OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


15.2.07  

Fracturas e facturas

"Questões fracturantes" é não só uma frase irritante como perigosa. Pressupõe que há um conjunto de questões políticas não fracturantes. Quais? Obviamente as económicas e sociais. Falar de questões fracturantes é pois, também, estabelecer um falso consenso em torno de questões que - também elas - criam fracturas e cobram facturas. Mas o próprio rol das supostas questões fracturantes igualiza o que não deve ser igualizado: prostituição, consumo de drogas leves, eutanásia ou casamento entre pessoas do mesmo sexo não são assuntos da mesma ordem. A última questão é mesmo uma questão básica de igualdade de direitos à luz da Constituição e colocá-la no mesmo saco que as outras (cuja dignidade e importância não questiono) é diminui-la. Não será por acaso.

Paralelamente a esta divisão entre fracturante e não-fracturante, o senso comum político acha que existe naturalmente uma hierarquia de prioridades. Os assuntos económicos e sociais seriam de primeira ordem, as ditas questões fracturantes seriam de segunda. Infelizmente, direita e esquerda parecem partilhar esta visão, quando nada nos garante que não possa ser tudo feito ao mesmo tempo. Pense-se, de novo, na questão do casamento: a alteração do Código Civil no sentido de abolir a referência ao sexo diferente dos cônjuges (é essa a alteração que se exige - e é o que se fez em Espanha) não tem consequências negativas do ponto de vista económico. Mesmo que as tivesse, o princípio da igualdade não deveria sobrepor-se a elas? Afinal de contas, não foi o "argumento" dos custos para o SNS da despenalização da IVG um argumento demagógico e eticamente reprovável (e reprovado)?

A definição de uma área - confusa e criadora de confusão - de "questões fracturantes", para mais remetidas para o fundo da hierarquia das prioridades (coisa espantosa no que aos direitos diz respeito), vai junta com o conservadorismo congénito da nossa classe política. Dias depois do referendo, Cavaco Silva já veio falar da "ruptura" que poderá ter sido criada na sociedade e da necessidade de "consenso". O sinal é claro: não mexam em mais "questões fracturantes". E quis o calendário que o 1º aniversário da entrega da petição pela igualdade no acesso ao casamento civil, e da tentativa de casamento de Teresa e Helena, tivessem ocorrido dias depois do referendo sobre a despenalização da IVG....

Mas a verdade é esta: ou se mexe nas questões ditas "fracturantes", e desde logo distinguindo entre elas - começando por abolir a nossa última discriminação legal, imposta pelo Estado - ou pagaremos a factura de viver numa sociedade que humilha um segmento dos seus membros, não garantindo a todos igual dignidade.

mva | 12:38|