OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


5.9.06  

Conceito-bomba

Nos últimos tempos quase não se passa um dia sem um artigo a cascar no multiculturalismo. Depois do 11 de Setembro e outros ataques terroristas e do "despertar" dos integristas muçulmanos adormecidos nas sociedades ocidentais (bem como depois dos eventos de Paris no ano passado), o multiculturalismo é o bombo da festa. Poucos são os autores que procedem a uma verdadeira crítica do multiculturalismo. Amartya Sen fá-lo. Kwame Appiah também, transcendendo o problema com a ideia de cosmopolitismo. Entre nós, Rui Pena Pires faz a crítica mais articulada e sustentada. Mas o grosso dos ataques não são deste tipo. Não são críticas. Vêm de sectores conservadores cuja preocupação não é com a construção de sociedades plurais, mas sim com a defesa de uniculturalismos nacionalistas. A sua "crítica" ao multiculturalismo é apenas um "eu bem vos avisei" e um apelo velado (?) à unicidade - algo que é sempre o resultado de enormes violências simbólicas, quando não físicas.

E assentam num erro crasso, que partilham com aqueles que atacam (os estados e governos que apostaram em políticas multiculturalistas): partem do princípio de que existem mesmo culturas absolutamente diferentes, incomensuráveis, "propriedade" de populações ("povos"), correspondentes a territórios delimitados, idealmente administrados por um estado. O erro - dos "críticos" conservadores como dos crédulos políticos multiculturalistas - é o mesmo, e em antropologia chamamos-lhe reificação (ou "coisificação") da cultura. Nem os "universalistas" (exemplo máximo: o modelo francês) escapam a esta pecha, pois é o próprio estado que é transformado em nação e os valores daquele em "cultura", com religião civil e tudo.

A "cultura" é um conceito-bomba. Temos que desactivá-lo com pinças. Conservadores nacionalistas, progressistas multiculturalistas, integristas muçulmanos ou não, todos manipulam esta coisa explosiva e reproduzem-na nas suas políticas. Todos parecem ter desconfiança, quando não ódio, a várias noções: mudança cultural; transformação cultural; carácter material e político dos processos culturais; contradições e conflitos entre segmentos da mesma "cultura"; processo; mistura; pluralidade, complexidade e até contradição de identidades; cosmopolitismo. Sem o esclarecimento deste ponto de partida - o que entendemos por cultura(s) - o debate sobre o multiculturalismo é uma palermice. O pior é que é uma palermice perigosa.

mva | 18:55|