OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


30.3.07  

Bolonha blues

Já passou quase um ano. É conhecida a minha zanga com o processo de Bolonha. Não é uma zanga fundamentalista, mas sim provocada pela desilusão. É mais parecida com o sentimento de amante traído. Tinha eu pensado ingenuamente que Bolonha seria uma oportunidade dourada. Para quê? Para, nem que fosse lentamente, acabar com o sistema irracional que temos, feito de cursos de licenciatura especializados e geradores de expectativas de empregabilidade imediata. Para, nem que fosse através do incremento de um sistema de majors e minors, e da generalização dos segundo e terceiro ciclos, caminharmos no sentido de uma educação superior generalista, com ciências e humanidades, com concentração no ensino da capacidade de aprender, de raciocinar, de criticar, e de adquirir cultura geral (porque é disto que precisamos, porque a universidade não deve servir para o treino profissional, porque hoje não se treina ninguém para uma só profissão e precisa-se de gente polivalente e adaptável). Para permitir aos alunos "navegarem" por cadeiras de várias áreas científicas, graças ao sistema de créditos, construindo o seu curriculum pessoal.

Percebi que tudo não passava de uma ilusão quando surgiu, logo, a resistência institucional (o diabo, como deus, está nos detalhes....): a burocracia tratou logo de impedir a mobilidade e escolha dos e pelos estudantes - mantendo o sistema de turmas, de anos, de precedências - e da forma de pagamento de propinas, penalizando (contra Bolonha!) os trabalhadores-estudantes. No máximo, alguns departamentos e faculdades introduziram formas pedagógicas que para mim (para nós, no meu departamento) não são sequer novas: sempre usámos syllabus, sempre planeámos e calendarizámos as actividades lectivas, sempre promovemos formas seminariais de ensino, sempre usámos avaliação contínua, por exemplo. Mas o grosso da universidade portuguesa fez simplesmente isto com Bolonha: esmifrou cursos de 4 e 5 anos em cursos de 3 e toca a andar. Leram Bolonha com óculos neoliberais: diplomar mais gente depressa e mal para melhorar os índices. Pudera: não se tendo mexido na carreira docente universitária, nem na cultura administrativa, não se tendo permitido novas contratações, e mantendo-se a mesma pressão sobre os rácios professor/alunos, é como se Bolonha - cidade progressista e liberal - tivesse sido tomada de assalto por Berlusconi.

mva | 11:53|