OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


6.10.03  

Propinas

Muitos dos meus estudantes e muitos dos meus "camaradas" vão "matar-me" quando lerem isto. O "isto" é que não simpatizo com o movimento anti-propinas (assim como não simpatizo com a política de propinas deste e outros governos). Que significa esta dupla antipatia? Significa duas coisas: que acho que o movimento anti-propinas tende a ser simplista e egoísta, e que as políticas de propinas do governo são hipócritas. Estas são hipócritas porque estamos mortos de saber que as propinas, só por si, não resolvem os problemas que pretendem resolver. Aquelas são simplistas e egoístas porque o ensino superior português não deve ser financiado apenas pelo Estado. Tudo isto tem a ver com o facto de o ensino superior ser aquilo que os economistas chamam um bem misto. Traduzido para a dimensão social e política, quer isto dizer que a sociedade no seu todo beneficia com o ensino superior, mas as pessoas que se formam nas faculdades beneficiam pessoalmente. É socialmente injusto que sejam os contribuintes todos a pagar por algo que beneficia alguns. Mas tãopouco pode o ensino superior ser totalmente pago pelos que dele usufruem directamente, pois a sociedade no seu todo precisa de gente formada. A questão está em definir qual a medida justa da contribuição dos beneficiários directos e da contribuição do colectivo através do Estado. Tanto governo como os movimentos anti-propinas falam, em plano secundário, daquilo que deveria ser central e ir junto com a discussão sobre propinas: sistema eficaz e justo de bolsas (idealmente, por cada aluno que paga o máximo haveria um, pobre, que não pagaria nada), rigorosa verificação dos rendimentos das famílias (o que implicaria uma reforma fiscal que o governo se recusa a fazer...). O ensino superior totalmente grátis e de livre acesso só pode existir em duas circunstâncias opostas: países miseráveis e injustos onde os ricos canibalizam o Estado ou países ricos e com poucas diferenças sociais.

Regressado recentemente à Universidade pública, fui encontrar um verdadeiro desastre: ameaças de cortes salariais, péssimas condições de trabalho, alunos mal preparados, uma cultura que vê a universidade como o prolongamento "natural" do liceu e do ensino obrigatório/gratuito, demagogia pró-propinas e demagogia anti-propinas, classes médias no ensino público e remediados gastando fortunas no privado, ministros metendo cunhas a ministros para garantir o acesso da filha à corporação médica, etc. Assim não dá. É cada vez mais preciso um pensamento de esquerda que seja racional (na recusa da demagogia) e criativo (na recusa das soluções do passado). Neste assunto, o meu "campo" está a falhar...

PS: É engraçado que tanto em castelhano como em português do Brasil, "Propina" queira dizer gorjeta... E que, no meio desta discussão, o artigo da Constituição que fala do ensino tendencialmente gratuito tenha sido metido na gaveta...

mva | 11:27|