OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


28.8.03  

Koba



Londres, assim de repente, por uns dias (prenda-surpresa da cara-metade!), para ver o musical "Chicago" (ainda melhor que o filme!). Mas no meio da alegria (prefiro o inglês joy, mas não temos...), um mal-estar, uma moínha, uma dor, uma irritação. É que, por entre aviões e metros estava a ler este livro. Convém dizer que já muita gente "à esquerda" escreveu sobre o horror estalinista e os seus problemas de consciência por terem sido comunistas crentes. E convém dizer que há muito que estão disponíveis relatos do terrorismo de Estado soviético (se bem que, agora, há mais dados disponíveis). E convém, ainda, dizer que, aos 43 anos, tinha mais do que obrigação de já ter esta questão resolvida. Qual é a questão? A mesma que Amis coloca, dirigindo-se a si (trabalhista que, convenientemente, nunca foi comunista ou pró-soviético); ao pai, Kingsley Amis (que foi comunista e, depois, anti-comunista) e a todos os leitores que se colocam "à esquerda": como se explica que haja sempre uma espécie de tolerância face ao terror soviético? Como se explica que, nos pratos da balança, o nazismo pese sempre mais do que o estalinismo? Como se explica que a esquerda possa rir-se das coisas soviéticas como ridículas e patetas, mas não haja (e bem) lugar para o riso no que ao nazismo diz respeito? E Amis não responde.

Em 1976, tinha então 16 anos, aderi à UEC, que era a organização estudantil do PCP. Lembro-me bem do carácter socialmente elitista daquele meio, composto de jovens oriundos de famílias intelectuais, de quadros, de algum modo ligadas a uma esquerda bem-pensante e à oposição ao anterior regime. Lembro-me de como nos ríamos da URSS e de como se contavam anedotas sobre os seus rituais anedóticos. Mas lembro-me também da ausência de discussão política séria, lembro-me de como havia assuntos tabu, lembro-me da promoção da crença e do espírito de corpo. Um ano depois já me tinha afastado - sem que tenha sido na base de uma decisão consciente contra o Gulag - e mantive-me afastado dos partidos até ter surgido, nos finais dos anos noventa, o BE. Acho que me fui alimentando, durante algum tempo, duma estratégia retórica desculpabilizadora: o Estalinismo era o Mal e o Desvio naquilo que, em essência, era um ideal libertador e igualitário. A Revolução Russa mantinha alguma aura de gesto libertador, como, por exemplo, a Revolução Francesa. E pessoas como Trotsky eram de algum modo salváveis. Seria idiota se ainda pensasse assim hoje. Amis confirma o que eu já sabia de outras leituras: o horror estalinista teve precedentes em políticas implementadas quer por Lenin quer por Trotsky. E grande parte do "problema estalinista" reside, em última instância, no "problema comunista", isto é, na obsessão utópica por uma sociedade perfeita, imaginada por intelectuais burgueses.

Neste quadro pejado de mortos, a "última instância" chegará a Marx? Não creio. Seria como dizer que a Inquisição radica em Jesus Cristo. Mas é fundamental que Marx tão-pouco seja visto como o "fundador puro" que foi pervertido pelos "grão-vizires". É preciso vê-lo apenas como pensador, no meio de outros pensadores, num contexto histórico concreto. E pensar a partir daí. Aliás, é curioso ver como Amis dá exemplos da vulgata comunista de Lenin a Estaline absolutamente impossíveis de encontrar em Marx. É por tudo isto que, ideologicamente, aceitei fazer parte de um movimento político que reúne pessoas com percursos políticos muito diferentes, que aceita a ideia central do socialismo, que vê este como indissociável da democracia (já o inverso parece-me altamente discutível...). Mas que - e aqui discordo - deu por acabada e ultrapassada a discussão sobre o "passado". Acho isto errado porque, sabendo nós hoje que a dimensão utópica e perfeccionista do Humanismo contém em si o germe do desvio totalitário e violento, não podemos simplesmente omitir os desvios e não abordar a essência do que queremos reter do Humanismo. É por isso que não suporto a palavra Revolução, sobretudo quando me é apresentada como uma metáfora (quando uma Revolução implica sempre algo de real sobre os corpos e liberdades das pessoas e precisamos saber o quê exactamente); é por isso que reajo alergicamente à palavra Utopia, pelo conteúdo religioso e messiânico que transporta; é por isso que não aguento tolerâncias mais ou menos disfarçadas em relação a Cubas e experiências socialistas reais (ou imaginárias?) passadas.

É por isso que me vou agarrando à expressão "social-democracia" tal como usada (e debatida, é claro) por Marx e seus contemporâneos. Tudo o resto cheira a mortos e as supostas conquistas das várias "revoluções" não passam de amendoins (envenenados) quando se faz o balanço final. Precisamos de análise e debate sobre a herança ideológica e política que transportamos, precisamos de nos libertar dos "segredos de família". E o único caminho para fazer essa análise é definindo muito bem o que não queremos. Eu não quero a Revolução, acho o uso da Violência que não seja em auto-defesa inadmissível, não me importa a Utopia e não quero o Comunismo. Onde fico, então, à Esquerda? É a nauseazinha que esta pergunta provoca que dá o tom cinzento-escuro ao livro de Amis.

mva | 12:47|