OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


12.10.04  

Esquerda/direita.

Faz parte do chamado "pensamento único" pós-Muro de Berlim (coincidente com a hegemonia americana na actual fase da globalização) dizer que a diferença entre esquerda e direita não faz sentido. Aliás, quando se diz que alguma coisa não faz sentido (e todavia se continua a discuti-la) normalmente está-se a tentar atirar para a sombra uma questão que ainda está bem debaixo do foco de luz.

É útil para certos sectores dizer que a diferença esquerda-direita já não se coloca; normalmente a afirmação vai junto com um falso pragmatismo ou realismo que diz que as coisas, agora, são como são (modelo económico, político, social etc) e sê-lo-ão assim para sempre. (Não é por acaso que a ideia de "fim da História" triunfou nestes meios avessos às distinções esquerda-direita, ou que esta dicotomia foi substituída pelo sub-produto intelectual que é a ideia de "choque de civilizações"...).

Não é só do campo da direita que veio este desprezo pela distinção entre os campos. Também a tradição intelectual de esquerda contribuiu para isso com o pós-modernismo cínico que rapidamente levou ao abandono de perspectivas éticas - logo, políticas - na forma de pensar a vida em sociedade.

Creio que, felizmente, os tempos da desilusão cínica dos anos 80 e 90 estão a acabar. Em grande parte devido ao surgimento de novas áreas do político (a globalização e o movimento alter-globalização; as chamadas políticas da identidade ou da vida, politizando movimentos identitários como o LGBT, das mulheres, dos indígenas, dos imigrantes, etc); e em grande parte devido à necessidade de reinventar sistemas de regulação da desigualdade e de inventar sistemas de promoção da diferença. Pessoalmente, acho que a dicotomia simbólica esquerda-direita vai ser de novo útil para nos orientar.

Não quer isto dizer que a diferença esquerda-direita deva ser percebida da mesma maneira que o era há uns trinta anos. Espera-se bem que não. É claro que ela não se coloca hoje em termos de capitalismo puro versus comunismo puro, ou em termos de distinções partidárias baseadas em programas ideológicos dogmáticos. E é sem dúvida verdade - e de que maneira - que tanto a direita como a esquerda viram os seus exemplos máximos (as ditaduras fascistas e/ou militares e as ditaduras do Leste) ir pelo cano da História abaixo.

O que, sim, continua a fazer sentido - para lá das variações contextuais, do fim de certos modelos, e da crítica a certas utopias - é a distinção relativa entre esquerda e direita. Esta distinção, que é sempre relacional como qualquer processo identitário, e tendencialmente binária como em qualquer processo de simbolização, assume dois modos. O primeiro é o modo do continuum: "de mais à direita para mais à esquerda". O segundo é o modo da diferença inegociável, isto é, o(s) ponto(s) em que se dá(dão) clivagens. Ambos os modos constituem uma guerra de posições...

Assim, diferenciações colocadas num continuum podem incluir pontos extremos como economia de mercado livre e propriedade colectiva dos meios de produção; religião oficial de Estado e proibição de culto e associação religiosa, etc. Postas as coisas assim, a tendência será para uma aproximação ao centro, sobretudo porque a História (mais recente do que parece) mostra-nos os maus resultados das opções pelos pontos extremos deste continuum. É aqui - neste imaginário "Centro" - que as diferenças inegociáveis surgem (melhor: devem surgir) de novo. Até porque o centro tende a ser lamacento ou contraditório - por exemplo, com pessoas economicamente "de direita", mas "de esquerda" nos costumes. Curiosamente - e ainda bem - as diferenças são agora mais complexas e, ao mesmo tempo, mais baseadas em opções éticas: deve ou não o Estado controlar os serviços públicos? Deve-se ou não tentar atingir a máxima igualdade de oportunidades e como? Deve ou não compensar-se as pessoas e grupos mais desprivilegiados e como? Deve ou não promover-se a discriminação positiva? Até que ponto e como deve o Estado regular a economia? Qual a fronteira entre a garantia da laicidade do Estado e a garantia da liberdade religiosa? E por aí fora.

Esquerda e direita são termos úteis, não para definir a pertença a clãs, clubes ou tipos de pessoas, mas sim para designar inclinações - e pontos de fuga (como na perspectiva). Sem os nomes não nos orientamos; sem uma constelação de símbolos e significados por detrás desses nomes tão-pouco. Mas como os nomes podem rapidamente tornar-se etiquetas, é necessário que constantemente explicitemos / expliquemos, o que queremos dizer com eles.

As experiências totalitárias tiveram o condão de nos mostrar que em muitas áreas da vida a distinção esquerda-direita não servia. Basta pensar na abordagem da homossexualidade quer por regimes de direita, quer por regimes de esquerda. Ou pensar em como várias esquerdas se combateram sobre a legitimidade do uso da etiqueta. A ideia de "diferenças inegociáveis" deve estender-se a novos domínios, para lá das relações de classe, do contrato e conflito entre capital e trabalho ou do modelo económico - e abarcar os domínios das identidades e dos estilos de vida.

No fundo, no fundo - e retornando aos tempos míticos da fundação da dicotomia, a Revolução Francesa - continuamos a diferenciar-nos em torno da dicotomia tradição/progresso - mesmo com a tradição "já não sendo o que era" e mesmo com a ideia de "progresso" criticada como sendo eurocêntrica e conivente com vários processos de exploração. As "tradições" são outras; e o "progresso" deve, em consonância, ser reinventado.

Basta olhar para Espanha. O que parece estar a acontecer é um realinhamento das pessoas e dos grupos e dos interesses, em torno das funções do Estado, em torno do funcionamento da economia de mercado, em torno da política internacional, em torno das agendas de identidade - reorganizando assim a valência da dicotomia tradição/progresso. Reinventado a dicotomia direita/esquerda.

mva | 14:07|