OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


11.7.07  

Para casa já e toca a parir

Bem me parecia que vinha aí a propaganda sobre a quebra da natalidade. Completa, com projecções catastróficas e sustos sobre a percentagem de velhos e a quebra da sustentabilidade da segurança social. Este é um terreno perigosíssimo. Normalmente o estado promove a ideia da "nação" como uma família extensa, uma parentela, que "naturalmente" precisa de se reproduzir e continuar até à eternidade. E, tal como na "família" compete tradicionalmente à mulher ficar em casa e ter filhos, assim a salvação da família-nação dependerá do regresso à "tradição". É claro que o governo não se atreve a dizer isto. Dessa encomenda tratará bem a igreja. Mas omite factos. Por exemplo, que a mesma quebra demográfica já aconteceu antes em países desenvolvidos do norte da Europa; que esses países estão hoje em recuperação demográfica; e que não recuperaram através do "regresso ao passado" mas construindo estados sociais sólidos, aumentando o nível de vida, garantindo redes de creches, promovendo a igualdade de género nas famílias heterossexuais, permitindo a adopção por gays e lésbicas, acolhendo imigrantes, etc. Nestas coisas, às vezes nem os cientistas sociais ajudam. Hoje no Público o meu colega demógrafo Leston Bandeira é citado. Diz ele, supostamente, que "tal como com as espécies", extinguir-nos-emos se não nos reproduzirmos. A analogia é no mínimo infeliz: já nem falo no "nos", que é uma fantasia ideológica; mas sim do facto de os portugueses (como qualquer outra nacionalidade) não serem uma espécie nem em analogia. São uma população vivendo sob um estado. Um estado que pode gerir a entrada de mais pessoas, que pode promover a reprodução com boas condições de apoio à parentalidade, que pode promover a reprodução por quem deseja reproduzir-se - o que significa não fazer propaganda conservadora que remeta as mulheres para casa; e não proibir categorias de pessoas de se reproduzirem de forma assistida (como acontece com as lésbicas portuguesas) ou de adoptarem.

Poucas coisas há mais perigosas que a criação de um "medo" sobre a quebra demográfica. Poucos terrenso são tão propícios ao regresso da pior reaccionarice no campo do género e da sexualidade. Pior ainda quando tudo indica que não é através do reforço do estado social e de políticas de igualdade, autonomia e diversidade que se pretende promover a retoma da natalidade. No estado em que se encontra a economia portuguesa, as relações laborais, o estado social, o pensamento dominante sonre imigração ou sobre género e sexualidade, já se está mesmo a ver o que aí vem: mulheres para casa já e toca a parir.

mva | 19:14|