OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


2.3.07  

Ao meu colega Manuel Villaverde Cabral

Uma das funções de comentadores, colunistas, ou especialistas entrevistados pelos media é legitimar ou não a hierarquia de relevância das questões políticas. Uma das formas de fazê-lo (todos o fazemos, é claro) é, advertida ou inadvertidamente, fazer o senso comum passar por bom senso. Confesso que fiquei triste quando li estas declarações de um colega por quem tenho estima:

«(...) Portugal tem bastante mais com que se entreter! (...) O mesmo diria, aliás, acerca dos casamentos gay, que no caso de serem postos a votos seriam certamente recusados. Estou convencido de que nem sequer entre a comunidade gay (se tal existe, o que duvido) há unanimidade a esse respeito? E também não sei se a adopção por homossexuais é uma grande ideia. Já reina a maior das confusões sobre o sistema de adopção em Portugal, como se tem visto pelo caso Esmeralda; não creio que haja grande vantagem em complicar ainda mais as coisas!» (Manuel Villaverde Cabral, na Visão Online)

Triste, porquê? Porque Villaverde Cabral sabe que a retórica e o tom usados têm um efeito ainda mais negativo do que se afirmasse a sua discordância política em relação ao assunto; a retórica e o tom menorizam e desprezam a questão - "mais com que se entreter". Mas também porque sabe que hoje em dia a orientação sexual é uma categoria de discriminação da mesma ordem que a "raça" ou o género e que a desigualdade consagrada na lei é, neste caso, injustificada - não para um integrista católico, é claro, mas certamente para um liberal. Daí que, entre outras coisas, seja absolutamente irrelevante a existência ou não de uma comunidade ou de consenso sobre a matéria entre diferentes associações LGBT. A exigência da igualdade não deve vir apenas do segmento discriminado (que largamente interioriza a hegemonia, aliás, como aconteceu e acontece com as mulheres em relação à discriminação de género). A exigência de igualdade pode e deve vir de toda a sociedade, desde logo dos que a pensam liberalmente, pois a pré-condição para a dignidade é a não humilhação de parte dos seus membros pelo Estado. É também isto que coloca a questão da igualdade no acesso ao casamento num patamar radicalmente diferente do das outras questões ditas fracturantes e fora do cálculo do maior ou menor apoio da sociedade (questão que nem seria invocada caso se estivesse a falar de discriminação racial). A única verdadeira fractura política é a discriminação constante na lei. Por sinal a última - injustificada - que resta no regime democrático.

mva | 09:22|