OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


15.6.05  


Blog em Bloco: Casamentos.

Está disponível no jornal Esquerda (online e pdf) um artigo do Sérgio Vitorino sobre homofobia e questões de política LGBT. Acho que o artigo tem contradições que gostaria de apontar ao Sérgio e ao Bloco. O artigo oscila entre um apelo à luta pelo direito ao casamento como parte fundamental da reivindicação de igualdade, por um lado; e uma suspeita em relação aos supostos efeitos de transformar o casamento numa prioridade, por outro. Sente-se que isto é colocado em termos de uma oposição entre "integracionistas" e "outros". Acontece que esta oposição me parece pouco produtiva nos dias de hoje. Ela é mais própria de há umas décadas atrás. Hoje, certas reivindicações aparentemente integracionistas - como o direito ao casamento - podem resultar radicais; assim como certas reivindicações "radicais" podem ser contraproducentes, quando não esvaziadas de conteúdo. Esta é uma das diferenças entre modernidade e pós-modernidade, gostemos ou não.

Isto leva-me à questão da homofobia como sistema social que deve ser combatido - algo que o Sérgio privilegia. Do ponto de vista teórico, é verdade: combater a homofobia sistémica equivale ao combate ao patriarcado, por exemplo ou, ainda (e para alguns...), ao capitalismo. Só que a escala, a ordem de grandeza e a abrangência desse sistema homofóbico é tal, que é impossível torná-lo em alvo privilegiado das tácticas de luta - a não ser quando se combatem casos concretos de homofobia explícita, como aconteceu com a manifestação de Viseu, tema do artigo do Sérgio.

Tão-pouco concordo que a reivindicação do casamento possa conduzir ao esvaziamento da agenda LGBT uma vez conquistado esse direito. O Sérgio baseia o seu argumento no do que ele apelida de "movimento LGBT espanhol". Ora, esse receio, em Espanha, é veiculado apenas por um sector minoritário, mais radical, e com uma suspeita intelectual e teórica em relação ao casamento em si (homo ou hetero). Não me revejo aí. Sei que o Sérgio se revê mais aí. Tão-pouco é verdade - porque é redutor - dizer que a reivindicação do casamento em Espanha é alimentada pela influência do "euro rosa" (i.e., da mercantilização da "identidade" gay). É-o também, mas não só. E já é altura de se perceber que, hoje, o mercado pode tanto ser "local" de alienação como "local" de emancipação.

Em rigor - isto é, para o bem das causas LGBT - era óptimo que a reivindicação do casamento não se restringisse à área partidária do Bloco. Que o PS e o PC (e, quem sabe, o PSD...) também subscrevessem essa elementar igualização de direitos. Mas lá porque esses sectores estão reféns de ignorâncias, preconceitos, provincianismos e pressões, não deve o Bloco ter receio de ficar solitário nessa luta (nem deve o movimento LGBT achar que, por isso, a luta está "manchada" pelo Bloco). Defendo também que o Bloco não deve suspeitar da importância do casamento. Seria o mesmo que dizer que a segurança social não interessa porque é um paliativo para a desigualdade social... Que essa suspeita se baseie no argumento das "mentalidades" ou da "impreparação" da sociedade para o casamento LGBT, é inaceitável. Se até o Estado tem a obrigação de andar um pouco à frente da sociedade no que diz respeito à defesa de direitos (e em Portugal quantas vezes não anda atrás...), o que não dizer dos partidos de esquerda... O grau de "preparação" duma sociedade ou o grau de "mudança das mentalidades" não são mensuráveis, ao contrário do que dizem alguns gurus da sociologia...

Creio sinceramente que as oscilações no artigo do Sérgio - sobretudo entre o texto principal e a caixa sobre casamento - correspondem às oscilações da esquerda radical sobre o assunto. São oscilações boas para uma debate teórico numa escola de quadros partidários; são más para a acção política que transforme as vidas das pessoas reais aqui e agora.

PS: Sérgio, em querendo tens todo o espaço de resposta que quiseres neste blog

mva | 19:36|