1) No dia anterior ao referendo um amigo relembrava-me a frase que compara as mentalidades espanhola e portuguesa: "Eles matam o touro na arena, nós nos bastidores". É sem dúvida uma frase certeira mas, talvez por ser antropólogo, tenho grandes pruridos em subscrever a ideia de carácter nacional. Na comparação entre Portugal e Espanha - cada vez mais útil e relevante - acho importante pensar em termos das relações entre os habitus e as estruturas sociais mas, sobretudo e para o que interessa aqui, em termos de tempo e modo da mudança. O tempo da mudança social em Portugal é mais lento, por assim dizer. E o modo de negociar a mudança - sobretudo na política - presta constante vassalagem a ideias vagas como "consenso" e "prudência", bem como estimula a reserva da expressão de ideias claramente diferenciadoras. O tempo (e o modo) da mudança portuguesa é, no fundo, camponês. E isto é reforçado pela circunstância de termos passado do ancien régime salazarista para a pós-modernidade consumista, sem a aprendizagem da democracia e dos direitos ou a passagem pela escola - algo que a Europa Ocidental fez ao longo do século XX e a Espanha na "transição".
2) Esperámos trinta anos pela despenalização do aborto. Finalmente, está aí. Mais do que pensar nos pormenores que nos conduziram aqui, gosto de ver a big picture. A despenalização do aborto é uma chave simbólica que servirá para abrir muitas outras portas. É possível agora dizer que em Portugal não se admite, de facto, que o Estado subscreva uma visão moral específica de um grupo e a imponha à comunidade. É possível agora dizer que Portugal começou a sair do iliberalismo que historicamente o caracterizava. E é possível agora dizer que a hierarquia da Igreja Católica perdeu a sua mais importante batalha.
3) A Igreja Católica apostou muito mais neste referendo do que quis dar a entender ou do que reconheceram os adeptos do Não. Fê-lo segundo a linha de Ratzinger e Policarpo: tentou calar ao máximo o clero popular extremista e evitar imagens "radicais"; enviou para a linha da frente os quadros e técnicos leigos. Optou pela via Opus Dei. Juntos, Igreja e movimentos do Não, adoptaram ainda as mais recentes inovações do neo-conservadorismo, a saber, a inversão da linguagem, autoproclamando-se de "modernos", face a um liberalismo e a um progressivismo que classificaram de antigo.
4) A estratégia revelou-se errada. Porque no campo político tiveram que ter como aliados figuras como Marques Mendes ou Marcelo Rebelo de Sousa, peritos no modo português de matar o touro nos bastidores, de procurar "consensos" e "compromissos" que, na realidade, são formas de fazer triunfar a sua agenda. A fraude política de ambos, sobretudo a proposta de despenalização sem o fim do crime e graças a uma eventual vitória do Não, revelou-se desastrosa. Não perceberam que o lento tempo português já tinha, entretanto, sofrido uma pequena "aceleradela". Um exemplo, por menor que pareça: a famosa divisão Norte-Sul - que ainda hoje um jornal repetia - já não o é tanto assim. O "Sul" subiu (veja-se o mapa no Público de hoje) e, sobretudo, o Litoral ganha força. Não perceberam que, ainda que de modo tíbio, Sócrates afirmou uma ideia diferenciadora, e não enveredou pelas meias-tintas. Guterres "morreu", em suma. E Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa é que ficaram com o cadáver nas mãos.
5) Políticos como estes só sobrevivem se conseguirem manter em funcionamento o tempo e o modo portugueses de (não-)mudança. São seus produtos - Marcelo é o aggiornamento simpático e loquaz do marcelismo; e Mendes é o produto acabado do aparelhismo do centrão partidário português. Por isso no day after a estratégia deles será já a de subtilmente se colarem aos resultados e, ao mesmo tempo, procurarem "conter os estragos" no processo legislativo que terá lugar (não vale a pena levar a sério posições histéricas sobre a "cultura da morte", como apareceu no Blogue do Não; ou posições esquizofrénicas como a de César das Neves no DN de hoje, dizendo que isto do aborto afinal não tinha importância nenhuma; ou posições de mau perdedor como a de Luís Delgado, também no DN, apelando ao veto de Cavaco ou do Tribunal Constitucional).
5) Compete a Sócrates resistir à tentação confortável de regressar ao grande "consenso". Compete-lhe perceber que tem uma porta aberta para romper com o modo-açorda de fazer política e perceber que o tempo-lesma acelerou. Um bocadinho, mas acelerou, e em grande medida graças à forma inovadora como os movimentos do Sim se mobilizaram - de modo liberal, moderno, de plataforma, de issue. Nada será o mesmo doravante. Mesmo com a vergonhosa abstenção; mesmo com as contradições do PS entre política da vida, por um lado, e política social e económica, por outro (ou com as contradições na própria agenda da política da vida).
Doravante temos na mão uma chave simbólica com duas entradas: a primeira, liberal, que fecha a porta à imposição duma moral pelo estado e à imposição ao estado de uma moral religiosa; a segunda, equitativa: porque a questão do aborto é também uma questão de igualdade de género, teremos agora que resolver as desigualdades de direitos que restam.
Não podia concordar mais. Só o facto de pensar que temos das melhores e mais completas leis do Mundo, e depois ver os mafiosos a safarem-se pelo país, faz pensar porque não fazer um clone do D. Afonso Henriques para voltarmos a agir mais e a pensar um pouco menos.