OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


23.1.07  

Marcelo ®

A figura pública (não está aqui em causa a pessoa) de Marcelo Rebelo de Sousa é uma das criações de marca mais estrategicamente inteligentes dos últimos tempos. Para ter influência, a marca Marcelo® não poderia ter-se mantido apenas no universo da autoridade jurídica. Pela simples razão de que a sociedade já não obedece bovinamente ao autoritarismo formalista, tecnicista e de estética patriarcal que ainda caracteriza em grande medida esse universo. Tudo isso está demasiado associado ao antigo regime. É claro que dá jeito dar a entender que ainda se tem esse capital - é mesmo fundamental dá-lo a entender - mas essa alusão só resulta graças ao novo embrulho: o de um modernismo um tudo nada mais liberal. O corte não tem que ser radical: basta mudar o tom da conversa em família da prédica e da admoestação para o convencimento e o brilhantismo de salão. "O senhor doutor fala muito bem", em suma. Saraiva - o da telehistória nacionalista - já o tinha percebido. Mas a primavera marcelista não se aguentaria tão-pouco se não fosse ter-se apropriado da forma de comunicação em que o povo entrou, o audiovisual. O povo foi catapultado para a TV vindo directamente do adro da igreja e sem passar pelos bancos das escolas. A marca Marcelo® percebeu-o. A conversa em família gera intimidade na frieza plana do ecrã. E é esta intimidade - uma referência a um jogo de futebol, seguida da referência a um livro - que permite que qualquer afirmação propriamente política, até mesmo um assaSIMnato político, passe como mera expressão de bom-senso - óbvia, natural, evidente. A marca Marcelo® - e marca é, tendo mesmo conseguido tornar-se n' "O Professor", à semelhança das máquinas fotográficas que já foram "as kodaks" - entrou agora na Net e no YouTube, e fê-lo por via da questão do referendo sobre a IVG, num gesto de cândida interrupção voluntária da gravidade. Porque à semelhança daquelas marcas que de repente decidem fazer uma mercadoria que nada tem a ver com a que tradicionalmente produzem, Marcelo envereda por uma trapalhada argumentativa sem precedentes. Guterres - ao contrário da marca Marcelo, um flop comercial histórico, e co-responsável pelo calvário referendário a que fomos condenados - não teria conseguido pior. É caso para dizer "assim não". Caramba, temos direito ao nosso Marcelo em garrafa de vidro. Lata é que não.

mva | 21:29|