OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


13.10.03  

O género da publicidade

Oiço a TSF no carro. Publicidade. Num anúncio qualquer (telemóveis?) a mulher faz de parva, não percebe nada de contas e dinheiro e o marido chama-lhe a atenção, qual pai, qual professor, qual homem. No anúncio seguinte, a mulher fascina-se com a casa que vai comprar, com a vista, com o tamanho da cozinha, e o marido tem que lhe chamar a atenção para os custos da coisa. Qual pai, qual professor, qual homem.

(Ao contrário do que está na moda dizer-se, acho que a publicidade não é comparável, nem pouco mais nem menos, a qualquer forma de arte. Acontece apenas que, às vezes, as coisas coincidem, por causa do suporte narrativo, fílmico, gráfico, etc, em comum. É que se há assunto que a arte contemporânea aborda, é o assunto das desigualdades e das identidades, nomeadamente através de um feroz ataque e desconstrução do género. Por outro lado, a arte contemporânea preocupa-se cada vez mais em perceber o mundo em que vive e, como tal, está permeada de sociologia, antropologia, história, política, crítica... )

Em Portugal as mulheres percebem imenso de dinheiro e despesas, pela simples razão que administram as contas, têm que equilibrar todas as despesas familiares e são mais elas do que eles que vivem sozinhas, com ou sem filhos. A situação social das mulheres em Portugal tinha todas as condições para resultar numa revolução das relações de género. Só que vivemos rodeados de representações das relações de género totalmente falseadas e ancoradas em extremos minoritários: o machismo e submissão feminina à antiga, bruto, marialva e mal-cheiroso, ou o machismo burguês, beige e ensabonetado da mulher anfitriã e mãe, e do homem que ganha o pão para o ninho. É caso para dizer: tanta mulher na universidade, tanta mulher trabalhadora, tanta mulher sozinha ou em famílias monoparentais, e não acontece nada? Como é que as mulheres aturam os abusos reais e simbólicos de que são alvo? Como é que, por fim, as mulheres se prestam a reproduzir elas mesmas o pior que delas o sexismo espera?

O blog não é sítio para respostas sociológicas. Fica a provocação, sisters.

mva | 17:41|