OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


28.11.03  

"Chicago, Chicago, tra-la-la-la-la..."

Reminder. Uma semana em Chicago. Prometi um relatório sobre a terra da homeland security e do Patriot Act, esses arremedos de legislação de excepção de que as ditaduras tanto gostam. Ia apreensivo, sobretudo porque cada vez mais me afasto emocionalmente daquela que foi a minha segunda pátria durante muito tempo. É horrível perder-se o amor por algo ou alguém. Sobretudo a fase inicial, quando se começa a perceber que se está a perdê-lo...

Visa Waiver. Oh, maravilhoso privilégio português-comunitário: não é preciso visto para a land of the free. Basta preencher a visa waiver no avião. Dantes, sim, havia aquela maravilhosa entrada perguntando-nos se éramos comunistas. Menti deliciosamente umas vinte vezes (já fui, tecnicamente, comunista, na encarnação juvenil- seventies). Caiu o muro e caiu a cláusula. Mas agora - além dos nazis, e acho muito bem - a preocupação é moral. Vejam:



O mais engraçado é a parte que diz "Do you have a communicable disease; physical or mental disorder; or are you a drug abuser or addict?". Pois... sim, sim e sim: sou paciente involuntário do governo Bush, uma doença que me foi transmitida pelo senhor José Manuel Durão Barroso, tenho o desarranjo mental de não ser um puritano e, sim, sou tabagista. Melhor ainda é a entrada que nos pergunta: "Have you ever been arrested or convicted for an offense or crime involving moral turpitude (...) or are you seeking entry to engage in criminal or immoral activities?". Claro que sim! Sou moralmente "turvo" até dizer basta: pratico sodomia em todos os sentidos e direcções e ainda fumo um cigarro a seguir. How about that, George W?

Prólogo retardado. O meu amigo Rui Zink, dias antes de eu ir, contava-me um episódio da sua estadia lá este verão. Numa livraria pediu um livro. Não havia. A balconista foi consultar o computador. Pensando que se poderia ter enganado na referência, o Rui faz o gesto "normal" de espreitar sobre o balcão para ver o ecrã. A rapariga fora, até ali, impecavelmente simpática, como só os americanos sabem ser nas relações comerciais (e ainda bem, pois não há nada mais insuportável do que a má criação europeia no atendimento, coisa em que Portugal é campeão comunitário). Mas eis senão quando ela reage num modo que estou cansado de conhecer por lá: "Please, sir, step away, sir!". A voz, de comando militar, grossa e alguns decibeis acima; o "sir", mais militar é ainda. O olhar - bem, nem quero imaginar, pois pode-se ser congelado de morte. Ele acabara de lhe invadir o espaço, e sabe-se lá com que intenções: violação da privacidade? Assédio sexual? Terrorismo?. Outra amiga, a Marzia Grassi, regressada dias antes também de lá, só sabia dizer "um país censurado, um país censurado...". Acertou na mouche: a censura começa no corpo e seus orifícios, passa pelo horror ao toque (ou o fetiche pelo toque excessivo...), passa pela vontade de censurar com base em ressalvas morais (o auditório do liceu onde andou o Michael Jackson deixou de ter o nome dele, "até que se prove que é inocente" (!)), e culmina numa televisão digna de 1984-livro.

"Independence from America!" (cartaz durante a visita de Bush a Londres). Em Heathrow, uma série de americanas, senhoras de classe média-alta, riem-se de Bush, comentam com outros passageiros a vergonha que sentem pelo governo, comentam as notícias que leram na Europa e a que não têm acesso fácil nos EUA e proclamam que não só não votaram no W (leia-se, com erro propositado, "Dubya", a nova alcunha do Grande-Coiso), como ninguém, de facto, o elegeu. Há americanos assim, graças a d... (consta que que não se deve pronunciar o nome del@, pelo menos em vão).

Coisas boas. À porta de um café, um dos muitos negros que pedem esmolas pede-me um cigarro (um catalão lá da universidade disse que, em anos, a única vez que algum negro lhe dirigiu a palavra na rua foi para pedir um cigarro). Dou-lho, acendo um para mim, beberrico o café (sabe sempre melhor quando estão zero graus, especialmente se no interior do café me linchassem). Cinquenta cêntimos de dólar e compro o jornal (os jornais em Portugal custam um euro, get it?). E eis a grande notícia, na primeira página do Chicago Tribune:



(Aliás, estou cada vez mais convencido que os direitos lgbt só avançam mesmo quando houver casamento. É uma espécie de barreira simbólica que faz toda a diferença no mundo real. Há uns anos ainda discutíamos se era bom subscrever (ai o anglicismo) uma instituição patriarcal; agora, não só não acho que seja vivida como patriarcal pela maioria das pessoas, como acho que é exigindo aos liberais (os velhos e os neo) coerência no seu liberalismo, que se ganha. É como exigir-lhes que haja liberdade de circulação de imigrantes, sem empecilhos do Estado, o que é perfeitamente consonante com o seu ideário...).

"What state is Chicago in? Ill..." (dica do meu mais-que-tudo cá em casa). Note-se que Chicago é giro (gira?). Que a universidade é óptima. Que as coisas em geral funcionam, as pessoas encontram-se para festas, as luzes de Natal acendem-se, a vida académica continua, e alguém faz pastelaria francesa melhor do que em Paris, numa mall ao lado da linha do comboio. Mas a "doença" é essa: o país está em guerra e ninguém nota (não a guerra contra o terrorismo, que é quase um oxímoro, mas em guerra no/contra o Iraque). A não ser que avancemos com uma explicação algo radicalóide: o estado natural de existência do império é a guerra.

Horror TV. Em "Queer Eye on a Straight Guy" um grupo de gays ajudam um hetero a vestir-se, falar, decorar, etc., de modo a conquistar a mulher desejada. Vamos assistindo às peripécias e, no fim, vemos os gays celebrarem quando o hetero consegue o beijo da amada. Finalmente os gays são protagonistas de algo? Sim, mas tudo o que fazem é estereótipo; e aquilo para que servem é para os heteros conseguirem algo. O gay como a extensão contemporânea da irmã mais velha, da mãe, da amiga feia que ajuda: sem sexo nem nexo, objecto funcional. Assim não, meus queridos, preferimos que continuem a bater-nos (sempre nos dá uma chance de vos batermos). Noutro reality show, tipo Springer, uma rapariga acusa dois rapazes de serem os pais da filha de 2 anos, também presente no estúdio (!). A jovem mãe tem um ar infeliz, tipo Sissy Spacek trailer park e white trash. A produção revela os resultados do teste de paternidade que encomendou. Nenhum dos moços é "culpado". A rapariga chora: tinha dito antes que eles eram os únicos homens com quem alguma vez tinha dormido. Dores de estômago, náusea, vómito (meus, é claro). Noutro programa, seguimos as vidas de adolescentes ricas, só para sabermos como gastam o tempo a comprar roupa e com quem namoram (já imaginaram isto por cá? (Eu tenho o direito de saber a quem a Bomboca Teixeira da Cunha põe os cornos no sábado anterior a ir à confissão!); noutro, uns adolescentes camones são postos num apartamento em Paris, numa espécie de Big Brother. Não percebem patavina do que se passa à volta. Às tantas sabem que o Departamento de Estado avisou que os americanos em férias deveriam voltar a casa (na altura do começo da guerra). O mais espantoso é que acreditam e um deles diz mesmo que já não se sente seguro como americano nas ruas de Paris. Dáprácreditar!? Inseguro? Nas ruas de Paris? Por ser americano? Please: eu é que me sinto inseguro a viajar de avião para os EUA...

Lucidez. Fiquei em casa da minha amiga Kesha Fikes, que é lúcida e pertence a um número de americanos inteligentes e sensíveis. Esse número é bem maior do que as minhas entradas malévolas podem dar a entender. Enfim, é um número tão grande ou tão pequeno quanto o número de portugueses inteligentes e sensíveis.... Às tantas ela diz que o grande assunto de debate entre candidatos presidenciais (e candidatos a candidatos, que o Partido Democrático é assim como uma espécie de PS) vai ser a questão dos direitos gay e não, por exemplo, a guerra. Isto ajuda a perceber algumas das entradas anteriores deste post, não ajuda? (Faz também pensar, mas isso é outra história, numa coisa misteriosa que acontece hoje, por cá, e em certos grupos sociais mais marcados pela globalização: a possibilidade de se ser conservador (e mesmo reaccionário) em questões de economia política e política internacional, e progressista no que tem a ver com costumes, sexualidade, secularismo, etc.).

Instrumentalidade. Um dos códigos de relacionamento entre pessoas na América, sobretudo no meio académico, é as pessoas perguntarem aos outros o que eles/elas fazem, quando são apresentad@s. Somos apresentados a alguém e, pumba, "E tu, fazes o quê?" Cá também, cada vez mais, e nalguns meios sempre assim foi. Fico sempre sem saber como reagir. "Nada", é o que apetece responder. Ou "tudo" (ou, em versão canalha: "O que tu quiseres..."). Tenho horror à definição da pessoa pela profissão e, dentro desta, à hiper-definição pela área de estudo, tópico, teoria. Já não se pode ser Homem (ou Mulher) da Renascença?

Gravidade. Uma coisa é certa, no meio académico local (Chicago) a vida social é intensa: jantares, festas, recepções, almoços, brown-bag lunches. Muita socialização e sociabilidade. Papers apresentados, ouvidos, discutidos. Circulação de informação. Estas coisas às vezes têm um lado de cultura de empresa à japonesa. Mas têm o lado bom de garantir que as pessoas mantenham relações polidas e se oiçam. Uma coisa dessas no meu departamento cá era impensável. E nos departamentos portugueses onde isso existe, a intenção é muitas vezes o controlo social, quando não mesmo político. Mas não tenho paciência para a sociabilidade formal de "lá": toda a gente está sempre "óptima", e na conversa deve-se mostrar a capacidade nos "beaux mots" e chistes, e pouco mais. Por cá, toda a gente está sempre "mais ou menos" e deve-se mostrar, como quem não quer a coisa (porque o dinheiro é uma coisa feia para os católicos e é por isso que pode ser mantido em segredo e assim reproduzir-se melhor), os sucessos que se teve ou se imaginou ter. Entre as duas "culturas", venha o diabo e escolha.

More Moore. Michael Moore continua a fazer das suas. Desta vez, a parte genial do livro é a inicial: trata-se de uma pesquisa jornalística aprofundada sobre as ligações (pessoais, de negócios, de apoio político) entre a família Bush e... (a família Blair? Não; a família real saudita? Não; a família real inglesa? Também Não; a família de José Barroso? Tãopouco); trata-se da família Bin Laden. O capítulo é assustador. Como é assustadora a censura imposta ao tratamento do assunto. Mas, como todos sabemos, era importante tirar Saddam do poder, e o resto são pormenores, peanuts, poços de petróleo, coisas dessas. (Uma das histórias é que mais de vinte membros da família Bin Laden foram conduzidos em segurança e sem interrogatório, dos EUA para Paris, no dia a seguir ao 11 de Setembro, em jactos privados, por iniciativa do governo americano, para garantir a sua segurança contra hipotéticas represálias; no terraço da Casa Branca, depois de lá regressar quando se apercebeu que era vergonhoso andar a fugir pelos EUA fora, Bush fumava um charuto com um dos bin Ladens, amigo pessoal da família. Não é fantasia: é facto).



E agora algo (ainda) mais sério. Este senhor já foi meu professor, lá nos estados. Achava que as teorias dele - world-system theory - eram um bocado duras (estruturais) e generalistas ao mesmo tempo. Que lhes faltava o imponderável, o negociável, o quotidiano, o variável, em suma, aquilo em que a cultura (no sentido antropológico) pode complicar a limpidez sociológica e histórica de quem aborda sistemas. Mas no caso deste livro, rendo-me: a análise do lugar dos EUA na História dos últimos 100 anos - e, sobretudo, no pós-guerra - é notável: quando a perspectiva se alarga começam a perceber-se grandes tendências. E aquela de que ele nos fala aqui é a do começo do declínio do poderio americano. Tudo o que está a acontecer seria indício disso e não do proclamado contrário, o super-poder americano. Posto isto, o fim do livro apresenta alguns ensaios sobre "o que deve a esquerda fazer para se reinventar" no mundo contemporâneo. São muito interessantes. Só uma dica (para os socialistas inveterados): a questão da propriedade é praticamente irrelevante; o que importa é impedir a mercadorização de todos e de todas as relações. Ou: mais do que atacar o projecto liberal em bloco, há que exigir aos liberais que nos dêem aquilo que eles próprios proclamam mas não cumprem: liberdades. And so on.



Final. No regresso, tive receio de trazer este livro na mão. Apercebi-me então que o simples facto de ter receio era já um efeito da "guerra contra o terrorismo", do estado de excepção mental que ela cria. De certo modo, o Patriot Act e a Homeland Security já estavam na minha cabeça. Não aconteceu nada, é claro (claro, o tanas, que já muito estrangeiro foi preso, por bem menos, e sem nenhuns direitos, e não estou a falar dos desgraçados em Guantanamo, mas de estudantes e jornalistas não-americanos). Entrei no terminal do aeroporto, passei a segurança. Quiz comprar uma água e como já não tinha dinheiro perguntei, en passant, se poderia pagar com euros. Uma resposta negativa de desprezo, como quem diz "mas que raio de ideia!". O olho do furacão é o sítio mais calmo; o centro do império é o local mais provinciano. O declínio começou mesmo. Sinto saudades dos EUA. Sinto saudades daquele meu outro país.


PS feliz: contracapa do Chicago Tribune.

mva | 19:06|