OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


28.8.03  

Koba



Londres, assim de repente, por uns dias (prenda-surpresa da cara-metade!), para ver o musical "Chicago" (ainda melhor que o filme!). Mas no meio da alegria (prefiro o inglês joy, mas não temos...), um mal-estar, uma moínha, uma dor, uma irritação. É que, por entre aviões e metros estava a ler este livro. Convém dizer que já muita gente "à esquerda" escreveu sobre o horror estalinista e os seus problemas de consciência por terem sido comunistas crentes. E convém dizer que há muito que estão disponíveis relatos do terrorismo de Estado soviético (se bem que, agora, há mais dados disponíveis). E convém, ainda, dizer que, aos 43 anos, tinha mais do que obrigação de já ter esta questão resolvida. Qual é a questão? A mesma que Amis coloca, dirigindo-se a si (trabalhista que, convenientemente, nunca foi comunista ou pró-soviético); ao pai, Kingsley Amis (que foi comunista e, depois, anti-comunista) e a todos os leitores que se colocam "à esquerda": como se explica que haja sempre uma espécie de tolerância face ao terror soviético? Como se explica que, nos pratos da balança, o nazismo pese sempre mais do que o estalinismo? Como se explica que a esquerda possa rir-se das coisas soviéticas como ridículas e patetas, mas não haja (e bem) lugar para o riso no que ao nazismo diz respeito? E Amis não responde.

Em 1976, tinha então 16 anos, aderi à UEC, que era a organização estudantil do PCP. Lembro-me bem do carácter socialmente elitista daquele meio, composto de jovens oriundos de famílias intelectuais, de quadros, de algum modo ligadas a uma esquerda bem-pensante e à oposição ao anterior regime. Lembro-me de como nos ríamos da URSS e de como se contavam anedotas sobre os seus rituais anedóticos. Mas lembro-me também da ausência de discussão política séria, lembro-me de como havia assuntos tabu, lembro-me da promoção da crença e do espírito de corpo. Um ano depois já me tinha afastado - sem que tenha sido na base de uma decisão consciente contra o Gulag - e mantive-me afastado dos partidos até ter surgido, nos finais dos anos noventa, o BE. Acho que me fui alimentando, durante algum tempo, duma estratégia retórica desculpabilizadora: o Estalinismo era o Mal e o Desvio naquilo que, em essência, era um ideal libertador e igualitário. A Revolução Russa mantinha alguma aura de gesto libertador, como, por exemplo, a Revolução Francesa. E pessoas como Trotsky eram de algum modo salváveis. Seria idiota se ainda pensasse assim hoje. Amis confirma o que eu já sabia de outras leituras: o horror estalinista teve precedentes em políticas implementadas quer por Lenin quer por Trotsky. E grande parte do "problema estalinista" reside, em última instância, no "problema comunista", isto é, na obsessão utópica por uma sociedade perfeita, imaginada por intelectuais burgueses.

Neste quadro pejado de mortos, a "última instância" chegará a Marx? Não creio. Seria como dizer que a Inquisição radica em Jesus Cristo. Mas é fundamental que Marx tão-pouco seja visto como o "fundador puro" que foi pervertido pelos "grão-vizires". É preciso vê-lo apenas como pensador, no meio de outros pensadores, num contexto histórico concreto. E pensar a partir daí. Aliás, é curioso ver como Amis dá exemplos da vulgata comunista de Lenin a Estaline absolutamente impossíveis de encontrar em Marx. É por tudo isto que, ideologicamente, aceitei fazer parte de um movimento político que reúne pessoas com percursos políticos muito diferentes, que aceita a ideia central do socialismo, que vê este como indissociável da democracia (já o inverso parece-me altamente discutível...). Mas que - e aqui discordo - deu por acabada e ultrapassada a discussão sobre o "passado". Acho isto errado porque, sabendo nós hoje que a dimensão utópica e perfeccionista do Humanismo contém em si o germe do desvio totalitário e violento, não podemos simplesmente omitir os desvios e não abordar a essência do que queremos reter do Humanismo. É por isso que não suporto a palavra Revolução, sobretudo quando me é apresentada como uma metáfora (quando uma Revolução implica sempre algo de real sobre os corpos e liberdades das pessoas e precisamos saber o quê exactamente); é por isso que reajo alergicamente à palavra Utopia, pelo conteúdo religioso e messiânico que transporta; é por isso que não aguento tolerâncias mais ou menos disfarçadas em relação a Cubas e experiências socialistas reais (ou imaginárias?) passadas.

É por isso que me vou agarrando à expressão "social-democracia" tal como usada (e debatida, é claro) por Marx e seus contemporâneos. Tudo o resto cheira a mortos e as supostas conquistas das várias "revoluções" não passam de amendoins (envenenados) quando se faz o balanço final. Precisamos de análise e debate sobre a herança ideológica e política que transportamos, precisamos de nos libertar dos "segredos de família". E o único caminho para fazer essa análise é definindo muito bem o que não queremos. Eu não quero a Revolução, acho o uso da Violência que não seja em auto-defesa inadmissível, não me importa a Utopia e não quero o Comunismo. Onde fico, então, à Esquerda? É a nauseazinha que esta pergunta provoca que dá o tom cinzento-escuro ao livro de Amis.

mva | 12:47|


18.8.03  

Portugal dos Pequeninos

O telefone de casa toca e uma senhora pergunta se é de casa de Miguel Vale (assim). Desde logo, o número não era suposto estar na lista, mas a PT fez asneira da grossa (isto não é uma questão menor, pois já tive telefonemas desagradáveis em tempos). A senhora explica o que quer. Aparentemente, "o Professor Marcelo Rebelo de Sousa" falou de um livro sobre a Ericeira e ela queria ter a referência. Nunca escrevi nada sobre a Ericeira, já agora. A dita senhora, após queixar-se de "o Professor" (irritante, como ele passou a ser O Professor, como se não houvesse outros...) falar depressa demais, não dando tempo para tomar notas, informa que telefonou para a TVI. Aparentemente sugeriu, nesse telefonema, que pedissem à "rapariga da maquilhagem" que pedisse ao Professor que esclarecesse a referência bibliográfica.

É tão giro viver no Principado de Portugalete! Amanhã vou meter uma cunha no dentista para atender o Presidente da República, que encontrei na bicha para entregar o boletim do totoloto com um abcesso de respeito. Depois tenho que ficar em casa, porque o Primeiro-Ministro, que mora por baixo, pediu-me o favor de atender o canalizador, o qual só deve chegar pela cinco da tarde, porque tem que ir buscar a namorada que é maquilhadora na TVI. Tudo isto está a atrasar a minha saída para a Ericeira, para onde O Professor (é o único PhD que temos no Principado) me convidou - parece que precisa de ajuda para rever os erros ortográficos num parecer que está a fazer para a PT.

mva | 14:25|


13.8.03  

Olha pra Elle!

Há tempos aceitei fazer uma daquelas coisas fúteis para uma revista de moda: falar da minha roupa e deixar-me fotografar. A coisa é ambígua: como é que um académico e militante político e social se presta a isso, só porque é minimamente "público" (TV de vez em quando, artigos nos jornais, etc)? Ainda não consegui a resposta. É certo que ainda tentei descartar-me do convite, mas no fundo acho que é bom, de vez em quando, fazer estas coisas. Porque, confesso, pode ajudar a vender os meus produtos (neste caso, livros, ideias, posicionamentos). Além disso, tentei inserir no texto pedacinhos de micro-terrorismo cultural (lá falei dos sweatshops de terceiro mundo onde a roupa é feita e lá desanquei no racista e homofóbico Hilfiger...) O preço a pagar são as acusações possíveis de futilidade e um tipo de representação de si de que a academia e alguns meios de esquerda não gostam. E a sensação que eu próprio tenho ao olhar para aquilo: o que é que me passou pela cabeça?

mva | 14:49|
 

Política suja

Nesta coisa dos incêndios, o governo optou pela fórmula mágica: "não façam aproveitamento político e partidário da tragédia, deveríamos todos unir-nos, etc". Parece sensato e simpático, mas não é. É uma forma odiosa de deslegitimar a política. É uma forma populista de reproduzir a ideia estúpida de que a política é uma coisa suja. É uma forma de, subtilmente, dizer que a democracia é uma maçada e que o que interessa é a "união", o "interesse nacional" e o respeitinho pelo governo. Acontece que não há qualquer ligação entre o devido respeito pelas vítimas, e o exercício normal e absolutamente necessário de procurar responsabilidades políticas onde as haja. Para que as coisas não aconteçam outra vez da mesma forma - e esta é a melhor maneira de "respeitar" vítimas. Quem faz política suja é que acha que a política é suja.

mva | 14:42|
 

Rogue state

Parece que um piloto da Air France foi preso nos EUA por ter gozado com os tipos da segurança nos aeroportos. Quando lhe pediram para tirar os sapatos ele fez uma piada sobre uma possível bomba nos ditos, ou algo assim. Parece ainda que os funcionários andam a chatear os franceses em particular. O ano passado, nos States, passámo-nos com a segurança aeroportuária: humilhante, desproporcional, tonta. Descalços, ainda era preciso despertar os cintos das calças e virar a fivela ao contrário. Estive a dois passos de lhes perguntar se queriam ver-me o sexo - sabendo que o sexo é uma perigosa e revolucionária força de subversão da moral e dos costumes, particularmente odiada pelos Puritanos que colonizaram aquelas costas...
Devíamos todos solidarizar-nos com os pilotos e hospedeiras franceses e, em viagens aos EUA, gozar na cara do funcionalismo daquele rogue state. Pela parte que me toca, e como tenho que lá ir em Novembro, vou viajar na Air France....

mva | 14:37|
 

Dança da chuva
Ainda no referido hipermercado: na TV (há sempre uma TV, em TODO o lado, nesta santa terra) dão a notícia da equipa do Benfica visitando o Papa, beijando-lhe a mão, dando prendas e recebendo bênçãos. Ocorre-me perguntar se todos os jogadores terão feito isso. Se não haverá um só que não se considere católico, ou, pelo menos, que ache que não tem que fazer aquilo, por uma qualquer razão de consciência, atiutude, ou simples falta de pachorra. Ou seja: até que ponto não existe diversidade verdadeira na nossa sociedade, cuja mediana pode ser (tristemente) representada pelos jogadores do Benfica (baixo nível escolar, percurso de self made men, enriquecimento precoce and so on)? A hegemonia do catolicismo parece intocável, pelo menos a julgar pelo exemplo dos clubes de futebol e das televisões que os cobrem (ou por eles são cobertas...)

A propósito de Papa, outro dia um noticiário abria (desta vez não foi o futrebol) dizendo que o Papa rezara pelas vítimas dos incêndios em Portugal e "pedira chuva". Como antropólogo, pus-me logo a imaginar que ritual ele teria usado. Se quiser, posso dar-lhe imensas dicas, algumas com passos de dança bastante giros.

mva | 14:32|
 

Primeiro e Terceiro Mundos

Pires de Lima, o do governo: na SIC Notícias, com grande espanto e ênfase de voz, diz que "até a Marrocos tivemos que pedir ajuda!" para combater os incêndios. É gira esta distorção de auto-imagem portuguesa: convencidos de sermos primeiro mundo e Europa, achamos sempre que aquela coisa lá em baixo, Marrocos, está doida por ser ajudada pela nossa maravilhosa cooperação para o desenvolvimento e sequiosa de "investimentos portugueses". Quando é que caiem na real? Quando é que perceberão que, num país com tanta "floresta" (o nome é ridículo, bem sei, trata-se mais de "linhas de produção de eucaliptos"), não ter um canadairzinho é sinal de subdesenvolvimento?

mva | 14:25|
 

Economia de Mercado

Num conceituado hipermercado: ventoínhas e ares condicionados estão esgotados, não sabem quando haverá mais e há n clientes em lista de espera. Dizem-me que é normal isto acontecer quando a procura é excessiva e que há uma figura chamada "ruptura de stocks". Quando estive na Checoslováquia "socialista" acontecia o mesmo. E às vezes havia inundações do mercado com certos produtos: lembro-me bem do dia das melancias, em que camiões atrás de camiões inundaram Praga com as ditas e não se falava de outra coisa (nas bichas, claro). Um amigo meu que se dedica à fotografia diz que, como as empresas do ramo se concentraram em Madrid, tem que comprar material em excesso de cada vez que chega um camião da capital de Espanha, caso contrário pode passar semanas sem nada. O mesmo me aconteceu uma vez ao procurar mobiliário: vinha tudo de Itália ou Espanha e era preciso planear a compra em função do famigerado camião: se tivesse sorte, teria a mercadoria no dia seguinte, caso contrário só daí a dois meses.

E agora um comentário de antropólogo: existia, há 75 anos atrás, na área do Pacífico e Melanésia, um fenómeno que apelidámos de "cargo cults" (cultos da carga). Os alegres primitivos da zona, quando foram expostos ao Ocidente-Mercado, acharam que aquelas mercadorias todas eram coisa divinamente produzida. Eles viam os colonizadores construirem portos e pistas de aviação, e viam que através delas chegavam uma série de coisas boas. Vai daí puseram-se a construir imitações de portos e pistas aéreas, na esperança de que a "carga" chegasse.

Por mim, vou já comprar um camião da Corgy Toys e pô-lo num altar.

mva | 14:21|


9.8.03  

Ratzinger final (?)
Bom, esclareça-se uma coisa: não se trata nem de proibir, nem de recusar a possibilidade de pensar. Trata-se de definir prioridades e escalas de valores: nenhuma igreja, filosofia, escola de pensamento, etc, pode ser ouvida "com consequências" (isto é, aplicando as suas ideias às leis ou à constituição) se essas ideias puserem em causa os direitos e liberdades constitucionalmente definidos. Nestas coisas, não se trata de puro e simples pluralismo de opiniões. Os direitos dos e das homossexuais nada têm a ver com "diversidade de opiniões". A limitação de uma liberdade que não incomoda ninguém não pode ser aceite na base da liberdade de opinião, sobretudo quando o emissor da opinião tem uma influência desproporcional sobre a sociedade (é o caso da ICAR). A liberdade religiosa tãopouco colhe neste caso: as palavras de Ratzinger podem ser entendidas como incitamento à homofobia. Toda a gente perceberia isto se ele estivesse a falar de "pretos", e de como uma sociedade onde os "pretos" e os "brancos" pudessem casar-se seria má porque as crianças sofreriam um estigma, ou de como, em última instância, não seria bom para o equilíbrio social que Portugal tivesse muitos " pretos" (ou, no limite, que as "raças" são uma criação divina, destinadas a permanecerem separadas).
Quando chega à homossexualidade, demasiada gente acha que se trata de uma questão de "opção" moral, de auto-controlo do comportamento e, portanto, algo cuja existência, visibilidade e exercício pode ser controlado pela "opinião pública" em nome de uma qualquer normalidade ou naturalidade, na realidade histórica e socialmente construídas. Curiosamente, é justamente a ICAR quem mais promove aquela ideia, sobretudo com o argumento cínico da "tolerância" dos homossexuais, como quem "tolera" a prostituta. Nenhum homossexual faz - pelo facto de ser homossexual - o que quer que seja que ponha minimamente em causa a liberdade dos outros. O que Ratzinger diz - e com a influência que tem - é um programa de limitação das liberdades (e as semelhanças entre o dogma da ICAR e o estalinismo são bem maiores do que entre a minha "vigilância" da ICAR e o referido desvio comunista...) em nome de algo que já deu provas de não funcionar bem para o bem de um maior número de pessoas. É por isso que acho - e isto não tem nada a ver com qualquer obrigação científica de pensar bem e com justeza - que a hierarquia da ICAR é perigosa, perniciosa e deve ser politicamente combatida sem piedade.

mva | 15:57|


8.8.03  

Mais Ratzinger
O comentário de CC merece um contra-comentário. O problema quer da teologia, quer das notas emitidas pelo Estado da Santa Sé, sede da ICAR, é que usa argumentação com aparência lógica e racional mas (e o "mas" faz toda a diferença) construída sobre premissas ilógicas e irracionais. A saber, as da formação divina do mundo e as do diretio natural, entre outras. O direito natural é o que tecnicamente se chama um oxímoro, uma contradição nos termos: é que, sendo o direito uma instituição social e humana, um conjunto de convenções, não pertence à natureza nem precede a socialidade humana. Só é possível não pensar assim se se acreditar numa criação divina do mundo, da natureza, da humanidade, ou, alternativamente, num qualquer determinismo biológico. Cada qual é livre de acreditar no que quiser, desde que não o imponha aos outros. Mas quando se chega ao debate sobre as regras da vida em sociedade, temos que usar a mesma sintaxe, para então podermos esgrimir semânticas diferentes. Ratzinger não pode basear os seus argumentos no direito natural e na criação divina do mundo para os efeitos da discussão em causa. Senão é o mesmo que aceitar como válido o argumento de alguém que diz que não quer e não aceita uma coisa apenas porque a acha "feia", de "mau gosto" ou porque "não é assim que se faz e sempre se fez assado".

PS: Não só li, e bem, o texto de Ratzinger, como o exercício foi penoso. Ainda pensei em rir-me a dado momento, mas falhou-me o sentido de humor quando me apercebi que a influência da ICAR pode ser directamente prejudicial para a felicidade e liberdade das pessoas e, por acréscimo, para o bem comum. Não será por acaso que o cardeal ocupa um lugar que é herdeiro da Inquisição...

mva | 23:26|


7.8.03  

Viva o frio!
Conheço pessoas - e algumas são minhas amigas! - que dizem adorar o calor. Quanto mais melhor. Até o Ivan Nunes postou uma coisa sobre isso. Não fossem respeitáveis e até queridos amigos, diria que são répteis de sangue frio. Eu odeio o calor mais do que tudo. Como antropólogo, tenho um handicap terrível, que é não suportar sítios tropicais. Gostei de morar uns tempos no Brasil por razões de "cabeça", mas guardo memórias de pesadelo relativas ao calor. O calor faz-me sentir com falta de ar, estúpido, mole, aflito e, para cúmulo, completamente asensual e assexual. A minha teoriazinha é que o frio ultrapassa-se, o calor não. Um frio normal ultrapassa-se com roupa, um mais forte com aquecimento. Já o calor não: dois segundos de alívio na água são logo desfeitos pelo suadouro exterior. E o ar condicionado não é solução: faz doer os ossos, dá alergias e torna pior a saída para o exterior. Sempre achei que devia haver uma lei contra o calor. Enquanto o Durão não a promulga e enquanto os meus amigos reptilianos se comprazem com a baforada e o suor, eu vou sonhando com os tempos em que vivi no norte do estado de Nova Iorque: seis meses abaixo de zero! De t-shirt em casa com a neve lá fora! Festas caseiras non-stop durante o cancelamento das aulas! Ar puro, céu azul, pensamentos claros, energia! Acho que chegámos definitivamente à bananice tropical, agora que estamos mesmo na cauda da Europa.

mva | 13:19|


6.8.03  

Novos mitos precisam-se
Pode-se dizer que os mitos são histórias que condensam os elementos centrais de uma determinada visão do mundo e forma de organização da sociedade. Atribuídos a antepassados, divindades ou ao primórdio dos tempos, a sua autoridade radica na sua cristalização, servindo para controlar a mudança social. Ao contrário do que se pensa, não são só os povos ditos primitivos que se orientam pelos seus mitos. No mundo ocidental, temos o mito judaico-cristão, exactamente da mesma natureza e servindo exactamente para o mesmo. A propósito do senhor Ratzinger mencionar constantemente o mito fundador para justificar a exclusão de pessoas, lembrei-me de como no filme "Hedwig and the Angry Inch", a canção "The Origin of Love", de Stephen Trask, propõe um novo mito, mais adequado à variedade sexual humana (e ele nem é tão novo assim, pois ecoa algumas versões da antiguidade grega). Segundo ele, em tempos imemoriais havia três espécies de "gente", todas elas compostas de siameses: pares de homem e mulher, pares de mulheres e pares de homens. Não sabiam o que era o amor. Por causa de uma asneira qualquer (é sempre assim nos mitos), os deuses puniram-nos e dividiram os siameses em pessoas individuais. Nasceu então o amor - um side effect da ira divina... - fruto da vontade de re-união das metades separadas. Como é óbvio (para mim, pelo menos, é-o) o amor surgiu nas três possibilidades combinatórias: amor entre mulheres, amor entre homens e amor entre homens e mulheres. Se se pudesse decretar mitos, propunha já a inclusão deste na Bíblia e na Constituição...

mva | 22:20|
 

Ratzinger, o Inquisidor-Mor
Em Nova Iorque abriu um liceu público para jovens lgbt. Nota negativa para o "meu" lado: por muita perseguição que possa haver aos jovens lgbt (e ausência da sua experiência nos curricula), uma escola segregada é uma escola segregada. Para mais, sendo pública. A obrigação do estado é promover o gosto pela diversidade e o respeito pelos direitos, nos locais - como as escolas públicas - que são pertença da comunidade. Mas - e isto tem a ver com a teoria das prioridades na escolha de inimigos - a nota negativa a sério deve ir para o Inquisidor-Mor da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), Cardeal Ratzinger. A recente divulgação de posições contra uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo é um texto jesuiticamente absurdo. A suposta preocupação com a sociedade e a família, argumentada numa retórica que pretende ser racional, baseia-se, afinal, em irracionalidades como "direito natural" e "criação divina". Não quero falar nem de liberdade religiosa nem de fé. Aceito a primeira e percebo a segunda, enquanto antropólogo. Mas como cidadão, acho que é altura de tornar a dizer "basta" a estes absurdos (como o tentaram fazer iluministas, jacobinos, republicanos e marxistas). Não através da proibição e da perseguição, mas através da distinção clara entre o que é a coisa pública e o que são as igrejas. Não se pode, simplesmente, dialogar a sério com quem apresenta os seus argumentos sobre bases incompatíveis com aquelas com que a coisa pública se organiza. Acho que as coisas boas da religião (na opinião dos crentes), como a ética, certos valores, etc., existem também no universo da ética laica. Não acresentam nada que este não tenha. Mas que dizer das coisas que considero más - como a irracionalidade, a explicação divina de coisas que se explicam social e historicamente, ou o dogmatismo? São inadmissíveis, porque retiram liberdade às pessoas, tolhem a sua inteligência e reprimem o exercício de direitos - exercício esse que não poria em causa de modo algum os direitos de outros. É claro que há uma diferença entre a hierarquia da ICAR e o "povo" da igreja; e conheço gente que admiro que se diz católica mas se afasta de posições como as de Ratzinger. Só que acho que isto é como no caso do Partido Comunista: tirem as devidas ilações dessa contradição... Quando Ratzinger diz o que diz sobre homossexualidade, ele não está a manifestar uma posição de fé, neutra e equivalente a tantas outras opiniões. Está, isso sim, a promover a exclusão (com alguns truques retóricos sobre a "tolerância" face aos homossexuais) e isso é inadmissível numa sociedade baseada nos direitos humanos - e não em qualquer absurdo, irracional e obscurantista "direito natural".

mva | 22:07|
 

Não comprem Sagres!
Nâo comprem nem bebam cerveja Sagres, por favor! Se prestarem atenção, a actual campanha publicitária é do mais machista e sexista que pode haver. Quem são estes publicitários que agora têm a mania de se inspirar no que de pior a "cultura popular" inventa? Saídos directamente de tunas académicas? De grupos de forcados? De células da Juventude do PP? E porque temos que aturar publicidade preconceituosa e insultuosa nas nossas ruas? Será que agora a liberdade do mercado está acima da liberdade dos cidadãos? Como o debate sobre isso seria infindável, resta-nos a "desobediência mercantil": não comprem cerveja Sagres (de qualquer modo, não presta!).

mva | 19:10|
 

Explicação
Uma visita a este blog - Ana Garcia - faz um comentário que, lido à superfície, é perfeitamente justo. A sua crítica centra-se na figura da generalização, um típico pecado do pensamento e da intervenção. Acontece que a escrita de opinião tem fraquezas e características que dão azo a estas (justas) interpretações. É que falta sempre a "música", isto é, os mecanismos da fala que indicam qual o "tom" e o registo em que se está a "falar" (escrever). No meu caso, isto tem a ver com o facto de ter várias vidas: num blog nem sempre escrevo como antropólogo e muito menos como pessoa justa que tenta ver os vários lados de um assunto. Escrevo como criatura e deixo passar espontaneamente preconceitos, generalizações, identificações e desidentificações. É essa uma das estratégias do terrorismo cultural. Com uma nuance que faz toda a diferença: normalmente dirijo os maus-fígados para situações, acções e identidades que raramente são criticadas, que se encontram no topo da hierarquia social, no centro da moda ou do senso comum ou que, simplesmente, não são vistas e faladas pela maioria das pessoas. O jogo é arriscado e não posso dizer que Ana Garcia tenha feito um erro de interpretação - e muito menos que tenha obrigação de perceber as "regras" do meu jogo. Mas fica a explicação (com a nota de que conheço muita gente da área financeira inteligente e sensível, assim como a muitos antropólogos são - como diriam os meus informantes brasileiros - "ruins memo").

mva | 19:07|


3.8.03  

CONTRIBUIÇÕES (FESTA 19 JULHO 03)

mva | 12:26|