OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


6.3.07  

Para o museuléu de Salazar

Há muito, mas mesmo muito, tempo, que o estado português deveria ter criado um museu do Estado Novo. Um museu que colocasse o dito no mesmo plano em que estão, noutros países, ditaduras, regimes totalitários, eventos terríveis como genocídios, etc. Tivesse-o feito "atempadamente" (finalmente usei esta delícia do português contemporâneo) e talvez não houvesse tanta asneira circulante sobre Salazar. Se calhar agora é tarde. Se calhar agora não há forma de escapar a um mausoléu da criatura, feito por uma qualquer iniciativa semi-privada ou semi-pública. O regime democrático - não me refiro ao PREC - não soube arrumar Salazar e o Estado Novo. O resultado é que Salazar e o Estado Novo ainda arrumam o regime democrático. Pelo menos nas cabeças dos pobres de espírito, para quem os mitos de "ordem" e "pacatez" são como orquestras de anjos no meio da acelerada confusão.

Pois então, caso o museuléu do Salazar abra, tenho um pedacito de história pessoal para oferecer. Era o dia em que a criatura morreu e eu era um puto. No carro dos meus pais, atravessávamos a ponte que tinha o nome da criatura. Na rádio anunciaram a morte da dita. Espontaneamente, os meus pais saltaram nos bancos do carro e festejaram. Apenas para, segundos depois, se comporem meio envergonhados. Não tanto por pudor em celebrar a morte de alguém (mas também, claro). Mais por causa dos outros automobilistas, que com certeza ouviam a mesma notícia. Que pensariam? Que diriam? Que fariam - caso fossem futuros defensores - ou pais de futuros defensores... - de Salazar como Ganda Português?

O resto - as histórias de papéis queimados na banheira perante a hipótese da vinda da polícia política, o parente preso anos a fio, a ameaça psicológica do recrutamento dos rapazes para a guerra colonial, um tio a quem a guerra levou ao suicídio ou a sensação genericamente deprimente de viver nas berças políticas do mundo - tudo isso, reproduzido vezes sem conta pelas famílias e tantas vezes de modos bem mais dramáticos, não se oferece agora a um museuléu. Tudo isso deveria estar há muito arrumado, decidido, estruturado, na cabeça colectiva dos portuguses. Não está. O regime democrático não quis resolver a memória histórica da ditadura; não quis pronunciar-se. Agora lixe-se.

mva | 10:15|