OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


3.11.06  

A universidade acabou

Contra "automatismos de esquerda", ainda alimentei algumas ilusões sobre o processo de Bolonha e sobre a capacidade de inovação do governo na área universitária. Lamento dizer que as ilusões se foram. Quem anda metido nisto há vinte anos e se meteu a fundo, agora, na reestruturação, não pode deixar de ver que o processo actual conduz a 3 coisas: massificação, mercantilização e proletarização.

Massificar não significa necessariamente democratizar. Portugal precisa, de facto, de um acesso democrático ao ensino superior e precisa - ao contrário do que muitos dizem - de muito mais gente com formação superior. O que está a ser feito não é isso, mas sim tornar o ensino superior, incluíndo o nível pós-graduado, numa fábrica de encher chouriços. Obter mais diplomados não tem que significar obter diplomados da treta.

Mercantilizar não significa necessariamente (e é uma pena) introduzir mecanismos de concorrência que possam trazer mais qualidade. No nosso caso significa simplesmente vender "produtos" aos "clientes" que de qualquer modo os "consomem" - os tais diplomas -, numa lógica semelhante à do consumo de massas.

Por fim, proletarizar significa, neste caso, fazer toda a mudança do sistema (repito: massificadora e mercantilizadora) sem qualquer revisão do estatuto da carreira docente universitária. Isto resulta em sobre-exploração do trabalho dos docentes, na continuação da estagnação do corpo docente, e no surgimento de condições de trabalho que impedem a investigação e o pensamento crítico.

A restruturação actual do ensino universitário é um monumental bluff e uma hábil operação de propaganda. Basta ver como todas as virtudes de Bolonha foram deitadas para o caixote do lixo, quer pela resitência das culturas burocráticas dos serviços administrativos, num extremo da escala, quer pela pressão mercadorizadora exercida pelos órgãos dirigentes e pelo orçamento de estado, no outro extremo.

É verdade que nunca tivemos universidade a sério em Portugal. E a pouca que tivemos - a minha faculdade era disso exemplo - só se aguentava com qualidade enquanto fosse pequena e vocacionada para a excelência. Elitista? Sem dúvida. Mas a alternativa a esse elitismo não tem que ser a transformação da universidade num imenso politécnico, na menos má das hipóteses, ou num prestador de serviços a empresas, na pior.

Já vimos a que conduziram processos anteriores de mercadorização e proletarização: o desastre monumental (salvo raríssimas excepções) do ensino superior privado. O ensino público segue agora o mesmo caminho, acrescentando a "massificação-com-propinas" do corpo discente, perdão, dos "clientes".

Que tudo isto esteja a ser feito com a retórica de Bolonha - que apontaria para um ensino moderno - é no mínimo de um atroz cinismo. Vão a certas faculdades e vejam como os aspectos pedagógicos e científicos de Bolonha foram abortados e se apostou nos seus aspectos mercantilizadores e anti-trabalhistas. Tornou-se no cavalo de Tróia para uma outra coisa bem diferente e cujos contornos assustadores ainda nem nos bateram à porta a sério. (E como eu detesto ter que escrever coisas que soam a pessimismo imobilista à moda da esquerda antiga!)

A universidade acabou. Chamem-lhe, por favor, outra coisa.

mva | 13:01|