OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


21.10.03  

Individualismo egoísta

Tenho - obsessivamente, reconheço - prestado atenção ao crescimento de dois comportamentos colectivos irritantes. O primeiro é que cada vez são mais os condutores que não usam os piscas para mudar de direcção. O segundo é que cada vez há mais gente que não espera pela saída dos passageiros das carruagens do metro, entrando de rompante, como se tivessem que apanhar o último metro.

Adoro "saltar para conclusões" (num blog, claro). Acho que isto revela um crescente individualismo. Só que não é o individualismo baseado na noção de indivíduo-cidadão-pessoa que está na base do tipo de ser social do projecto liberal de cidadania, que propugna a defesa das liberdades individuais junto com a responsabilidade pelos outros e o colectivo. Trata-se, sim, de um individualismo egoísta.

O velho Weber tinha alguma razão naquela história da relação entre ética protestante e o espírito do capitalismo. Basta ir à Escandinávia para ver. Pena é que ele não tenha elaborado uma tese sobre a "ética" católica e o espírito do capitalismo... de Estado. É que o individualismo egoísta a que me refiro está muito próximo do "familismo amoral" tão usado para falar das sociedades do sul da Europa: faço tudo pelos "meus", estou-me nas tintas para quem não conheço, e o Estado que reprima, organize, limpe, etc., se quiser. É também a diferença que vai entre engajar-se em movimentos de cidadania e demitir-se do social, praticando apenas uma caridade errática. Ou entre autoregular-se moral e eticamente, e fazer asneirolas seguidas de confissão. Ou entre tentar aprender a mudar as coisas, e fazer promessas e peregrinações para obter favores divinos para males pessoais.

Transposta esta "ética" do campo para a cidade, a coisa agrava-se quando se está no espaço público anónimo: "faço tudo por mim, ponto parágrafo". E depois ainda há conversas sobre o horror do individualismo e a solidão suicidária do Norte protestante, e elogios da nossa solidariedade familiar, alegria e latinidade... Em última instância, prefiro gente sisuda e bem-comportada à minha volta, do que brutos alegres. Mas isso sou eu que sou um chato, não fiz catequese e não sinto arrepios com o hino nacional.

mva | 11:35|