OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


13.11.06  

Falsas expectativas

Há dias um professor de gestão, José Pinto dos Santos, foi entrevistado na RTP. Às tantas dizia que as empresas, sobretudo multinacionais, deveriam empregar pessoas das humanidades. O primeiro exemplo que deu foi o dos antropólogos. Para quê? Para ajudarem a perceber as diferenças culturais quer dos parceiros de negócios, quer dos consumidores. Isto já se faz, sobretudo no universo norteamericano. Que parece bom, parece, sobretudo nestes tempos em que se pensa na universidade em termos de "saídas profissionais" e não, como deveria ser, em termos de formação educativa avançada. Mas Pinto dos Santos introduziu um "mas": "desde que não tragam certas ideologias que grassam muito nesses cursos..." (por outras palavras).

Pois é. Às vezes essas "ideologias" são simplesmente o pensamento crítico. E a negligência do mesmo pode levar a uma "aplicação" da antropologia que, neste caso, redundaria numa negação da antropologia. Porque o conceito de cultura a utilizar seria necessariamente essencialista e arcaico, resultando, curiosamente, na sua absoluta inutilidade para os propósitos da empresa. Ou seja, a questão nem sequer é de deontologia profissional, mas sim de expectativas erradas por parte dos empresários.

(Mais curioso todavia, é o não-dito implícito na afirmação de Pinto dos Santos: a ideia de que o trabalho de gestão e o normal funcionamento dos negócios é puramente pragmático e não ideológico...)

E agora para algo de ligeiramente diferente:

Este meu post pode parecer pessimista para muitos estudantes de antropologia. Admito-o. Mas o problema é outro: sempre defendi que não deveria haver ensino superior disciplinar, mas sim um modelo próximo do college à americana, de formação complementar e avançada da educação geral, com disciplinas de várias áreas, majors e minors, habilitando as pessoas enquanto pessoas e cidadãos para a aprendizagem flexível de várias profissões - aprendizagem cuja responsabilidade deveria competir sobretudo aos empregadores e não às universidades ou ao estado. Bolonha quase que possibilitava isso. Mas tratou-se rapidamente de matar essa promessa. É um absurdo, ao nível da licenciatura, haver um curso de antropologia, como de qualquer outra disciplina. O ensino superior português é absurdo na sua reprodução de campos disciplinares estanques e é absurdo na sua criação de expectativas - directas - de emprego.

mva | 19:22|