OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


4.7.07  

A zanga dos feitores

Dizia uma colega minha outro dia, comentando o governo: "Estes tipos parece que estão zangados com as pessoas". Às vezes estas avaliações "anímicas" são as mais certeiras. De facto, Sócrates e muitos dos seus ministros transmitem esta sensação. Nunca os vemos fazendo discursos positivos, que entusiasmem, que mobilizem as pessoas para as mudanças que dizem ser tão necessárias. O que vemos é outra coisa: uma espécie de arrogância. De onde vem ela? Em parte da cultura paternalista e hierárquica portuguesa, claro. Em parte do "estilo centrão", essa espécie de alheamento da Política partilhado por PS e PSD pelo simples facto de se terem estabelecido como dois grandes centros de emprego e distribuição de benesses. Mas o PS tem uma característica específica. O seu papel tem sido - e esta é uma das poucas coisas em que o PC tem razão - o de feitor do neo-liberalismo. Um feitor é um administrador no terreno, o intermediador entre o patrão e os trabalhadores. A atitude dos governantes PS pode ser resumida assim: "Nós estamos a fazer o que é preciso. Mas somos de esquerda. Porque é que vocês, gente de esquerda, não percebem que temos razão?!" É aí que começa a zanga com as pessoas. E como não há maneira remotamente progressista de explicar o que fazem, adoptam uma linguagem absolutamente vazia de conteúdo: "modernizar", por exemplo, é uma das expressões favoritas. Sem dizer "como" ou "para quê" - esses preciosos pormenores. Sobretudo quando (como no caso das universidades) se trata de diminuir o governo democrático (da última vez que li um manual de História, ainda se associava modernidade a democracia, mas se calhar mudou...). A zanga, no fundo, é uma zanga consigo mesmos. Com os seus passados, com a retórica de esquerda que se sentem obrigados a usar, com as críticas que eles mesmos fizeram, no passado, a outros governos. Esta zanga com as pessoas estende-se, depois, a todos os domínios onde o polvo do governo e do partido chega. O feitor torna-se mais papista que o papa - ou mais patronal que o patrão - aplicando com excesso de zelo neo-cristão as cartilhas neo-liberais (que ele traduz como "modernas"). Oiça-se Sócrates a falar: o seu discurso é do mais absoluto vazio. Oiçam-se os feitores nas instituições públicas: o seu discurso não passa do "é assim, tem que ser assim". O PS rendeu-se a uma coisa que resolveu definir como sendo "a realidade" e desistiu de fazer qualquer análise crítica sobre quem a define, em que termos e com que objectivos.

[Vêm agora dois momentos importantes para o governo: a presidência da UE e as eleições para a CML. Quanto à primeira, em três dias já houve dois episódios significativos: a recusa em falar num referendo ao tratado que replica a Constituição Europeia há pouco chumbada; e a insistência na presença de Mugabe na cimeira UE-África. Quanto à segunda, a inexistência de uma ligação entre o PS e a "sociedade civil" leva à designação de um ministro para candidato a Presidente da Câmara. Estamos em plena aridez política, em administração burocrática da política, em rendição ao real tal qual ele é (ou parece ser) - aquilo que normalmente designam por "pragmatismo". Este é curiosamente o mesmo pragmatismo que leva o grosso da elite cultural portuguesa a achar que isso do Mugabe não tem importância nenhuma, ou que a leva a apoiar, na hora, a candidatura municipal que mais subsídios pode vir a dar. Pela parte que me toca, vou gritar contra Mugabe; e não voto no presidente-de-câmara-designado nem que me paguem.... ]

mva | 09:20|