OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


14.7.06  

Explicando a um colega estrangeiro por que está a sinagoga de Lisboa numas traseiras...

Há aquelas sociedades onde democracia é uma palavra absolutamente vazia. E há aquelas onde essa palavra é tão banal e necessária como água ou ar. Nas primeiras tudo é por defeito proibição; nas segundas, quando se aplica a democracia aplica-se a democracia e pronto. Mas sociedades há - e se calhar são a maioria - onde a democracia é aplicada de forma castrada. Portugal tem uma longa história disso, por exemplo. "Dar com uma mão e tirar com a outra" é, aliás, uma expressão corrente no dialecto local.

Reparem: quando a "liberdade" religiosa foi reinstituída, o estado deixou construir a sinagoga de Lisboa mas exigiu que esta não tivesse fachada para a rua, que ficasse nas traseiras, no logradouro. É uma forma de dizer: vocês são iguais a nós, mas mesmo assim queremos marcar uma diferença simbólica. Não aceder à frente da rua é a nossa forma de dizer que vos toleramos mas não vos consideramos dignos da igualdade plena. Antes que vocês marquem a vossa diferença, marcamo-la "nós". E marcamo-la como desigualdade.

Os casos semelhantes são n: sim, você pode aceder à nacionalidade, mas se não falar bem a língua (pior: se não souber a letra do hino) pode não merecer aceder a ela. Não merece a tolerância que tão misericordiosamente decidimos ter para consigo. Sim, você pode abortar num hospital do estado, mas só o pode fazer em circunstâncias que nós definimos como sendo as verdadeiramente graves para si. Sim, você pode ser homossexual e até pode viver com uma pessoa do mesmo sexo, mas não pode casar-se, porque esse símbolo é só nosso. E por aí fora.

A visão "tolerante" da democracia, em vez da visão igualitária, é paternalista, patrimonial e, em última instância, discricionária: "nós" (mas quem, senhores?) atribuímos a tolerância, definimos o seu âmbito e marcamos claramente as fronteiras simbólicas que vos definem como toleráveis, nunca como iguais. E esta visão "tolerante" tem um efeito cultural curioso: as pessoas acreditarem que na sua "natureza" (ou no seu "carácter nacional", outra idiocia) são "mais" tolerantes que outros povos (vide "os portugueses não são racistas").

É que, ao contrário do que pensa o senso comum político local - que é também o da tradição da filosofia política católica - a tolerância faz sistema com a discriminação. Ambas se baseiam na discricionaridade autoritária sem consciência de o ser (porque invoca a "tradição" e/ou a "natureza" e nunca nenhum argumento racional).

mva | 10:45|