OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


13.10.03  

Mais propinas

Partamos de alguns factos: este é dos países onde menos e pior se investe em educação; é um país com enormes desigualdades sociais; a nossa universidade está de pantanas; já assistimos a muita demagogia sobre a "paixão da educação"; o movimento estudantil e a comunicação social criaram uma situação em que a opinião pública acha que só se luta por não haver propinas; e uma ideologia de privatização, "consumidor-pagador" e demissão do Estado entram perigosamente no senso-comum.

Partamos de um princípio: a política deste governo para o "financiamento" do ensino superior público é péssima. Agrava a tendência de desinvestimento e aumenta exponencialmente as propinas. Para mais, fá-lo com o argumento da justiça social, o qual, na boca de quem o diz, é hipócrita: ricos e pobres vêem os seus custos com a educação aumentar, sem que haja investimento público, acção social, etc. E sabendo-se que as propinas, mesmo aumentadas nesta ordem de valores, pouco cobrem as despesas. Por tudo isto, também sou contra a lei de financiamento.

Significa isso que subscreva a ideia de um ensino superior totalmente gratuito e totalmente financiado pelo Estado? Não. E não, porque tenho dúvidas sobre se isso é justo ou não. Um exemplo simples (e assumidamente simplista) : que pensar quando um aluno "pobre" (e oriundo de um meio social com baixo capital cultural) e um aluno "rico" (e oriundo de um meio social com capital cultural mais elevado) se encontram ambos na universidade gratuita? No mínimo, o "pobre" precisa de (muito) apoio social, para cobrir os custos que existem quer haja ou não propinas.

Isto relaciona-se também com a questão do acesso. As restrições de numerus clausus, da forma como são feitas hoje, tendem a garantir o acesso à universidade aos cultural e economicamente privilegiados, os quais, depois, não vão ter que pagar nada.

As propinas poderão servir - mas, repito, não estas nem desta forma - para equilibrar estas injustiças e legitimar a tendencial gratuitidade e universalidade do ensino superior. Sobretudo numa sociedade onde o nível da licenciatura é cada vez mais visto como a continuação natural do ensino secundário, num país que precisa de mais educação e licenciados. Não será por acaso que os alunos das pós-graduações aceitam mais tranquilamente pagar elevadas propinas, pois sabem que estão já mais do lado de um maior benefício pessoal do que do lado do benefício social e público de ter uma sociedade com gente educada.

Não vejo condições para a gratuitidade absoluta a não ser que haja, a montante, uma real reforma fiscal, que garanta que (e também a montante) os "ricos" paguem de facto os impostos e paguem mais do que os "pobres". Então, poder-se-ia (dever-se-ia) subsidiar os "pobres" (pois os custos com a educação vão para lá da propina) e/ou fazer pagar os "ricos". Idealmente, as três condições deveriam verificar-se.

É por isto que não me des-solidarizo do movimento estudantil, ao contrário do que algum maniqueísmo esquerdista pode pensar... Tãopouco caio na armadilha de papar a demagogia do governo. Mas também é por isto que acredito que, politicamente, a esquerda tem que pensar melhor esta questão da gratuitidade, das propinas, do financiamento. Para lá da crença no estatismo, para lá de dogmas sobre a gratuitidade, há que pensar racionalmente em como sustentar o ensino superior garantindo justiça social.

O que me assusta nisto tudo e me faz ter dúvidas é que, de um lado, a ideologia de "mercado" triunfa no seio do próprio aparelho de Estado e, do outro, o Estatismo esquerdista impede o pensamento racional sobre as condições do mundo real em que vivemos.

mva | 17:05|