OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


6.11.06  

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Parte de um mail recebido de um leitor exilado em Londres:

«Voltar a Lisboa-Portugal envolveu uma readaptação violenta da minha parte e ter que regredir para adequar, talvez também por uma certa fraqueza de carácter (admito-o), ou ainda, por uma certa dependência financeira de família que infelizmente acontece a muitos de nós que permanecem na educação mais tempo que o previsto. Há imenso tempo que não me deparava com tanta homofobia, até mesmo em Lisboa, a cidade que nós, os provincianos Portugueses (venho do campo, motivo nem de orgulho, nem de desconforto) crescemos a idealizar como promotora de uma maior liberdade em todos os sentidos.

O primeiro choque quando cheguei a Lisboa, no que toca à questão da fala gay, foi uma visita ao Gaydar Português. Nunca encontrei tantos perfis de homens gay com uma homofobia tão marcada, pelo menos em estratégias de auto-apresentação. 90 por cento dos perfis terminam com alguém a dizer 'não quero Marias nem maricas, procuro homens'. Brilhante cartão de visita. Na rua, no circuito fechado de um Bairro Alto que Lisboa seleccionou cuidadosamente para conter um certo alternativo (que vai desde a 'Brasileira', ou 'café dos rabos', como lhe chamou um taxista na primeira semana que cheguei,entre um cigarro e outro, até às sofisticações do 'Bicaense') encontrei, felizmente, as mais diversas pessoas - algumas delas bem interessantes - numa paleta diversa de orientações. Com algo frequente, não obstante: um certo discurso da 'pessoa' (com laivos do 'amor puro' do Giddens).

Foi-me explicado várias vezes, a título revelatório quase, por classes médias educadas como eu, que estar com alguém do mesmo sexo ou não pouco importa, são tudo rotulos sem sentido: é a 'pessoa' com que se está que importa. Talvez eu próprio esteja a ser limitado e preconceituoso, a esquecer-me da Strathern e do que a antropologia diz sobre o género, mas com trinta anos de idade já amei algumas 'pessoas' e aconteceu-me a mim (que tanto quanto sei me considero pessoa) ter amado uma série de pessoas, todas elas homens. Que faz isto de mim? Tenho por vezes vontade de escrever para uma revista de segunda categoria a colocar a questão, remetê-la para a secção das dívidas sentimentais. Com a frustração de saber que quem me tentou catequizar em relação aos discursos da pessoa não leria publicações do tipo.

Aqui em Londres, num sábado à noite chato, há uns tempos atrás, via o talk-show do 'Parkinson', talvez saiba, uma das maiores instituições do heterosexismo inglês. Um senhor velhinho, cabelo grisalho e meias coloridas (excentricidade à inglesa, apenas um toque), simpático, originalmente do Norte de Inglaterra (ainda com um laivo de sotaque por trás que contraria o elitismo sulista), famoso por um maior interesse nos convidados do que em si próprio. Trata-se de um programa de horário nobre, 9.30, sábado à noite. Elton John e um comediante gay (um dos actores de 'Little Britain'), entre outros, eram alguns dos convidados. Brincava-se com a questão dos sósias do Elton John, que hoje em dia são tantos quantos 'Elvis' à solta. A certa altura, o comediante perguntava: "e já agora, tu és mesmo o Elton ou um sósia?". Ao que Elton respondeu: "pull your trousers down and I'll show you". Parkinson ri-se, público ri-se, nação ri-se, meia volta e seguimos todos em frente, para a próxima piada. Menos eu, que me engasguei na chávena de chá. Talvez tenha passado demasiado tempo em Lisboa, com todas as suas boas qualidades. Talvez me falta entender que no fundo era uma conversa entre 'pessoas' que assisti, e nada mais.»

mva | 12:58|