OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


28.10.06  

Exigir mais

A entrevista a Diogo Infante (por Ana Soromenho e Isabel Lopes) na Única do Expresso é um complicado exercício, tanto da parte do entrevistado como das entrevistadoras. É um caso daquela ginástica lusa que consiste em funcionar retoricamente num registo cosmopolita e liberal, ao mesmo tempo que se vai agindo de forma paroquial e conservadora - e culpando "o país" pela impossibilidade de se agir de modo cosmopolita e liberal...

A capa avisa-nos: «Somos um país de preconceitos», diz Diogo Infante. E a página de entrada da entrevista é misteriosa: «Vivo na esperança de que me exijam mais». Ana Soromenho e Isabel Lopes arrancam com uma conversa sobre Laramie, a peça que Diogo Infante levou à cena no Maria Matos, numa atitude a todos os títulos louvável. Mas Laramie é o trampolim para a referida ginástica, neste caso uma ginástica sobre os limites da fala sobre a homossexualidade.

A meio, as jornalistas perguntam: «É mais difícil dar a cara por um movimento contra posições homofóbicas?». Ao que Diogo Infante responde: «(...) não tenho receio de ser conotado com qualquer espécie de movimento, desde que tenha uma posição reflectida e íntegra e saiba por que o estou a fazer. As pessoas são livres de tirar as ilações que quiserem. E não deixo de fazer personagens que tenham uma sexualidade duvidosa ou mesmo uma conotação homossexual. No dia em que eu falar sobre a minha sexualidade ou abrir a porta da minha casa para me fotografarem o sofá ou a cozinha estou a ir por um caminho extremamente perigoso. Ser equilibrado tem muito a ver com o facto de me preservar. Esse é um direito que me assiste. Quero sossego, dispenso folclore».

Não só esse direito assiste a todos, como deve ser ferozmente defendido, mesmo para uma figura pública como um actor. Mas gostaria de apresentar a Diogo Infante uma alternativa ao seu raciocínio: o "equilíbrio" a que se refere, e que a meu ver é parte da ginástica que referi, tem o seu centro de gravidade alhures, porque uma coisa é assumir a orientação sexual, outra é "abrir as portas de casa".

Explico-me: A orientação sexual tem a ver com uma grande divisão de desigualdade na nossa sociedade; assumir a orientação sexual (a que é estigmatizada, claro) é ter um gesto político de recusa da remissão para "o privado" dos problemas sociais e políticos criados pelo heterossexismo. É justamente através dessa remissão para o "privado" que a homofobia se reproduz, através do silenciamento e da invisibilidade. Já "abrir as portas de casa" (ou da sexualidade no sentido estrito, isto é, a sexualidade íntima - que nada tem a ver com a revelação ou não da orientação sexual) é passar para o plano do íntimo. E nunca é demais lembrar que a orientação heterossexual é sistematicamente revelada no quotidiano e nenhum heterossexual se coibe de o fazer usando o argumento do privado...

Exige-se, de facto, mais. Das elites (artísticas, políticas, académicas, jornalísticas...), porque ao seu maior poder de influência deve corresponder maior responsabilidade social (sim, estou a moralizar, mas de vez em quando é preciso...). Exige-se mais correspondência entre os propalados ideais liberais e cosmopolitas e os actos e as palavras. Exigem-se saltos mortais à retaguarda que transformem esta complicada ginástica nacional de alusões, escondidas, e pequenas revelações, esta espécie de titilante véu islâmico. Bem treinados, aqueles saltos nada têm de mortal. E são lindíssimos.

mva | 14:36|