OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


4.1.07  

A anomia anónima

Em 3 anos e meio este blog recebeu centenas de comentários anónimos. Nestes incluo os pseudónimos que não remetam para sites, blogs e endereços (quem tenha um blog com pseudónimo, por exemplo, está apenas a criar uma persona e de qualquer modo é sempre identificável, por exemplo para efeitos judiciais). Creio não estar enganado se disser que só 2 ou 3 desses comentários foram "normais". Todos os outros resvalam para o insultuoso. Têm sempre qualquer coisa de histriónico, às vezes mesmo de histérico. Os seus autores atrapalham-se e tropeçam na própria escrita, tal a intensidade da motivação emocional. Mas são fascinantes porque nos levam a perguntar quem serão aquelas pessoas. Nunca o saberemos. Mas podemos imaginar o "quadro" por trás da revolta mal canalizada: pessoas - ou momentos na vida das pessoas - que ejaculam apressadamente a sua raiva (um pouco à semelhança das pessoas que confundem sexo com violência) e a seguir vão carneirosamente à sua vida, sem revoltas, sem poder, sem poder poder. Elas prosseguem uma velha tradição de inveja social e agigantamento do ego (pois imaginam-se como únicas e eleitas vítimas de tremendas injustiças feitas por pessoas concretas, numa espécie de ausência absoluta de consciência social). Ter uma colecção de anónimos deste tipo é ter uma pequena galeria dos horrores, um gabinete de curiosidades onde cada gaveta contém um insecto esperneante mais inesperado que a anterior. Mas é também ter uma amostra da incapacidade de diálogo e mobilização criada por uma sociedade que passou da ditadura para a revolução e desta para o neo-liberalismo do galo de barcelos. O anónimo dos blogs é uma criatura contraditória, uma contraditura: para gritar mais alto a sua extrema individualidade recorre à omissão da identidade - real ou imaginária. Seria isso o que sentiam os informadores da pide, doidos por ouvirem eventuais comentários contra a situação, por trás de um exemplar d' A Bola e esfregando imaginariamente as mãos, já-te-apanhei-meu-sacana?

[Uma colega minha, Catarina Fróis (texto disponível em breve), tem vindo a fazer pesquisa muito interessante sobre anonimato. Não sei todavia se tem alguma parte sobre o anonimato dos comentários nos blogs; suponho que a sociografia da coisa seja quase impossível de fazer. Mas a análise de conteúdo dos textos, essa seria um óptimo "terreno". Mas, é claro: quem tem pachorra para cutucar feridas?]

mva | 13:44|