OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


14.12.06  

Sim ou assim-assim?

É óbvio que um feto e mesmo um embrião são "vida". É óbvio inclusive que são vida da espécie humana. É por isto ser tão óbvio que tanto os apoiantes do "sim" como os apoiantes do "não" concordam que a decisão quanto a abortar é um problema moral e ético que se coloca a quem tem que decidir. E é por isto ser tão óbvio que há qualquer coisa de ridículo nas discussões sobre o "começo" da vida - feitas por qualquer dos lados da "barricada".

O que isto significa é que a questão se põe noutro plano. E esse plano é o da comparação entre a vida humana duma Pessoa individual e social, feita e com biografia e projectos - a mulher que engravida - e a vida no sentido lato que o embrião é. A primeira tem que pesar prós e contras da consequência de ter um/a filh@; a segunda "existe" num plano potencial e passivo. É por isto que o referendo não é sobre a vida. Como não é sobre a educação sexual, a contracepção ou os apoios às mulheres grávidas.

Mas será o referendo sobre os direitos das Pessoas, neste caso especificamente das mulheres? Em rigor, não. O referendo é sobre a despenalização, o que não invalida a punição do aborto depois das 10 semanas (tem que haver sempre uma fronteira, por arbitrária que possa parecer nos casos limite -10 semanas e 1 dia -, exactamente como na idade do consentimento, por exemplo - x anos e um dia). Não invalida tão-pouco que continue a existir o problema moral e ético referido acima. Problema ético e moral que deve ser resolvido pela consciência de cada uma das Pessoas autónomas que se vejam confrontadas com o problema. Incluindo as mulheres que, ganhando o sim, nunca serão obrigadas a interromper a gravidez (mas é mesmo preciso explicar isto?) se forem radicalmente contra o aborto.

Posto isto, o que me faz impressão é a facilidade com que toda a gente, de um lado e outro, parece abandonar o discurso sobre o corpo feminino e a soberania de cada mulher sobre ele. Faz-me impressão que o lado do "não" consiga passar a mensagem de que esse discurso é "feminista", logo "extremista". Que o outro lado aceite estes termos, como geralmente aceita através do silêncio, é sinal do atraso cívico do país. É que o discurso sobre a soberania da Pessoa sobre o seu corpo nada tem de extremista - é pura e simplesmente o resultado de uma visão moderna e liberal sobre a autonomia dos indivíduos. Extremista e ultrapassado é o discurso sobre a maternidade forçada como fado e destino.

O sector do "sim" tem que ultrapassar estes complexos e não ficar totalmente prisioneiro da lógica centrista do convencimento das "massas". Não pode fazer como o PS que a cada semana dá novos sinais de hesitar em fazer campanha: agora já o governo não vai participar nela, ao contrário do que foi dito; e hoje soube-se que hesita em fazer cartazes de campanha. Do outro lado, não há hesitações de espécie nenhuma: a ICAR, por exemplo, promove um concurso de arte infantil sobre a vida intra-uterina denominado "A minha primeira morada". Reparem bem: morada. A metáfora imobiliária é claríssima: o útero não é da mulher, o útero é do inquilino (o feto) e/ou do propietário - o estado, a Igreja, a sociedade.

Pela parte que me toca não cedo um milímetro. Continuo feminista - isto é, alguém que acredita que a igualdade plena entre os sexos é uma questão de civilização; e continuo radicalmente liberal - alguém que acredita que, apesar do determinismo social, devemos pugnar pela autonomia e dignidade plenas das Pessoas.

mva | 15:04|