minha organização (?) mental, afectiva, estética, política (embora alguns, como os das Outras Pátrias, estejam ainda em construção). Foram acrescentados alguns que estavam injustamente ausentes, recuperados outros, e eliminados os que morreram.
Espero que gostem - e que não gostem. Todas as mudanças são temporárias e outras hão-de vir.
Num país onde a liberdade de imprensa (liberdade em relação aos grandes grupos) e a verdadeira vigilância (que não seja pequena intriga) dos governos pela imprensa são quase mentira (ou por conivência entre poder político e grupos mediáticos ou por promiscuidade entre jornalistas e políticos), fica-se com a sensação de que o governo já não vai durar muito quando até o director do Público escreve assim. O editorial de José Manuel Fernandes é excelente. (Mas com uma ressalva: não é por se ter liberalizado pouco a economia que os empresários dependem das assinaturas dos ministros para a prossecução dos negócios; é mais porque se liberalizou para distribuir riqueza nacional pelos grupos empresariais que ocupam o poder político quando a direita ganha eleições...)
Se os mais novos já não sabiam o que era a censura, ficam a saber.
Pouco importa se gosto ou não das opiniões de Marcelo Rebelo de Sousa. Acho mesmo - e continuo a achar - que o "fenómeno do professor" é um sinal de atraso nacional - na educação, na politização, na ética dos media. Mas nunca defenderia a censura do programa onde ele participa(va). O que aconteceu hoje foi censura: não aquela que é quotidianamente praticada nas famílias, nas escolas, pelos interesses económicos, pelo lobby da ICAR e tantos outros. Não. Desta feita é da mais grave e inadmissível: a do Estado, mesmo que sob a capa de pura pressão ou influência.
Em dois meses este governo conseguiu mostrar o que é a direita portuguesa: um monstrozinho de pacotilha, mas que come os seus próprios filhos. Depois do discurso sem efeito de Sampaio - que o demagogo Lopes, primeiro-ministro não-eleito canibalizou sem pudor - "eles" correm para a frente. Censuram. Cortam pela raiz as suas ervas daninhas. É claro que amanhã (ou hoje...) virão dizer o contrário, afirmar que não se tratou de censura mas de uma decisão da TVI, ou algo semelhante. E nós? Quietos? Não se trata de defender a pessoa ou as ideias de Rebelo de Sousa, trata-se de defender a democracia - algo de que "esta gente" nunca conseguiu gostar verdadeiramente.
Isto já só vai lá com rua. Com muita gente na rua.
PS: O ministro dos assuntos parlamentares, que encarregaram de iniciar este processo, era o tal que vivia aqui no prédio e que mobilizava vários agentes da PSP para não fazerem nada. Os agentes desapareceram, entretanto. Porquê? Parece que o ministro se mudou para a Quinta da Marinha. Já agora ficam a saber.
Venho de dar uma entrevista para um investigador brasileiro que está a trabalhar sobre o movimento LGBT em Portugal e Espanha. As minhas respostas - mais pessimistas do que optimistas - puseram-me num estado de neura e dúvida. Precisamos urgentemente de algum(a) sociólog@ especializada@ em movimentos sociais, que analise as seguintes questões:
1. Porque não cresce o movimento LGBT, mais e mais depressa?
2. Porque é tão fraco comparado com a Espanha?
3. Porque não há mais gente mediática a fazer coming out?
4. Porque não há representações mediáticas da experiência LGBT?
4. Porque é o movimento tão pequeno e fragmentado?
5. Porque não interiorizam os partidos a agenda LGBT?
6. Porque tem a marcha muito menos gente do que o arraial?
7. Porque é que as propostas de transformação parecem surgir dos intelectuais públicos e de alguns segmentos políticos e não do movimento LGBT?
8. Porque, porque, porque...- considerando a história ainda recente da ditadura (e as suas diferenças com a espanhola), a história dos sucessos e insucessos da democracia, o familismo português, o papel do Estado, da ICAR, dos media e dos partidos e um ror de outras variáveis...
Ao sair da entrevista vislumbrei uma hipótese terrível. E se o termo de comparação adequado para Portugal fosse, em vez da Espanha, a Polónia, a Sérvia, a Grécia, etc? Situar-nos-íamos, assim, numa situação intermédia: as poucas centenas de pessoas nas marchas polacas e sérvias (e etc.) seriam entre nós um ou dois milhares. Os ataques físicos de fundamentalistas e as proibições policiais seriam entre nós inexistentes. Assim como os milhões de manifestantes em Espanha. E os pequenos avanços na Polónia, Sérvia (e etc.), impostos pela UE, seriam entre nós os pequenos avanços promovidos por partidos políticos nacionais e pelo segmento menos medroso do movimento LGBT, mas não os grandes avanços promovidos por partidos - e pelo movimento em massa - na Espanha.
Acho que o meu pessimismo é realista. O movimento surgiu a sério em meados dos anos noventa, cresceu e agora entrou num planalto. Mas os planaltos são preocupantes: segue-se nova escalada ou um precipício?
Durão Barroso propôs Rocco Butiglione para Comissário da Justiça. O homem afirma candidamente que acha que a homossexualidade é um pecado mas que isso não interferirá no seu trabalho - para tal seria preciso que a considerasse um crime. Este é daqueles casos em que não basta separar convicções pessoais ou religiosas do exercício dos cargos públicos. Isto porque não se trata duma questão de opinião, assim como a homossexualidade não é pura opção. Quando um político exprime uma opinião sobre um assunto destes (como sobre outras questões de igualdade) está já a fazer política. Ao propor alguém como RB, Durão Barroso está politicamente a subscrever a homofobia daquele. E a tentar enganar-nos com o mesmo falso argumento que tanto se usa na política e na sociedade portuguesas - a falsa ideia de que isto é tudo uma questão de opinião... É tão opinião como dizer que os pretos são inferiores mas que isso não tem consequências políticas - por exemplo proibir o casamento entre pessoas de raças diferentes.
Pois é, troquei Carvalhas por Carvalho da Silva - significativo lapso freudiano. Obrigado, Boss, pela chamada de atenção. De facto, o PCP encontra-se num dilema difícil de resolver, porque perdeu o timing da mudança. Essa mudança tão necessária à família da esquerda portuguesa está a ser desperdiçada vezes sem conta. E por toda a gente, se bem que em graus e com consequências diferentes: pelo PS, pelo PC e também pelo BE. Trata-se de assumir que um discurso e propostas de esquerda são possíveis sem se ficar preso a vários tipos de amarras: o centrismo (PS), o purismo (PC) e o esquerdismo (BE).
Carvalho da Silva anuncia a saída e os boatos falam já em Jerónimo de Sousa. O PCP vai ter que decidir entre renovar-se perdendo votos e "ortodoxar-se" mantendo (poucos) votos. Surpreendente mesmo é que exista, e com estes dilemas. No fundo, quando nos queixamos do PS português quando comparado com o PSOE, deveríamos também pensar em como existe um PC em Portugal ainda balançando entre mais e menos ortodoxia, quando em Espanha há muito não existe - e foi substituído pela dinâmica bem mais interessante da Esquerda Unida. Isto não é mais da (minha) "queixice" ibérica. É que este ordenamento da esquerda revela, de certo modo, os diferentes desenvolvimentos das duas sociedades ibéricas e das suas composições sociais: em Portugal "ainda" é preciso um PS vazio e do centrão, e um PC ortodoxo e dependente dum sindicalismo com trancas de ferro...
Regressado a Lisboa, não quis perder a primeira entrevista de Sócrates, conduzida por Judite de Sousa na RTP 1. Raramente salto do sofá, motivado pelo que vejo na TV, para escrever logo um post sobre o assunto.
Mas hoje é impossível resistir. Porque a entrevista de Sócrates foi de uma nulidade que ultrapassou todas as expectativas (sim, ainda tinha algumas, positivas, no fundo do baú do optimismo).
Tudo começou com o tom do seu discurso, de uma falsidade publicitária espantosa - no tom de voz, na retórica, no olhar de quem não está ali e não está a acreditar em nada do que diz. A postura de alguém que não consegue falar, com convicção e directamente, com aqueles a quem diz dirigir-se o seu discurso. Talvez porque o seu discurso não se dirija a ninguém. Talvez porque o seu discurso não tenha convicções.
E tudo acabou com a sensação do mais completo vazio de ideias, projectos, princípios, valores, demarcação, entusiasmo ou visão. Político das aparências, modelito de TV, boneco de ventríloquo de um senso comum banal, batido, oco.
Pelo meio, os assuntos em que era necessário tomar posição foram tratados com a técnica da evasão, do desvio, do recurso a uma velha cassete com vagas pretensões a novíssimo CD-Rom.
Dali não virá nada - nada que tenha a ver com um salto civilizacional, de modernidade e progresso. Dali não virão quaisquer "novas fronteiras" - tão somente um velho guarda fiscal a quem algum cripto-católico guterrista tenha oferecido uma brilhante farda nova. Triste, triste, triste. Muito triste.
Fronteira 1. Estou fascinado com a expressão "novas fronteiras" de Sócrates. "Fronteira" não tem, em português, a mesma conotação que em inglês americano (com certeza a fonte de inspiração socrática): o que está por conquistar, o espaço "livre" a Oeste, depois metaforizado para toda a ideia de progresso e inovação. Entre nós, o significado europeu tem mais força: fronteira mesmo, como em fortaleza-Europa, contenção da imigração, etc.
Fronteira 2. Mas o mais curioso é ouvir esta expressão nos dias que correm (refiro-me aos casamentos espanhóis, assunto a que tenho dedicado muita atenção, não só porque o acho universalmente importante, mas porque vou começar pesquisa em Espanha sobre o assunto - fica revelado: a partir de 2005 devo postar desde Barcelona!). Num exercício de praia muito pouco científico listei rapidamente as regiões de Espanha que fazem fronteira com Portugal: Galiza, Castela e Leão, Extremadura e Andaluzia. Ou seja, as menos desenvolvidas de Espanha, fora do eixo industrial e urbano já consolidado desde o século XIX, que vai do País Basco à Catalunha, com o desvio para a capital madrilena. O nosso país, em rigor, está para lá (para cá) dessa frontier...
Fronteira 3. A não ser que Sócrates esteja a querer mobilizar o imaginário das descobertas, do Atlântico, e por aí fora. Deve ser isso, porque esse imaginário cheira tanto a mofo, que só mesmo um Jaime Gama poderia liderá-lo. Sócrates não percebeu que não há novas fronteiras. Há, sim, "velhas" fronteiras que ainda não alcançámos e que competiria a um PS tentar alcançar: as fronteiras de uma verdadeira social-democracia. O exemplo está aqui ao lado, passando Badajoz e seguindo um pedaço para Leste.
Carmen Montón, responsável no grupo parlamentar do PSOE pelas questões LGBT dizia: "Primeiro há que garantir a igualdade, depois mudar as mentalidades". Tem toda a razão. A treta da mudança de mentalidades serve de desculpa para não fazer nada. É lenta, e é impulsionada pelas mudanças políticas e legislativas - as mulheres e os negros que o digam...
Mas para haver a mudança legislativa é preciso políticos que honrem a profissão com visão, sentido de democracia, justiça e igualdade. É isso que nos falta. Permitir o casamento civil - e, sim, a adopção como parte integrante de um direito pleno ao casamento - não é uma coisa de somenos, dirigida apenas aos e às LGBT; é uma mudança fulcral nos conceitos mais antigos de casamento, família, parentalidade. E ainda bem.
É por isso que não suporto os argumentos (vindos quer "de fora" quer de alguns LGBTs) que desprezam o assunto; que confundem acesso a direitos com usufruto; que des-gostam da ideia porque são contra a história patriarcal do casamento (uma coisa não impede a outra!); que usam falsos argumentos antropológicos sobre a "ordem simbólica" (acontece em França com antropólogos e psicólogos congelados num estruturalismo conservador) e o perigo da sua ruptura com estas inovações; ou que usam o argumento das prioridades (nada impede que se exija - e deve-se fazê-lo! - uma lei anti-homofobia, por exemplo) ou que se faça todo o trabalho lento e duro de mudança de mentalidades; ou que usam a figura social contemporânea de A Criança como um fantasma dos medos do que acontecerá se os casamentos forem permitidos.
O acesso de LGBTs ao casamento é uma enorme revolução tranquila. Vai mexer na influência de igrejas retrógradas na sociedade; vai mexer na figura da família e do próprio casamento. Ainda bem. Mas não vai fazê-lo através da negação de direitos a ninguém, nem através de uma revolução totalitária em nome de utopias, nem através da concessão de privilégios. Vai fazê-lo através da extensão de direitos - na linha das grandes revoluções democráticas do mundo moderno.
E agora pergunto: cadê uma Carmo Montão? Ou um Sapateiro? A desculpa de que os políticos portugueses reflectem a sociedade não cola: não esteve a Espanha anos a fio debaixo de Aznar? E afinal é Zapatero que tem razão quando diz que o PSOE é o partido que, neste momento, mais está em sintonia com a sociedade espanhola - os seus anseios de justiça e equidade, algo que está sempre aí para quem quiser ouvir bem, independentemente da "mudança de mentalidades"...