OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


30.10.03  

The Handmaid's Tale



Fascinado com The Handmaid's Tale, de Margaret Atwood. Já tem uns anos em cima, mas é actualíssimo. É um aviso à navegação sobre a vontade puritana, de "limpeza", de "ordem". Passa-se nos EUA (vistos por uma canadiana, ora bem), ainda Bush e as leis "patrióticas" não existiam. A partir do controle proporcionado pelo cruzamento e centralização de dados, os puritanos tomam conta do país. Assusta a facilidade com que essas coisas podem acontecer, sem golpes de estado violentos. Assusta como algumas das nossas "liberdades" podem gerar contra-ataques fascizantes (Atwood não desculpabiliza o mundo anterior à sua distopia, nem faz dele um objecto de saudade para a personagem principal e narradora; a sua crítica é ao totalitarismo e ao ultraliberalismo que lhe abre o caminho, sobretudo no campo do desastre ecológico). E assusta como muitas vezes não é através das liberdades políticas ou das questões económicas que a deriva totalitária se infiltra, mas sim através de um campo central que muita gente julga ser secundário: o género, a sexualidade, a reprodução. O livro é narrado por uma mulher que, num mundo com baixa fertilidade e muitas anomalias genéticas, pertence à categoria das reprodutoras, "atribuída" à casa de um Comandante e de uma Esposa. Uma vez por mês, a Esposa acolhe a heroína nos seus braços e o Comandante tem sexo com esta, procurando engravidá-la para obter um filho. A coisa é feita numa cerimónia de cariz religioso, e retrata bem como funciona o patriarcado: o homem usa a nossa heroína como um receptáculo, um útero propriedade pública; e a Esposa é conivente, a "capataza" do patriarcado...

Nos primeiros tempos do triunfo dos totalitários, quando ainda não se percebia muito bem o que estava a acontecer, o primeiro gesto "revolucionário" havia sido o congelamento das contas bancárias de todas as mulheres (numa época em que o dinheiro já não se usava, mas apenas cartões), simultâneo da proibição de toda a pornografia.

Agora pensem nos EUA de hoje. Pensem em Bush. Pensem em Portugal. Na Casa Pia. No aborto. E assustem-se (mas tudo bem, é só uma estória...).

mva | 15:11|


28.10.03  

Comunicado de Imprensa

Supremo Tribunal de Justiça incentiva a discriminação em função da orientação sexual.
Acórdão sobre actos homossexuais entre adultos e adolescentes é insultuoso, ignora e contraria a OMS, a União Europeia e a comunidade científica.


O Supremo Tribunal de Justiça redigiu recentemente um acórdão em que defende a discriminação inerente ao art.175º do Código Penal, contrariando não só penalistas portugueses (com destaque para Teresa Beleza), mas também recomendações inequívocas da União Europeia.

Pode ler-se no acórdão que a natureza dos actos homossexuais entre adultos e menores "é (...) objectivamente mais grave do que a prática de actos heterossexuais com menores". Isto porque "são substancialmente mais traumatizantes por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental, intelectual e social futuro da vítima". Acrescenta-se também que: "É mais livre e prematuro o consentimento de adolescentes para a a prática de actos heterossexuais, sendo mais tardio o processo genético de formação de vontade de adesão dos adolescentes para a prática de actos homossexuais".

As associações e colectivos Lésbicos, Gays, Bissexuais e Transgénero (LGBT) subscritores deste comunicado gostariam de deixar bem claro que não se pronunciam, obviamente, em relação ao caso concreto que motivou o acórdão do STJ (um recurso da defesa de Michael John Burridge). Contudo, repudiam em absoluto o excerto desse acórdão que aborda a discriminação associada ao art. 175º.

Desconhece-se a base científica para a afirmação sobre o "processo genético de formação da vontade de adesão dos adolescentes para a prática de actos homossexuais". Suspeita-se que será a mesma base científica das restantes afirmações: aquela que não é necessária quando se pretende discriminar em função da orientação sexual. Assim, a palavra "desviante" é um termo psiquiátrico que não é aplicado à homossexualidade há várias décadas; a "ordem natural" é um conceito religioso inadmissível num dos principais poderes de um Estado laico; a expressão "anormal" é um insulto, igualmente inadmissível, que revela bem o pendor marcadamente ideológico, acientífico e meramente preconceituoso desta "justificação".

A ignorância profunda e a confusão de conceitos patentes nesse documento tornam-no, num momento em que se pretende assegurar e incentivar a credibilidade das instituições e o respeito pela justiça, particularmente infeliz. Trata-se afinal de um acórdão político, profundamente homofóbico e heterossexista.

Quanto ao aspecto discriminatório do Código Penal, desde há muito que diversas associações e grupos de defesa dos direitos de lésbicas e gays se têm pronunciado. O art. 174º penaliza "actos sexuais com adolescentes" entre os 14 e os 16 anos, desde que haja "abuso da inexperiência" da vítima; esta ressalva já não está incluída no art. 175º que penaliza " actos homossexuais com adolescentes" das mesmas idades.

O que está em causa não é, portanto, o abuso de adolescentes sem o seu consentimento, que é inequivocamente punido, com toda a correcção, em ambos os casos. A diferença resume-se apenas a situações em que há consentimento das e dos adolescentes: se as relações forem heterossexuais (porque o legislador pensa portanto que "actos sexuais" é sinónimo de "actos heterossexuais"...), esse consentimento pode ser consciente; se forem homossexuais, esse consentimento é inconsciente.

Isto significa que a lei permite que um adolescente de 15 anos possa em consciência decidir ter relações sexuais com uma mulher com mais de 18 anos. Mas entende que já um adolescente de 15 anos que decida ter relações sexuais com um homem com mais de 18 anos o faz claramente por inconsciência: portanto, se é homossexual, é-o porque ainda não viu a "luz" da heterossexualidade e ainda pode ser "curado". O facto desta noção estar ainda representada no nosso Código Penal é simplesmente chocante.

Urge, pelo contrário, e no respeito pela Constituição, eliminar o art. 175º e uniformizar os preceitos relativos à idade do consentimento num só artigo sem qualquer distinção entre hetero- e homossexualidade - à semelhança, aliás, do que acontece na quase totalidade dos países da União Europeia. Até lá, a pretensa igualdade de cidadãos perante a lei e perante a justiça continuará por cumprir.

Associação ILGA Portugal
@t. - Assoc. Estudo e Defesa dos Direitos à Identidade de Género
Clube Safo
#gayteenportugal
GTH - Grupo de Trabalho Homossexual
Não Te Prives
PortugalGay.PT
rede ex aequo

mva | 00:10|


27.10.03  

Ruído e silêncio

De repente, ocorreu-me: que pensarão os milhares e milhares e milhares de mulheres deste país que, na sua infância ou adolescência, foram abusadas sexualmente por familiares, estranhos, responsáveis institucionais e outros, quando se confrontam com o ruído ensurdecedor em torno do caso Casa Pia?

mva | 18:55|


25.10.03  

É assim mesmo

Às vezes Augusto Santos Silva pode parecer demasiado "certinho", legalista e "republicano"; não é tão truculento como outros cronistas, ou apaixonado. Mas é isso que gosto nele, tanto como sociólogo como enquanto político. E tem toda a razão no Público de hoje. Eu até diria mais: maldito país onde se assiste a uma cada vez maior impossibilidade em descobrir os culpados (no caso Casa Pia) ao mesmo tempo que a principal actividade parece ser destruir a oposição. Ninguém fala do óbvio: o fim da democracia através de TVs controladas por interesses políticos e económicos, em aliança com magistrados justiceiros e populistas, deixando que, na sombra e no silêncio, funcione o pior, mais nefasto, incompetente e perigoso governo da segunda república.

A questão é que se chegou ao ponto em que só os tontos ou os cínicos é que podem continuar a dizer que se deve deixar "a justiça funcionar" e se deve separar os aspectos judiciais dos políticos. Que lata! Como se tivessemos sido nós, cidadãos, a fazer a confusão entre as duas coisas, enquanto Durões, Cardonas, Bagões, Portas e quejandos lavam as mãos, assobiam para o ar, e destroem alegremente a frágil construção de Lego que é esta República...

mva | 11:53|


24.10.03  

Ouçam os supremos sacerdotes

Esta é mesmo grave. O Público noticia, em suma, que o Supremo Tribunal de Justiça acha que a homossexualidade é um desvio, uma anormalidade e anti-natural. Depois venham com falinhas mansas sobre a separação entre justiça e política...

mva | 10:54|


21.10.03  

Individualismo egoísta

Tenho - obsessivamente, reconheço - prestado atenção ao crescimento de dois comportamentos colectivos irritantes. O primeiro é que cada vez são mais os condutores que não usam os piscas para mudar de direcção. O segundo é que cada vez há mais gente que não espera pela saída dos passageiros das carruagens do metro, entrando de rompante, como se tivessem que apanhar o último metro.

Adoro "saltar para conclusões" (num blog, claro). Acho que isto revela um crescente individualismo. Só que não é o individualismo baseado na noção de indivíduo-cidadão-pessoa que está na base do tipo de ser social do projecto liberal de cidadania, que propugna a defesa das liberdades individuais junto com a responsabilidade pelos outros e o colectivo. Trata-se, sim, de um individualismo egoísta.

O velho Weber tinha alguma razão naquela história da relação entre ética protestante e o espírito do capitalismo. Basta ir à Escandinávia para ver. Pena é que ele não tenha elaborado uma tese sobre a "ética" católica e o espírito do capitalismo... de Estado. É que o individualismo egoísta a que me refiro está muito próximo do "familismo amoral" tão usado para falar das sociedades do sul da Europa: faço tudo pelos "meus", estou-me nas tintas para quem não conheço, e o Estado que reprima, organize, limpe, etc., se quiser. É também a diferença que vai entre engajar-se em movimentos de cidadania e demitir-se do social, praticando apenas uma caridade errática. Ou entre autoregular-se moral e eticamente, e fazer asneirolas seguidas de confissão. Ou entre tentar aprender a mudar as coisas, e fazer promessas e peregrinações para obter favores divinos para males pessoais.

Transposta esta "ética" do campo para a cidade, a coisa agrava-se quando se está no espaço público anónimo: "faço tudo por mim, ponto parágrafo". E depois ainda há conversas sobre o horror do individualismo e a solidão suicidária do Norte protestante, e elogios da nossa solidariedade familiar, alegria e latinidade... Em última instância, prefiro gente sisuda e bem-comportada à minha volta, do que brutos alegres. Mas isso sou eu que sou um chato, não fiz catequese e não sinto arrepios com o hino nacional.

mva | 11:35|


19.10.03  

Calão

Peço a ajuda dos etnógrafos amadores: alguém já deu por designações em calão para os Euros? Já apareceram os equivalentes de "paus", "contos", "milenas", etc.? Acho estranho que tal ainda não tenha acontecido. Como é que jovens, marginais, cromos e pintas e todos os produtores compulsivos de calão se relacionam com a "nova" moeda? Agradecem-se informações sobre este candente assunto de invenção cultural...

mva | 13:05|
 

Madame Souza



No Festival de Cinema Francês dei com esta pérola, Les Triplettes de Belleville. Um filme de animação que narra a história da dedicação de uma velha senhora ao seu neto e à sua carreira de ciclista, num mundo feito de mafias, opressões urbanas, dificuldades e sonhos. A velha senhora é a Madame Souza, baixinha, de carrapito e grande bota ortopédica num dos pés. Finalmente, a porteira portuguesa é elevada à condição de heroína! O neto - personagem de uma tristeza confrangedora - tem uma cara que parece uma caricatura de Paulo Portas...

P.S.: Madame Souza é a de trás e Paulo Portas o da frente.

mva | 13:00|


17.10.03  

Interespécies

Ah, se o amor fosse mesmo livre...



mva | 11:54|


13.10.03  

Social Drama

No meu métier chamamos social drama a situações que condensam e tornam evidentes grandes disputas sociais em torno dos sentidos das instituições e valores. É um abuso da expressão cunhada pelo antropólogo Victor Turner para outros contextos e temas, mas a expansão das analogias é uma coisa boa...

Isto para comentar um comentário em que um visitante fala das semelhanças entre o caso Casa Pia (especialmente na vertente Paulo Pedroso) e o caso Dreyfus (procurar no Google...). De facto, esta coisa do bordel estatal que dá pelo nome de Casa Pia é um condensado e um despoletador de tensões e disputas sociais e culturais fortíssimas, relacionadas com a sexualidade, o estatuto das crianças, os desejos irrazoáveis de que toda a vida humana se processe em "família" (subentendida como um conjunto de prescrições muito restritivas...), a homofobia, os fantasmas eróticos e voyeuristas de quem diz que não tem fantasmas eróticos e voyeuristas, as disputas entre o "povão pobre" e as "elites", os eleitores e os políticos, e por aí fora.

Ainda hoje na TSF um senhor dizia que é abstencionista convicto e que esta "bandalheira", "pouca vergonha", "indecências na TV", "corrupção", etc., só acaba quando estiver ao leme um "homem forte e íntegro" (sim, ele referia-se ao Salazar e disse-o no fim, gritando "Viva o senhor doutor professor Oliveira Salazar", com a inversão dos honoríficos e tudo). O drama social convoca sempre a expressão de extremos.

Se calhar - e continuando na veia socio-antropológica - mais do que um drama social isto é um facto social total (esta é do senhor sobre quem Paulo Pedroso está a fazer a tese de doutoramento, Émile Durkheim): a Casa Pia como a lente através da qual todos os conflitos sociais se refractam, aumentam, diminuem e... queimam.

Única coisa boa: pode ser que o caso seja uma machadada no amoral familism, a inclinação para ligar apenas aos interesses da família imediata, do "sangue", desprezando o bem comum (uma outra noção da antropologia, desta feita construida a propósito das sociedades camponesas do Mediterrâneo e que, entre outras coisas mais sofisticadas, ajuda a perceber porque as casas portuguesas são limpas e a rua é uma lixeira...); é que com a Casa Pia há o potencial de se criarem debates sobre a coisa pública. Se a TVI, a SIC, o PSD e Paulo Portas não o impedirem, fazendo o papel dos acusadores de Dreyfus...

mva | 20:14|
 

"Life is beautiful"

OK, sei que sou suspeito, mas vale mesmo a pena...

mva | 19:56|
 

O género da publicidade

Oiço a TSF no carro. Publicidade. Num anúncio qualquer (telemóveis?) a mulher faz de parva, não percebe nada de contas e dinheiro e o marido chama-lhe a atenção, qual pai, qual professor, qual homem. No anúncio seguinte, a mulher fascina-se com a casa que vai comprar, com a vista, com o tamanho da cozinha, e o marido tem que lhe chamar a atenção para os custos da coisa. Qual pai, qual professor, qual homem.

(Ao contrário do que está na moda dizer-se, acho que a publicidade não é comparável, nem pouco mais nem menos, a qualquer forma de arte. Acontece apenas que, às vezes, as coisas coincidem, por causa do suporte narrativo, fílmico, gráfico, etc, em comum. É que se há assunto que a arte contemporânea aborda, é o assunto das desigualdades e das identidades, nomeadamente através de um feroz ataque e desconstrução do género. Por outro lado, a arte contemporânea preocupa-se cada vez mais em perceber o mundo em que vive e, como tal, está permeada de sociologia, antropologia, história, política, crítica... )

Em Portugal as mulheres percebem imenso de dinheiro e despesas, pela simples razão que administram as contas, têm que equilibrar todas as despesas familiares e são mais elas do que eles que vivem sozinhas, com ou sem filhos. A situação social das mulheres em Portugal tinha todas as condições para resultar numa revolução das relações de género. Só que vivemos rodeados de representações das relações de género totalmente falseadas e ancoradas em extremos minoritários: o machismo e submissão feminina à antiga, bruto, marialva e mal-cheiroso, ou o machismo burguês, beige e ensabonetado da mulher anfitriã e mãe, e do homem que ganha o pão para o ninho. É caso para dizer: tanta mulher na universidade, tanta mulher trabalhadora, tanta mulher sozinha ou em famílias monoparentais, e não acontece nada? Como é que as mulheres aturam os abusos reais e simbólicos de que são alvo? Como é que, por fim, as mulheres se prestam a reproduzir elas mesmas o pior que delas o sexismo espera?

O blog não é sítio para respostas sociológicas. Fica a provocação, sisters.

mva | 17:41|
 

O contra-ataque

A TVI e a SIC dedicam-se, desde que Paulo Pedroso foi libertado, a dizer o seguinte: que afinal há provas horrendas contra ele, que a sua recepção no Parlamento foi escandalosa, que o PS manipula politicamente a Justiça (para quê com J grande, Miguel?), e, de caminho, vai mostrando Rui Teixeira a fazer o machíssimo "desporto" do todo-o-terreno, acompanhado de seguranças que o defendem de um terrível perigo... Marcelo Rebelo de Sousa faz o serviço à TVI e ao PSD, o inominável Cavaco sai da gruta uma vez mais para acusar a manipulação política pelo PS and so on and so forth.

Face a isto, uma pergunta simples: alguém duvida, por um minuto que seja, que o processo Casa Pia é político? É-o de raiz, pelo simples facto de que o que está em causa é a manutenção (nem que seja por negligência) pelo Estado, e durante anos, de um orfanato para intuitos proxenetas. E não, como querem fazer passar, uma mera questão de justiça e de acusação de alguns indivíduos com comportamentos ilegais. E é-o na sua mediatização pelos potentados demagógicos da SIC, da TVI, e dos grupos a que pertencem. E é-o no claro intuito de acabar com a oposição por via da "justiça", no apelo à vingança de sangue e rua da populaça, e no atiçar dos piores instintos reaccionários em relação às liberdades, à sexualidade, à família e às crianças.

Em vez de andarmos todos a fingir, assumamo-lo: a libertação de Paulo Pedroso foi mesmo a libertação de um preso político, com os matizes próprios desta definição num estado de direito democrático. E é por essa constatação política que fiquei imensamente contente com a sua libertação - e isto independentemente de eventuais acusações ou culpabilidades.

mva | 17:27|
 

Mais propinas

Partamos de alguns factos: este é dos países onde menos e pior se investe em educação; é um país com enormes desigualdades sociais; a nossa universidade está de pantanas; já assistimos a muita demagogia sobre a "paixão da educação"; o movimento estudantil e a comunicação social criaram uma situação em que a opinião pública acha que só se luta por não haver propinas; e uma ideologia de privatização, "consumidor-pagador" e demissão do Estado entram perigosamente no senso-comum.

Partamos de um princípio: a política deste governo para o "financiamento" do ensino superior público é péssima. Agrava a tendência de desinvestimento e aumenta exponencialmente as propinas. Para mais, fá-lo com o argumento da justiça social, o qual, na boca de quem o diz, é hipócrita: ricos e pobres vêem os seus custos com a educação aumentar, sem que haja investimento público, acção social, etc. E sabendo-se que as propinas, mesmo aumentadas nesta ordem de valores, pouco cobrem as despesas. Por tudo isto, também sou contra a lei de financiamento.

Significa isso que subscreva a ideia de um ensino superior totalmente gratuito e totalmente financiado pelo Estado? Não. E não, porque tenho dúvidas sobre se isso é justo ou não. Um exemplo simples (e assumidamente simplista) : que pensar quando um aluno "pobre" (e oriundo de um meio social com baixo capital cultural) e um aluno "rico" (e oriundo de um meio social com capital cultural mais elevado) se encontram ambos na universidade gratuita? No mínimo, o "pobre" precisa de (muito) apoio social, para cobrir os custos que existem quer haja ou não propinas.

Isto relaciona-se também com a questão do acesso. As restrições de numerus clausus, da forma como são feitas hoje, tendem a garantir o acesso à universidade aos cultural e economicamente privilegiados, os quais, depois, não vão ter que pagar nada.

As propinas poderão servir - mas, repito, não estas nem desta forma - para equilibrar estas injustiças e legitimar a tendencial gratuitidade e universalidade do ensino superior. Sobretudo numa sociedade onde o nível da licenciatura é cada vez mais visto como a continuação natural do ensino secundário, num país que precisa de mais educação e licenciados. Não será por acaso que os alunos das pós-graduações aceitam mais tranquilamente pagar elevadas propinas, pois sabem que estão já mais do lado de um maior benefício pessoal do que do lado do benefício social e público de ter uma sociedade com gente educada.

Não vejo condições para a gratuitidade absoluta a não ser que haja, a montante, uma real reforma fiscal, que garanta que (e também a montante) os "ricos" paguem de facto os impostos e paguem mais do que os "pobres". Então, poder-se-ia (dever-se-ia) subsidiar os "pobres" (pois os custos com a educação vão para lá da propina) e/ou fazer pagar os "ricos". Idealmente, as três condições deveriam verificar-se.

É por isto que não me des-solidarizo do movimento estudantil, ao contrário do que algum maniqueísmo esquerdista pode pensar... Tãopouco caio na armadilha de papar a demagogia do governo. Mas também é por isto que acredito que, politicamente, a esquerda tem que pensar melhor esta questão da gratuitidade, das propinas, do financiamento. Para lá da crença no estatismo, para lá de dogmas sobre a gratuitidade, há que pensar racionalmente em como sustentar o ensino superior garantindo justiça social.

O que me assusta nisto tudo e me faz ter dúvidas é que, de um lado, a ideologia de "mercado" triunfa no seio do próprio aparelho de Estado e, do outro, o Estatismo esquerdista impede o pensamento racional sobre as condições do mundo real em que vivemos.

mva | 17:05|


6.10.03  

Propinas

Muitos dos meus estudantes e muitos dos meus "camaradas" vão "matar-me" quando lerem isto. O "isto" é que não simpatizo com o movimento anti-propinas (assim como não simpatizo com a política de propinas deste e outros governos). Que significa esta dupla antipatia? Significa duas coisas: que acho que o movimento anti-propinas tende a ser simplista e egoísta, e que as políticas de propinas do governo são hipócritas. Estas são hipócritas porque estamos mortos de saber que as propinas, só por si, não resolvem os problemas que pretendem resolver. Aquelas são simplistas e egoístas porque o ensino superior português não deve ser financiado apenas pelo Estado. Tudo isto tem a ver com o facto de o ensino superior ser aquilo que os economistas chamam um bem misto. Traduzido para a dimensão social e política, quer isto dizer que a sociedade no seu todo beneficia com o ensino superior, mas as pessoas que se formam nas faculdades beneficiam pessoalmente. É socialmente injusto que sejam os contribuintes todos a pagar por algo que beneficia alguns. Mas tãopouco pode o ensino superior ser totalmente pago pelos que dele usufruem directamente, pois a sociedade no seu todo precisa de gente formada. A questão está em definir qual a medida justa da contribuição dos beneficiários directos e da contribuição do colectivo através do Estado. Tanto governo como os movimentos anti-propinas falam, em plano secundário, daquilo que deveria ser central e ir junto com a discussão sobre propinas: sistema eficaz e justo de bolsas (idealmente, por cada aluno que paga o máximo haveria um, pobre, que não pagaria nada), rigorosa verificação dos rendimentos das famílias (o que implicaria uma reforma fiscal que o governo se recusa a fazer...). O ensino superior totalmente grátis e de livre acesso só pode existir em duas circunstâncias opostas: países miseráveis e injustos onde os ricos canibalizam o Estado ou países ricos e com poucas diferenças sociais.

Regressado recentemente à Universidade pública, fui encontrar um verdadeiro desastre: ameaças de cortes salariais, péssimas condições de trabalho, alunos mal preparados, uma cultura que vê a universidade como o prolongamento "natural" do liceu e do ensino obrigatório/gratuito, demagogia pró-propinas e demagogia anti-propinas, classes médias no ensino público e remediados gastando fortunas no privado, ministros metendo cunhas a ministros para garantir o acesso da filha à corporação médica, etc. Assim não dá. É cada vez mais preciso um pensamento de esquerda que seja racional (na recusa da demagogia) e criativo (na recusa das soluções do passado). Neste assunto, o meu "campo" está a falhar...

PS: É engraçado que tanto em castelhano como em português do Brasil, "Propina" queira dizer gorjeta... E que, no meio desta discussão, o artigo da Constituição que fala do ensino tendencialmente gratuito tenha sido metido na gaveta...

mva | 11:27|


2.10.03  

Portugal precisa de (cair em) si



Como milhares de pessoas, recebi esta publicidade. Contém uma carta assinada por um tal de Luís Felipe (sic) Scolari, que não sei quem é. Isto é, a carta diz ser o senhor o "seleccionador nacional". Não sabia que, agora, as pessoas do futebol também comandavam os destinos do país. A carta, afinal de contas, ostenta o logotipo do turismo português, a imagem de marca do país. Assim sendo, o senhor Felipe com E deve ser uma espécie de primeiro-ministro (embora eu suponha que o primeiro ministro não é pago para dar a cara em campanhas publicitárias).

Parece, portanto, que Portugal precisa de si. Precisa, com certeza. Mas não para ajudar as mafias do futebol, das autarquias e da construção civil. Querem que seja ainda mais bruto? Pois bem: espero que a equipa portuguesa seja eliminada tão rápido quanto possível.

mva | 14:47|