OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


30.10.03  

The Handmaid's Tale



Fascinado com The Handmaid's Tale, de Margaret Atwood. Já tem uns anos em cima, mas é actualíssimo. É um aviso à navegação sobre a vontade puritana, de "limpeza", de "ordem". Passa-se nos EUA (vistos por uma canadiana, ora bem), ainda Bush e as leis "patrióticas" não existiam. A partir do controle proporcionado pelo cruzamento e centralização de dados, os puritanos tomam conta do país. Assusta a facilidade com que essas coisas podem acontecer, sem golpes de estado violentos. Assusta como algumas das nossas "liberdades" podem gerar contra-ataques fascizantes (Atwood não desculpabiliza o mundo anterior à sua distopia, nem faz dele um objecto de saudade para a personagem principal e narradora; a sua crítica é ao totalitarismo e ao ultraliberalismo que lhe abre o caminho, sobretudo no campo do desastre ecológico). E assusta como muitas vezes não é através das liberdades políticas ou das questões económicas que a deriva totalitária se infiltra, mas sim através de um campo central que muita gente julga ser secundário: o género, a sexualidade, a reprodução. O livro é narrado por uma mulher que, num mundo com baixa fertilidade e muitas anomalias genéticas, pertence à categoria das reprodutoras, "atribuída" à casa de um Comandante e de uma Esposa. Uma vez por mês, a Esposa acolhe a heroína nos seus braços e o Comandante tem sexo com esta, procurando engravidá-la para obter um filho. A coisa é feita numa cerimónia de cariz religioso, e retrata bem como funciona o patriarcado: o homem usa a nossa heroína como um receptáculo, um útero propriedade pública; e a Esposa é conivente, a "capataza" do patriarcado...

Nos primeiros tempos do triunfo dos totalitários, quando ainda não se percebia muito bem o que estava a acontecer, o primeiro gesto "revolucionário" havia sido o congelamento das contas bancárias de todas as mulheres (numa época em que o dinheiro já não se usava, mas apenas cartões), simultâneo da proibição de toda a pornografia.

Agora pensem nos EUA de hoje. Pensem em Bush. Pensem em Portugal. Na Casa Pia. No aborto. E assustem-se (mas tudo bem, é só uma estória...).

mva | 15:11|