OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


15.10.04  

Torquemada.

José Manuel Fernandes apresenta um argumento de suposto bom-senso liberal, mas que morre na praia. Também eu, por uma fracção de segundo, achei bem que Buttiglione tivesse falado candidamente das suas crenças e valores. Mas logo me lembrei que isso é o que se deve exigir a qualquer candidato a um cargo político. Que ele o tenha feito quando os outros se escondem atrás de retórica, só diz mal desses outros e não necessariamente bem de Buttiglione.

É a partir da manifestação honesta de crenças e valores que se tomam as decisões políticas sobre a ocupação de cargos. Os cargos de poder político não são meros cargos administrativos: as crenças e valores dos candidatos são mesmo uma das variáveis mais importantes. E os parlamentos e os deputados, representando a diversidade de crenças e valores da sociedade não só podem, como devem, reagir em consonância.

Buttiglione não sabia sequer o que significa fazer políticas anti-discriminação pró-activas. Porque na realidade basta-lhe enunciar os princípios e sentar-se tranquilo com os seus valores e crenças, numa manifestação da famigerada teoria da "tolerância". Por detrás da análise de JMF - partilhada por muita gente - está a acusação de que o "politicamente correcto" é uma espécie de nova inquisição. Esta é uma falácia tremenda. Porque as políticas anti-discriminação fazem-se no sentido de obter mais igualdade e mais diversidade, e não pela repressão de grupos e identidades ou pela manutenção do status quo. Esta gigantesca diferença não permite confusões com políticas inquisitoriais.

Mais: onde traçaria JMF o limite entre a pura manifestação das "convicções" e a possibilidade da sua aplicação em políticas? Por exemplo, qual seria a sua reacção se Buttiglione tivesse demonstrado, candidamanete, "ser racista, mas não ir aplicar políticas racistas". Provavelmente ter-se-ia insurgido - o que só mostra o desprezo conservador pelas questões de género e sexualidade como questões sociais e políticas nobres. É aí mesmo que a porca torce o rabo: no caso de Buttiglione e no caso de JMF.

O truque da atribuição de características inquisitoriais às novas agendas da identidade (e que são, largamente, novas agendas de esquerda) é um dos truques mais eficazes do pensamento único da última década. Mas a verdade, valor liberal e democrático, obriga-nos a dizer que Torquemada era mesmo da Inquisição, era mesmo da ICAR. Ele sim, não nós.


mva | 13:15|