OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


30.9.06  



Do clítoris a Saramago

Ontem fui ouvir Khady Koita, a senegalense que preside à Rede Europeia contra a Mutilação Genital (e que, com toda a razão, prefere dizer mutilação sexual ). O simples facto de haver uma mulher que, "pertencendo" a uma sociedade onde é "tradicional" a prática da mutilação, se rebela contra ela, deveria bastar para se perceber o que não se deve entender por tradição. Qualquer prática ou crença, ou seja o que for, não existe em absoluto e fora das relações sociais - que são sempre arranjos, mais ou menos temporários, de desequilíbrios de poder. Neste caso, claramente de género. E isto já para não falar no arranjo mais ou menos temporário que é a "pertença" a uma sociedade ou a um universo de referências culturais (e a questão não é só de hoje, da "globalização" - os africanos, sobretudo da África Ocidental, que o digam, habituados que estão a sociedades plurilinguísticas, plurireligiosas e à dança das tutelas políticas).

A disputa em certas partes do mundo entre quem é a favor e quem é contra a mutilação sexual feminina é semelhante à disputa noutras partes do mundo - desde logo esta de onde escrevo - sobre o aborto, a "vida", os direitos das mulheres, o estatuto dos fetos, etc. É por isto também que o tema da MGF (ou MSF...) não nos pode deixar cair na armadilha do "confronto de civilizações" (Koita foi, aliás, clara ao dizer que a prática de MSF não se restringe às populações islâmicas; assim como sabemos que não se restringe a contextos africanos).

Agora permitam-me um salto no argumento: quando José Saramago propõe, do alto duma "autoridade" de intelectual público à século XX, um pacto de não agressão entre religiões (poderia ter dito "civilizações"), onde cabem no esquema dele as Koitas deste mundo? Em qual das "civilizações"? É evidente que o problema de Saramago é simétrico do problema de Huntington com o seu pueril "choque das civilizações". Ambos fazem um serviço aos Bush e bin Ladens deste mundo, verdadeiros arautos da ideia de "civilizações", suas fronteiras bem definidas e seu conflito até à vitória de uma das partes.

mva | 11:19|