OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


30.11.03  

Love, actually, IS FOR EVERYONE, STUPID!

Love actually é uma boa comédia romântica, enternecedora q. b. (não tenho preconceitos contra o género, é tão agradável como comer chocolates ou ouvir música pop). Mas irritou-me solenemente, tanto mais quanto tinha os elementos para ser excelente. Desde logo, a variedade de personagens e situações românticas é tão grande, que fiquei atónito com a ausência de uma história gay ou lésbica que fosse. Tanto mais que o argumento parece ter sido truncado à última da hora: é que uma das personagens masculinas aparece, ao início, com indícios de estar apaixonada por outro homem, mas depois essa expectativa é desfeita, e de forma um tanto inverosímil. Outra boa coisa - sobretudo para portugueses, hoje - é a forma como a vida emocional (e, sim, sexual) de uma criança é tratada dignamente: o miúdo apaixona-se e é isso que o torna humano. E vive com o padrasto, após a morte da mãe, numa relação marcada por risos, contacto físico e intimidade positiva. Mas neste caso foi a tradução portuguesa que fez a Grande Borrada. Numa cena em que o pai/padrasto pergunta ao filho por quem está apaixonado, diz algo como: "So, who is she, he?" ("Quem é ela, ou ele?"). Como é que a tradução portuguesa pôs a coisa? Pois bem: "Quem é ela?". Assim. Só. Provavelmente nem censura foi, mas antes auto-censura, elisão, surdez cultural que impediu @ tradutor@ de ouvir. A deixa inglesa até reforça a ideia de que um caso gay possa ter sido retirado do argumento inicial, pois a pergunta que o padrasto faz ao enteado indicia um script não-homofóbico. Da próxima vez que as produtoras resolverem ceder ao mainstream que insiste em convencer-se (e tentar convencer-nos) de que os gays e as lésbicas não existem (em Londres? Onde entre 10 a 20% da população deve ser lgbt? Num filme onde se preocupam com a diversidade de classe, etnia e "raça"?), já sabem o que têm a fazer: contratem tradutores portugueses que el@s tratam de limpar tudo. Não existe apenas limpeza étnica: existe também limpeza sexual.

PS: Noutra vertente, a étnica, o filme retrata uma portuguesa (Lúcia Moniz), empregada doméstica, de uma família de portugas tão estereótipos que até o pai anda de camisola interior em casa. Mas quando vemos que o filme é produzido pela Studio Canal percebemos de onde vem o estereótipo dos portugueses: de França. Daí a personagem da portuguesa viver nesse país e não onde seria igualmente "lógico" a personagem do escritor conhecê-la: em Portugal, na sua casa de férias, e não no sul de França. Mas enfim, pouco importa. Mais engraçado é que o actor brasileiro Rodrigo Santoro não faz de brasileiro, nem sequer de "estrangeiro", mas sim de inglês. A actriz portuguesa faz de... portuguesa.

mva | 00:07|