OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


8.10.06  

A última oportunidade?

Um grupo de pessoas à volta duma mesa. Doze, para ser mais exacto. De repente alguém nota que uma das convivas está grávida e diz que afinal são treze. Está lá o tom de ligeira piada. Mas está lá também o tom de ligeira seriedade. Quando alguém desafia o senso comum e diz que "não senhor, somos mesmo só doze", a maioria dos convivas não acha piada...

Há uns tempos escrevi qualquer coisa em que referia como as novas tecnologias médicas, nomeadamente as ecografias, permitem a construção de uma relação mais do que imaginária com o feto enquanto quase-já-filho e pessoa. A baixa da mortalidade infantil também contribui para um maior investimento afectivo na criança que aí vem, dada a maior probabilidade de o parto ser bem sucedido. E é já comum dar nome ao feto, quando antes apenas se fazia uma lista de preferências (e saber o sexo também personaliza, numa cultura em que o género é um elemento central da noção de pessoa).

Ora, há dias, M. J. Nogueira Pinto escrevia sobre isto mesmo, desde o ponto de vista conservador e "pró-vida". O estatuto do feto como pessoa e sujeito legal é a grande batalha deste sector. Como também eu dizia nesse tal texto escrito há um bom tempo (peço desculpa, mas não sei onde está?), corria-se o risco de em Portugal não se conseguir despenalizar o aborto caso esta nova "visão cultural dos fetos" avançasse ainda mais. Portugal poderia mesmo ser apanhado a discutir a despenalização num momento em que, nos países que a aprovaram há muito tempo, os sectores conservadores começassem a colocar o estatuto do feto-enquanto-pessoa na agenda política - como já acontece, aliás, nos EUA.

Daqui a poucos meses teremos, pois, a última oportunidade. Antes que aquilo que tem sido uma bandeira dos militantes anti-escolha passe a ser - por razões outras, não ideológicas - um novo senso comum. E isto na ausência, claro, de uma consciente interiorização pela sociedade em geral da importância decisiva dos direitos das mulheres enquanto cidadãs e pessoas autónomas - que, a meu ver, é sempre (lá no fundo, como se costuma dizer) a verdadeira questão que se referenda.

mva | 22:40|