OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


8.10.04  

Rocco Castelo-Branco.

Duas figuras tornaram-se notórias nos últimos dias: Rocco Buttiglione e José Castelo-Branco. Estranha mistura ou emparelhamento? Nem por isso. O primeiro navega no poder político, o segundo no mediático. O primeiro poder legisla e toma decisões que afectam as vidas das pessoas, o segundo poder cria o senso-comum que alimenta o primeiro.

Rocco Buttiglione tem posições fortíssimas contra o aborto, os direitos de mulheres e LGBTs, dos imigrantes, etc. Frequentador do American Enterprise Institute, amigo e camarada político de Berlusconi, pode agora vir a ser comissário europeu na área que tutela a política anti-discriminação. Pior: pode vir a ser um dos vice-presidentes da Comissão.

A Castelo-Branco ouvi-o pela primeira vez numa entrevista em que debitava as maiores reaccionarices sobre relações de classe, "sangue", "genética", etc. Quando o vi da Quinta das Celebridades mudei de opinião, pois adorei a sua performance de bichice, aparentemente próxima do gender bending e de um certo queerismo. Horas (ou um dia) depois, apercebi-me que me tinha enganado: de imediato ele tratou de estabelecer distinções entre si e os gays, entre bichice e paneleirice e outras barbaridades do género. Há uns perversos lá fora que nada têm a ver com ele, que está dentro: dentro da classe e do dinheiro certo, dentro da moral certa, dentro das definições de género certas, que incluem a possibilidade (a necessidade?) de figuras como ele. Não há nisto qualquer performance, gender bending ou queerismo: há, pelo contrário, uma marcação e demarcação nítida de um projecto de identidade.

E qual é esse projecto ou essa identidade? Bem, a mais velha instituição da homofobia interiorizada à Portugal do Ancien Régime: aquela que tem as suas origens no provinmcianismo marialva, no catolicismo de crendice, no culto da hierarquia e da ascendência social, no heterosexismo, na crença em distinções claras de masculino e feminino, na homofobia perante quem se assuma como homossexual. A "performance" de bichice de Castelo-Branco é apenas a velha bichice de bobo da corte, há décadas aceite (e desejada) mesmo (ou sobretudo) nos círculos mais conservadores.

Portugal inteiro - sobretudo as "massas" - vão reconhecer(-se) na bicha de carnaval de aldeia que lhes vai aparecer nos ecrãs. Mas infelizmente não vai ser exposto a uma performance criativa e desafiadora dos códigos sexistas e homofóbicos (por momentos pensei que sim, depois desiludi-me); e vai ser exposto a um chorrilho de asneiras discriminatórias que vão afectar todo o trabalho de consciencialização.

Note-se: não por transmitir bichice versus uma suposta imagem arrumadinha e masculina de gay (não gosto desse "programa" e acho que há bichice mais revolucionária do que muita homossexualidade straight), mas por justamente negar a possibilidade de uma bichice desafiadora, cooptando-a para a perpetuação do conservadorismo. (Basta ver como os outros concorrentes aparentemente gay participam deste efeito de poder calando-se e fazendo-se passar despercebidos - o que significa como o "modelo" Castelo-Branco está do lado da hegemonia e do exercício do poder simbólico).

Do outro lado do espectro das instituições do poder, e lá bem no centro decisório de Bruxelas, poderá estar um político-sacristão a dar corpo de lei às mensagens que os Castelo-Brancos passam por outras vias.

PS: Desculpem a linguagem algo "teórica". Quando me desiludo com o potencial de alguém, parece que a teoria compensa com racionalidade o mal-estar emocional. Neste caso, a teoria funciona também como Betadine...

mva | 14:52|