OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


5.8.06  

A política por outros meios (por favor)

É bom ver toda a gente, nos media e não só, envolvendo-se com a guerra no Médio Oriente. É bom porque significa que as pessoas não se fecharam no remanso provinciano do extremo ocidental da Europa, para mais em período de férias, e que sentem os problemas do mundo como seus. No entanto... No entanto, na maior parte das discussões já não é (alguma vez foi?) o Líbano, o Hizbollah, Israel ou a Palestina que parecem estar em causa, mas sim os alinhamentos políticos nacionais. O Médio Oriente como boneco de ventríloquo, repito.

Há mal nisso? Pensando bem, não. É apenas mais uma forma de discutir valores, visões do mundo, política, em suma, que se faz tanto na micro como na macro escala. Mas há dois problemas nisto tudo. O primeiro é, digamos, metodológico: é que é muito difícil confiar na informação, nas fontes que cada "lado" - numa qualquer discussão nacional sobre o Médio Oriente - manipula. Assim como é muito difícil acreditar que a complexidade da situação seja atingível pelo mero esgrimir dos "factos" (quantos mortos, quem começou o quê, etc).

O segundo tem a ver com a tentação clubística, digamos, nas discussões sobre conflitos. E aqui as surpresas são constantes. Só um exemplo da complexidade das coisas: o Israel que constrói muros e coloniza terras palestinianas é o Israel da experiência socialista inicial e da construção duma democracia; o Israel que fechou a Faixa de Gaza como um campo de leprosos é o Israel que construiu uma sociedade multicultural, com gente oriunda de todos os cantos do mundo; o Israel da tentação de pureza étnico religiosa teve como antepassado o Israel sonhado como utopia igualitária. Etc. Do outro lado, o universo de palestinianos e refugiados palestinianos, tem todas as características de povo oprimido com direito a uma reparação histórica, com direito a um estado. O martírio da parte da sua população que não conseguiu uma vida melhor noutros países árabes e na diáspora em geral, é inqualificável. Mas o movimento político palestiniano tem vindo a transformar-se numa coisa intolerável, com o fundamentalismo islâmico, os grupos terroristas e o apoio dos estados árabes da região - puras e simples ditaduras e autocracias que oprimem os seus próprios cidadãos - e do regime de Teerão.

A feiura da política do estado israelense e a feiura da política dos Hizbollahs vários equivalem-se, mesmo tendo economias do horror diferentes (a bomba lançada de avião, a bomba do bombista-suicida, por exemplo). Fazer uma constante exegese da génese (do tipo, "sim, mas o fundamentalismo islâmico existe como reacção à política de Israel"; "sim, mas Israel só pode mesmo é defender-se e de todas as maneiras possíveis por causa dos terroristas e das ditaduras à volta"), para poder confortavelmente escolher um lado (e de caminho esquecer as monstruosas contradições do campo escolhido), é no mínimo infantil, para não dizer vagamente imoral. Os alinhamentos clubistas e por atacado nunca fizeram tão pouco sentido. E, no entanto, é a isso que se dedicam a maioria esmagadora dos comentadores e "jornalistas".

Ainda estou à espera de um ou uma que consiga "falar mal" de ambos os "campos" e que consiga dizer o que é preciso eliminar em cada um deles para que uma solução aconteça. E para que a mortandade (1 ou 1000: quem consegue em consciência estabelecer uma escala de valor nisto?) acabe dum lado e outro da fronteira Israel-Líbano.

mva | 11:55|