Love actually é uma boa comédia romântica, enternecedora q. b. (não tenho preconceitos contra o género, é tão agradável como comer chocolates ou ouvir música pop). Mas irritou-me solenemente, tanto mais quanto tinha os elementos para ser excelente. Desde logo, a variedade de personagens e situações românticas é tão grande, que fiquei atónito com a ausência de uma história gay ou lésbica que fosse. Tanto mais que o argumento parece ter sido truncado à última da hora: é que uma das personagens masculinas aparece, ao início, com indícios de estar apaixonada por outro homem, mas depois essa expectativa é desfeita, e de forma um tanto inverosímil. Outra boa coisa - sobretudo para portugueses, hoje - é a forma como a vida emocional (e, sim, sexual) de uma criança é tratada dignamente: o miúdo apaixona-se e é isso que o torna humano. E vive com o padrasto, após a morte da mãe, numa relação marcada por risos, contacto físico e intimidade positiva. Mas neste caso foi a tradução portuguesa que fez a Grande Borrada. Numa cena em que o pai/padrasto pergunta ao filho por quem está apaixonado, diz algo como: "So, who is she, he?" ("Quem é ela, ou ele?"). Como é que a tradução portuguesa pôs a coisa? Pois bem: "Quem é ela?". Assim. Só. Provavelmente nem censura foi, mas antes auto-censura, elisão, surdez cultural que impediu @ tradutor@ de ouvir. A deixa inglesa até reforça a ideia de que um caso gay possa ter sido retirado do argumento inicial, pois a pergunta que o padrasto faz ao enteado indicia um script não-homofóbico. Da próxima vez que as produtoras resolverem ceder ao mainstream que insiste em convencer-se (e tentar convencer-nos) de que os gays e as lésbicas não existem (em Londres? Onde entre 10 a 20% da população deve ser lgbt? Num filme onde se preocupam com a diversidade de classe, etnia e "raça"?), já sabem o que têm a fazer: contratem tradutores portugueses que el@s tratam de limpar tudo. Não existe apenas limpeza étnica: existe também limpeza sexual.
PS: Noutra vertente, a étnica, o filme retrata uma portuguesa (Lúcia Moniz), empregada doméstica, de uma família de portugas tão estereótipos que até o pai anda de camisola interior em casa. Mas quando vemos que o filme é produzido pela Studio Canal percebemos de onde vem o estereótipo dos portugueses: de França. Daí a personagem da portuguesa viver nesse país e não onde seria igualmente "lógico" a personagem do escritor conhecê-la: em Portugal, na sua casa de férias, e não no sul de França. Mas enfim, pouco importa. Mais engraçado é que o actor brasileiro Rodrigo Santoro não faz de brasileiro, nem sequer de "estrangeiro", mas sim de inglês. A actriz portuguesa faz de... portuguesa.
Não pude ir ao lançamento do livro "Carlos Calvet - 60 anos de pintura" (que já me disseram ter sido composto da actualidade para o passado, a melhor maneira de "falar" da obra dum pintor). Mas não quero deixar de dizer que é um dos meus pintores portugueses preferidos. Porquê? Porque é dos poucos que conseguem fazer a síntese entre a emoção poética e a inteligência racional, sem abastardarem nem uma nem outra. Estas coisas não se explicam muito bem por palavras, mas sim vendo os quadros. Agora tenho a felicidade de ter uma obra dele em casa, graças à intervenção da minha amiga Leonor Areal que tem como um dos seus muitos e bons traços identitários o acaso de ser filha do pintor. Aqui fica a imagem do convite (com o pedido de desculpa pela qualidade da reprodução):
Leio o post anterior e assalta-me a dúvida autocrítica do costume: não terei caído nos mesmos erros que critico nos outros? É que escrever sobre uma experiência num país pode facilmente dar azo a toda a sorte de asneiras. A principal, de ordem metodológica, é a generalização: afinal de contas, um país não é um objecto ou unidade de análise que se meta no bolso, é sim uma imensidão, feita de diversidades. A segunda, relacionada com a autoria e a autoridade, tem a ver com as interpretações que se pode despoletar nos leitores: sendo eu (cá está a maldita profissão) antropólogo, tudo o que diga sobre um país (porque isso se confunde, fácil e erroneamente, com "cultura") pode ser tido como análise academicamente validada. Bem, quanto a isso, tirem os cavalinhos da chuva - isto é um blog/webpage, não uma revista científica. A terceira é de ordem moral: afinal de contas não obtive imensas benesses e vantagens com as minhas idas e estadias aos e nos EUA? Que raio de reconhecimento é este? E, por fim, uma questão política: como está instituída uma espécie de ressalva cultural anti-americana (partilhada por esquerda e direita, ainda que por razões diferentes, e transformada numa espécie de base identitária europeia), não corro o risco de estar simplesmente a reproduzi-la?
Contas feitas, praticamente tudo o que digo poderia ser dito por muita gente nos EUA, pois um país é um feixe de forças antagónicas, de lutas culturais e de posição. A principal armadilha a evitar no tipo de texto como o anterior é a comparação moralizadora, como quando se propõe o país (ou cultura, ou grupo, ou seja o que for) de origem como alternativa positiva.
Reminder. Uma semana em Chicago. Prometi um relatório sobre a terra da homeland security e do Patriot Act, esses arremedos de legislação de excepção de que as ditaduras tanto gostam. Ia apreensivo, sobretudo porque cada vez mais me afasto emocionalmente daquela que foi a minha segunda pátria durante muito tempo. É horrível perder-se o amor por algo ou alguém. Sobretudo a fase inicial, quando se começa a perceber que se está a perdê-lo...
Visa Waiver. Oh, maravilhoso privilégio português-comunitário: não é preciso visto para a land of the free. Basta preencher a visa waiver no avião. Dantes, sim, havia aquela maravilhosa entrada perguntando-nos se éramos comunistas. Menti deliciosamente umas vinte vezes (já fui, tecnicamente, comunista, na encarnação juvenil- seventies). Caiu o muro e caiu a cláusula. Mas agora - além dos nazis, e acho muito bem - a preocupação é moral. Vejam:
O mais engraçado é a parte que diz "Do you have a communicable disease; physical or mental disorder; or are you a drug abuser or addict?". Pois... sim, sim e sim: sou paciente involuntário do governo Bush, uma doença que me foi transmitida pelo senhor José Manuel Durão Barroso, tenho o desarranjo mental de não ser um puritano e, sim, sou tabagista. Melhor ainda é a entrada que nos pergunta: "Have you ever been arrested or convicted for an offense or crime involving moral turpitude (...) or are you seeking entry to engage in criminal or immoral activities?". Claro que sim! Sou moralmente "turvo" até dizer basta: pratico sodomia em todos os sentidos e direcções e ainda fumo um cigarro a seguir. How about that, George W?
Prólogo retardado. O meu amigo Rui Zink, dias antes de eu ir, contava-me um episódio da sua estadia lá este verão. Numa livraria pediu um livro. Não havia. A balconista foi consultar o computador. Pensando que se poderia ter enganado na referência, o Rui faz o gesto "normal" de espreitar sobre o balcão para ver o ecrã. A rapariga fora, até ali, impecavelmente simpática, como só os americanos sabem ser nas relações comerciais (e ainda bem, pois não há nada mais insuportável do que a má criação europeia no atendimento, coisa em que Portugal é campeão comunitário). Mas eis senão quando ela reage num modo que estou cansado de conhecer por lá: "Please, sir, step away, sir!". A voz, de comando militar, grossa e alguns decibeis acima; o "sir", mais militar é ainda. O olhar - bem, nem quero imaginar, pois pode-se ser congelado de morte. Ele acabara de lhe invadir o espaço, e sabe-se lá com que intenções: violação da privacidade? Assédio sexual? Terrorismo?. Outra amiga, a Marzia Grassi, regressada dias antes também de lá, só sabia dizer "um país censurado, um país censurado...". Acertou na mouche: a censura começa no corpo e seus orifícios, passa pelo horror ao toque (ou o fetiche pelo toque excessivo...), passa pela vontade de censurar com base em ressalvas morais (o auditório do liceu onde andou o Michael Jackson deixou de ter o nome dele, "até que se prove que é inocente" (!)), e culmina numa televisão digna de 1984-livro.
"Independence from America!" (cartaz durante a visita de Bush a Londres). Em Heathrow, uma série de americanas, senhoras de classe média-alta, riem-se de Bush, comentam com outros passageiros a vergonha que sentem pelo governo, comentam as notícias que leram na Europa e a que não têm acesso fácil nos EUA e proclamam que não só não votaram no W (leia-se, com erro propositado, "Dubya", a nova alcunha do Grande-Coiso), como ninguém, de facto, o elegeu. Há americanos assim, graças a d... (consta que que não se deve pronunciar o nome del@, pelo menos em vão).
Coisas boas. À porta de um café, um dos muitos negros que pedem esmolas pede-me um cigarro (um catalão lá da universidade disse que, em anos, a única vez que algum negro lhe dirigiu a palavra na rua foi para pedir um cigarro). Dou-lho, acendo um para mim, beberrico o café (sabe sempre melhor quando estão zero graus, especialmente se no interior do café me linchassem). Cinquenta cêntimos de dólar e compro o jornal (os jornais em Portugal custam um euro, get it?). E eis a grande notícia, na primeira página do Chicago Tribune:
(Aliás, estou cada vez mais convencido que os direitos lgbt só avançam mesmo quando houver casamento. É uma espécie de barreira simbólica que faz toda a diferença no mundo real. Há uns anos ainda discutíamos se era bom subscrever (ai o anglicismo) uma instituição patriarcal; agora, não só não acho que seja vivida como patriarcal pela maioria das pessoas, como acho que é exigindo aos liberais (os velhos e os neo) coerência no seu liberalismo, que se ganha. É como exigir-lhes que haja liberdade de circulação de imigrantes, sem empecilhos do Estado, o que é perfeitamente consonante com o seu ideário...).
"What state is Chicago in? Ill..." (dica do meu mais-que-tudo cá em casa). Note-se que Chicago é giro (gira?). Que a universidade é óptima. Que as coisas em geral funcionam, as pessoas encontram-se para festas, as luzes de Natal acendem-se, a vida académica continua, e alguém faz pastelaria francesa melhor do que em Paris, numa mall ao lado da linha do comboio. Mas a "doença" é essa: o país está em guerra e ninguém nota (não a guerra contra o terrorismo, que é quase um oxímoro, mas em guerra no/contra o Iraque). A não ser que avancemos com uma explicação algo radicalóide: o estado natural de existência do império é a guerra.
Horror TV. Em "Queer Eye on a Straight Guy" um grupo de gays ajudam um hetero a vestir-se, falar, decorar, etc., de modo a conquistar a mulher desejada. Vamos assistindo às peripécias e, no fim, vemos os gays celebrarem quando o hetero consegue o beijo da amada. Finalmente os gays são protagonistas de algo? Sim, mas tudo o que fazem é estereótipo; e aquilo para que servem é para os heteros conseguirem algo. O gay como a extensão contemporânea da irmã mais velha, da mãe, da amiga feia que ajuda: sem sexo nem nexo, objecto funcional. Assim não, meus queridos, preferimos que continuem a bater-nos (sempre nos dá uma chance de vos batermos). Noutro reality show, tipo Springer, uma rapariga acusa dois rapazes de serem os pais da filha de 2 anos, também presente no estúdio (!). A jovem mãe tem um ar infeliz, tipo Sissy Spacek trailer park e white trash. A produção revela os resultados do teste de paternidade que encomendou. Nenhum dos moços é "culpado". A rapariga chora: tinha dito antes que eles eram os únicos homens com quem alguma vez tinha dormido. Dores de estômago, náusea, vómito (meus, é claro). Noutro programa, seguimos as vidas de adolescentes ricas, só para sabermos como gastam o tempo a comprar roupa e com quem namoram (já imaginaram isto por cá? (Eu tenho o direito de saber a quem a Bomboca Teixeira da Cunha põe os cornos no sábado anterior a ir à confissão!); noutro, uns adolescentes camones são postos num apartamento em Paris, numa espécie de Big Brother. Não percebem patavina do que se passa à volta. Às tantas sabem que o Departamento de Estado avisou que os americanos em férias deveriam voltar a casa (na altura do começo da guerra). O mais espantoso é que acreditam e um deles diz mesmo que já não se sente seguro como americano nas ruas de Paris. Dáprácreditar!? Inseguro? Nas ruas de Paris? Por ser americano? Please: eu é que me sinto inseguro a viajar de avião para os EUA...
Lucidez. Fiquei em casa da minha amiga Kesha Fikes, que é lúcida e pertence a um número de americanos inteligentes e sensíveis. Esse número é bem maior do que as minhas entradas malévolas podem dar a entender. Enfim, é um número tão grande ou tão pequeno quanto o número de portugueses inteligentes e sensíveis.... Às tantas ela diz que o grande assunto de debate entre candidatos presidenciais (e candidatos a candidatos, que o Partido Democrático é assim como uma espécie de PS) vai ser a questão dos direitos gay e não, por exemplo, a guerra. Isto ajuda a perceber algumas das entradas anteriores deste post, não ajuda? (Faz também pensar, mas isso é outra história, numa coisa misteriosa que acontece hoje, por cá, e em certos grupos sociais mais marcados pela globalização: a possibilidade de se ser conservador (e mesmo reaccionário) em questões de economia política e política internacional, e progressista no que tem a ver com costumes, sexualidade, secularismo, etc.).
Instrumentalidade. Um dos códigos de relacionamento entre pessoas na América, sobretudo no meio académico, é as pessoas perguntarem aos outros o que eles/elas fazem, quando são apresentad@s. Somos apresentados a alguém e, pumba, "E tu, fazes o quê?" Cá também, cada vez mais, e nalguns meios sempre assim foi. Fico sempre sem saber como reagir. "Nada", é o que apetece responder. Ou "tudo" (ou, em versão canalha: "O que tu quiseres..."). Tenho horror à definição da pessoa pela profissão e, dentro desta, à hiper-definição pela área de estudo, tópico, teoria. Já não se pode ser Homem (ou Mulher) da Renascença?
Gravidade. Uma coisa é certa, no meio académico local (Chicago) a vida social é intensa: jantares, festas, recepções, almoços, brown-bag lunches. Muita socialização e sociabilidade. Papers apresentados, ouvidos, discutidos. Circulação de informação. Estas coisas às vezes têm um lado de cultura de empresa à japonesa. Mas têm o lado bom de garantir que as pessoas mantenham relações polidas e se oiçam. Uma coisa dessas no meu departamento cá era impensável. E nos departamentos portugueses onde isso existe, a intenção é muitas vezes o controlo social, quando não mesmo político. Mas não tenho paciência para a sociabilidade formal de "lá": toda a gente está sempre "óptima", e na conversa deve-se mostrar a capacidade nos "beaux mots" e chistes, e pouco mais. Por cá, toda a gente está sempre "mais ou menos" e deve-se mostrar, como quem não quer a coisa (porque o dinheiro é uma coisa feia para os católicos e é por isso que pode ser mantido em segredo e assim reproduzir-se melhor), os sucessos que se teve ou se imaginou ter. Entre as duas "culturas", venha o diabo e escolha.
More Moore. Michael Moore continua a fazer das suas. Desta vez, a parte genial do livro é a inicial: trata-se de uma pesquisa jornalística aprofundada sobre as ligações (pessoais, de negócios, de apoio político) entre a família Bush e... (a família Blair? Não; a família real saudita? Não; a família real inglesa? Também Não; a família de José Barroso? Tãopouco); trata-se da família Bin Laden. O capítulo é assustador. Como é assustadora a censura imposta ao tratamento do assunto. Mas, como todos sabemos, era importante tirar Saddam do poder, e o resto são pormenores, peanuts, poços de petróleo, coisas dessas. (Uma das histórias é que mais de vinte membros da família Bin Laden foram conduzidos em segurança e sem interrogatório, dos EUA para Paris, no dia a seguir ao 11 de Setembro, em jactos privados, por iniciativa do governo americano, para garantir a sua segurança contra hipotéticas represálias; no terraço da Casa Branca, depois de lá regressar quando se apercebeu que era vergonhoso andar a fugir pelos EUA fora, Bush fumava um charuto com um dos bin Ladens, amigo pessoal da família. Não é fantasia: é facto).
E agora algo (ainda) mais sério. Este senhor já foi meu professor, lá nos estados. Achava que as teorias dele - world-system theory - eram um bocado duras (estruturais) e generalistas ao mesmo tempo. Que lhes faltava o imponderável, o negociável, o quotidiano, o variável, em suma, aquilo em que a cultura (no sentido antropológico) pode complicar a limpidez sociológica e histórica de quem aborda sistemas. Mas no caso deste livro, rendo-me: a análise do lugar dos EUA na História dos últimos 100 anos - e, sobretudo, no pós-guerra - é notável: quando a perspectiva se alarga começam a perceber-se grandes tendências. E aquela de que ele nos fala aqui é a do começo do declínio do poderio americano. Tudo o que está a acontecer seria indício disso e não do proclamado contrário, o super-poder americano. Posto isto, o fim do livro apresenta alguns ensaios sobre "o que deve a esquerda fazer para se reinventar" no mundo contemporâneo. São muito interessantes. Só uma dica (para os socialistas inveterados): a questão da propriedade é praticamente irrelevante; o que importa é impedir a mercadorização de todos e de todas as relações. Ou: mais do que atacar o projecto liberal em bloco, há que exigir aos liberais que nos dêem aquilo que eles próprios proclamam mas não cumprem: liberdades. And so on.
Final. No regresso, tive receio de trazer este livro na mão. Apercebi-me então que o simples facto de ter receio era já um efeito da "guerra contra o terrorismo", do estado de excepção mental que ela cria. De certo modo, o Patriot Act e a Homeland Security já estavam na minha cabeça. Não aconteceu nada, é claro (claro, o tanas, que já muito estrangeiro foi preso, por bem menos, e sem nenhuns direitos, e não estou a falar dos desgraçados em Guantanamo, mas de estudantes e jornalistas não-americanos). Entrei no terminal do aeroporto, passei a segurança. Quiz comprar uma água e como já não tinha dinheiro perguntei, en passant, se poderia pagar com euros. Uma resposta negativa de desprezo, como quem diz "mas que raio de ideia!". O olho do furacão é o sítio mais calmo; o centro do império é o local mais provinciano. O declínio começou mesmo. Sinto saudades dos EUA. Sinto saudades daquele meu outro país.
O Provedor de Justiça admite (embora devesse ter sido mais afirmativo...) as salas de chuto nas prisões. O bastonário dos advogados dá a entender que é aceitável. Mas depois temos que ouvir a Dona Celeste (que até é ministra da Justiça) dizer que com ela tal coisa não acontecerá. O parece-que-é-de-esquerda-mas-é-de-direita Freitas do Amaral tem a mesma opinião: o que não se faz cá fora, não deve fazer-se na prisão (um argumento lógico diria exactamente o contrário, mas nem sequer é essa a questão).
Nos noticiários nenhum jornalista se lembra de os confrontar com o facto de que em Espanha a coisa faz-se e funciona. Além disso, parece que a distribuição de preservativos nas cadeias só se dá quando os reclusos os pedem aos guardas. Isto é ou não reconhecer que existe homofobia (e homofobia interiorizada também) ou maldade: qual é o problema de se reconhecer que os reclusos (como toda a gente) podem ir ao cu uns aos outros e fazer-se broches (desculpem a linguagem, mas é que já não há paciência para a hipocrisia nacional-populista)?
Isto faz-me lembrar outra coisa bem diferente (talvez seja a simbologia fálica): as queixas quanto ao traçado do comboio TGV (dependência de Madrid) são de morrer a rir. Deixem lá usar Madrid como canal de saída (e entrada): o país ao lado é claramente um país mais Moderno e esse é o único critério que me importa quando penso nas chances de maior qualidade de vida e justiça ainda no tempo útil dos anos de vida que me (nos) restam.
Sugiro seriamente que as Donas Celestes e os Srs Freitas se retirem para conventos (já agora acompanhados do Sr Portas, Paulo: o ambiente monacal poderá ajudar a elaborar propostas sobre a inconstitucionalidade de referendos sobre o aborto, uma vez que toda a gente sabe que quanto mais mortas as pessoas estão, mais defendem histericamente a "protecção da vida")
(É claro que no convento será proibida a distribuição de preservativos e as salas de chuto. Castidade e doces conventuais - that'll be the extent of sin).
A soldado Jessica Lynch anda a desmentir quase tudo o que os acólitos de Bush quiseram construir de mitológico em seu torno. Tiveram que mandar o iraquiano que a "salvou" contrariar os desmentidos dela, com stars and stripes no cenário e tudo. Todos os americanos sabem que a palavra de um iraquiano é mais válida que a palavra de uma soldado americana, sobretudo se ela for a heroína de ontem, salva das mãos cruéis dos iraquianos. Não perceberam? Eu também não. Os americanos também não. Os iraquianos também não. A Lynch também não. E, needless to say, Bush também não. Mas que é giro, é. Lyncha-os bem, Jessica!
A propósito do aumento da criminalidade nos comboios da linha de Sintra, o presidente da Câmara local diz qualquer coisa como isto (reinvento mas não estarei longe da verdade, infelizmente): "Deve-se a um conjunto extraordinariamente complexo de factores relacionados com os espaços da linha de Sintra, relacionados nomeadamente com o tráfico de estupefacientes...". Podia ter simplesmente dito: "Deve-se ao tráfico de droga". Este vírus linguístico da complicação espalha-se, aliás, por tudo o que é gente, de chefes de bombeiros prestando declarações no meio das brasas, a dirigentes sindicais à porta de fábricas em greve, passando por professores universitários em programas de televisão. Porque se fala assim? Para esconder que não se sabe o que se diz? Para ganhar ascendente sobre os outros, sobretudo ocupando-lhes o tempo? Para fazer boa impressão junto do "povo"? Por tudo isto, mais um terrível pormenor: por não saber pensar.
É comum dizer-se, e com razão, que os gays usufruem do privilégio de serem homens numa sociedade patriarcal e que as lésbicas são duplamente excluídas, como mulheres. Mas às vezes as coisas têm efeitos curiosos, como quando a imagem denegridora e estereotipada do gay "efeminado" constitui a figura de exclusão máxima. Ontem, ao ver o 3º Matrix reparei nisso. Uma personagem secundária - uma moça militar de cabelo rapado, musculosa e bélica - apresenta os sinais estereotípicos da lésbica masculinizada. Mas como está a cumprir uma função "nobre" (militar, de resistente defendendo os seus), incorporando uma masculinidade que se confunde com a ideia de humanidade no seu melhor (pois...), o guionista, o realizador (e os espectadores...) não estão a gozar com ela. Apercebi-me então de como seria impossível surgir ali uma personagem de gay estereotipadamente "efeminado" que não fosse como figura de chacota. Não há outro lugar.
De qualquer modo, a moça militar morre rapidamente (o destino de pretos e homossexuais nas narrativas oliudescas). De qualquer modo, no antro dos maus (uma discoteca, gerida por um francês, claro) vê-se bem pares gays abraçados (quem mais poderia estar ali?). São gays entre o tipo clone e o tipo s/m: hipermasculinos. Ou seja: a "perversão" máxima da masculinidade, que é ela ser imitada/ironizada/performada por quem tinha "obrigação", como homem, de a ter "naturalmente".
PS: Peço desculpa pelo exercício semiótico. Faz sentido? Já agora, para quem não se lembre: Matrix quer dizer "Útero".
Não me importo nada quando me chamam nomes que só diminuem o valor de quem insulta. É o caso dos que têm a ver com a sexualidade ou os que se baseiam em códigos de "honra" e machismo. Já não posso dizer o mesmo dos "nomes" que têm a ver com aspectos da personalidade e comportamento que eu próprio detesto. Nesses casos, enfio mesmo o barrete. Lembro-me de alguns: diletante, preguiçoso, aburguesado, blasé, pouco rigoroso, snob. Algumas críticas nos comentários neste blog, por exemplo, são versões comentadas desse "chamar nomes". E justas. Que fazer quando nos devolvem justamente a imagem que não queremos ter e que achamos negativa em terceiros? Se a crítica for mesmo justa e adequada aos factos relatados (há tantos erros de interpretação...) só resta mesmo uma única via decente: trabalhar para não merecer o reparo.
Um pequeno desaguisado: o Bloco tem um projecto de lei sobre reprodução medicamente assistida. Várias lésbicas e gays queixam-se que o projecto é focado nos heterossexuais. O Bloco acha que não têm razão e que inclusive o projecto tem cláusulas que são portas abertas a seu favor. Alguma reacção mais radical e apaixonada da nossa (lgbt...) parte. Mas alguma reacção irritada da parte do Bloco. Em subtexto surgem "acusações" de "infantilismo" no movimento gay (por favor, notem: as palavras têm aspas....). Já antes, nos meios do Fórum Social Português, surgia, a propósito dos conflitos entre a Opus Gay e todas as outras associações lgbt, o subtexto de que o movimento gay estaria a dar a imagem de ser infantil, de reagir à flor da pele, etc...
Há que ter algum cuidado: se há coisa que une a diminuição cívica, social, humana, de gays e lésbicas, negros e colonizados, mulheres e crianças, é a ideia de que têm qualquer coisa de "infantil", "precipitado", em suma, "irracional". Para lá da homofobia flagrante, há uma subtil, e ainda uma outra, que é a das estruturas inconscientes da nossa forma de categorizar e pensar o mundo e a sua diversidade, esquecendo uma perspectiva de poder.
Mas há pior (ou mais chato): é que, em virtude de circunstâncias de marginalidade e impotência perante a homofobia, os movimentos lgbt podem mesmo ser - sobretudo em contextos como o nosso - um pouco imediatistas e, portanto, "infantis". Fomos de tal maneira "educados" para sermos hetero que, quando assumimos a nossa homossexualidade e a politizamos, já vamos armadilhados, interiorizando como comportamento alguns dos traços denigridores que nos atribui a homofobia. É assim que se reproduz a opressão: através de self-fulfilling prophecies.
Do Público pedem-me para comentar a ordenação de um bispo anglicano assumidamente gay. Lá lhes digo que isto é bom para chatear a Igreja Católica Romana que, à sombra da liberdade religiosa, se permite fazer coisas que vão contra a liberdade de tod@s, a saber, contra a ordem constitucional mais vasta (à qual a liberdade religiosa deveria estar sujeita, como aliás é fácil aceitar-se quando se diz que não se admitiria entre nós o apedrejamento de adúlteras propugnado por fundamentalistas muçulmanos...). É que a Igreja Católica Romana não só discrimina (profissionalmente e não só) as mulheres, como milita contra a homossexualidade (nomeadamente nos seus "movimentos" pela "vida" que dão aulas - sim, não é piada - de educação sexual). Já parece os bispos anglicanos africanos, esses homófobos herdeiros do pior que o colonialismo deixou em África.
PS: No fim da breve entrevista telefónica, o velho problema identitário: eu deveria ser referido como antropólogo? Como do Bloco? Como militante gay? "Olhe, todos", disse eu. Veremos o que acontece.
Operação Triunfo, RTP (sim, vejo). Há um concorrente negro. Dão ao rapaz um rap para cantar. Ele fica estupefacto: aparentemente não é o género dele e queria "qualquer coisa mais melódica". Apresentadora e professores ficam com aquela cara de espanto: "então não é disso que eles gostam?", parece dizer a expressão; "E nós que fomos tão modernaços, tolerantes, abertos e acarinhadores da diferença..."
No Público de domingo, António Barreto, se bem que no meio de uma argumentação mais espessa, como que faz a pergunta que ninguém se atreve a fazer: quando é que fecham a Casa Pia? Sim, a instituição construiu-se como (entre outras coisas) instituição de proxenetismo. O que eu quero é a Srª Pestana a dizer-nos quando deixa de o ser e quando fecha esse resquício da Idade Média feito para o acantonamento dos pobres-muito-pobres e dos órfãos - a coutada por excelência da predação sexual. Não a quero - ela também é paga por mim - a fazer justiça paralela em directo nos telejornais.
A RTP noticia: "grande operação de caça aos pedófilos e pornografia infantil nos EUA". Parece bem. Só que a seguir o correspondente, como quem não quer a coisa, especifica: a Operação "Predator" faz parte das leis de segurança interna pós 11 de Setembro, e visa "reprimir as actividades ilegais de estrangeiros nos EUA". Duma penada, "terroristas", estrangeiros, pedófilos e pornógrafos são metidos no mesmo saco. Nem um segundo de crítica ou explicação desta notícia. É "passar adiante". Para o quê? Para mais uma notícia sobre pedofilia e quejandas em Portugal...