OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


20.8.06  



Os super-heróis não casam

O destaque da capa do Público de domingo vai para o casamento, reportando-se ao estudo de Sofia Aboim sobre a conjugalidade no Portugal contemporâneo. O destaque da capa da Pública de domingo vai para "Os novos heróis gay". O primeiro refere-se a um universo que a jornalista Kathleen Gomes tem o cuidado de definir como "estritamente heterossexual". O segundo refere-se à ficção, quer na banda desenhada, quer no cinema ou TV.

Não li o trabalho de Sofia Aboim e parto do princípio que seja bom e rigoroso. Mas não deixa de me preocupar que seja "estritamente heterossexual" o seu universo. Provavelmente tal deve-se a questões metodológicas: não existindo casamento entre pessoas do mesmo sexo entre nós, nem uniões de facto registadas, a conjugalidade homossexual fica fora do olhar sociológico e do seu alicerce estatístico. Uma tese interia poderia ser escrita sobre esta ligação entre sexualidade, lei e ciência e a reprodução da invisibilidade... Preocupante também é que a jornalista não tenha procurado abordar o assunto junto da investigadora.

(Uma pessoa fica enjoada com tanta conversa sobre as diferentes opções, as diferentes escolhas, dilemas, decisões e contra-decisões que os entrevistados enfrentam (esta parte é da jornalista, não da investigadora). Uma pessoa que não pode escolher fica chocada com os dilemas dos que têm muito por onde escolher)

É de visibilidade que "Os novos heróis gay" pretende falar. Território pantanoso, é claro: a fronteira entre o efeito positivo de visibilização e representação na ficção nos media populares, e o efeito simplesmente voyeurista, é estreita e porosa. Mas repare-se: grande parte do salivar voyeurista depende da invisibilização legal dos gays e lésbicas. É por, entre outras coisas, o estado os dicriminar, que gays e lésbicas são remetidos para territórios obscuros e carregados de sexualidade, que depois a ficção é suposta desvendar e desvelar.

Na economia e na política sexuais, gays e lésbicas podem ser personagens, heróis, até super-heróis. Estão para lá de. Vestem fatiotas deslumbrantes. Escondem-se em cavernas. Podem sucumbir a um ataque de kriptonite. Têm duplas vidas - na "civil" vestem fatos enfadonhos e usam óculos pesadões. E não podem casar. É tudo ficção, não é?

PS. Já agora: uma secção desta peça na Pública é dedicada aos livros infantis em que a temática LGBT (especialmente parentalidade e família) é abordada. As referências são todas estrangeiras. Ora acontece que há pouquíssimo tempo foi editado pela Médicos do Mundo um livro de contos infantis portugueses em que um deles é (também) sobre esse tema. Por acaso fui eu que o escrevi. E por acaso foi o Público que distribuiu esse livro numa das suas edições...

mva | 12:18|