OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


19.3.07  

Fim-de-semana pós-colonial

A minha ida a Manchester tinha como propósito apresentar uma comunicação (a versão inglesa do posfácio/comentário ao livro 'Portugal não é um país pequeno'. Contar o 'Império' na pós-colonialidade, organizado por Manuela Ribeiro Sanches) num encontro sobre pós-colonialismo "em português". Como foi necessário acordar a uma hora bárbara para apanhar o avião, dei por mim a passar por uma estação lisboeta onde convergem comboios quer da linha de Sintra, quer da margem Sul, quer ainda da linha da Azambuja. Resultado? Ver um mundo novo para mim. Às 6 da manhã a maioria das pessoas que desce dos comboios é negra. E mulheres, mulheres negras. Aquela é com certeza a massa humana que alimenta as limpezas de escritórios e lojas. A mesma massa que depois desaparece por magia na invisibilidade social e no silêncio. Uma daquelas mulheres é com certeza a senhora que todas as manhãs despeja o caixote do lixo do meu gabinete, onde, num gesto de menor consciência ecológica, pode ter ido parar uma versão inicial da comunicação que apresentei em Manchester.

Já em Manchester uma jovem angolana agora a viver em Inglaterra diz que um dia telefonou à família em Luanda anunciando que passaria a viver no Reino Unido. Tinha tido uma péssima experiência de imigração em Portugal, com sucessivas situações de racismo. No meio da discussão familiar, ao telefone com Luanda, terá dito: "Fico aqui, porque aqui até os cães têm direitos".

Uma outra pessoa, portuguesa, dizia-me que assistira a uma apresentação do Observatório Europeu do Racismo e Xenofobia. Apresentavam-se os dados oficiais dos países da UE relativamente ao racismo. Quando chegou a vez de Portugal não havia dados oficiais para apresentar. Off the record, o responsável do Observatório terá dito que um/a funcionário/a em Lisboa teria afirmado que "aqui não há racismo, sabe?"

O recepcionista do hotel em Manchester pergunta-me se a pessoa a quem quero deixar uma mensagem pertence "a esse grupo de espanhóis que está cá". Digo-lhe que não, espanhóis não. "Italianos?", acrescenta ele. "Portugueses", digo eu. "Yeah, something like that", conclui ele.

No avião de regresso, Air France. Anuncia-se a necessidade de os cidadãos não europeus preencherem formulários de entrada no espaço Schengen. Como praticamente ninguém solicita os papéis, a hospedeira, de traços orientais, dirige-se apenas aos passageiros ao meu lado, perguntando-lhes se não terão que preencher os ditos formulários. Eles, envergonhados, dizem que não. Explicam em voz baixa que são cidadãos britânicos. Eram um casal, com uma criança de colo; a mãe envergava um "véu".

mva | 12:09|