OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


17.6.06  



Universidade e ciência à Bolonhesa

1. Quando se começou a falar do Processo de Bolonha, tentei reagir cautelosamente. Não aderi a uma espécie de rejeição automática que via nele mais uma conspiração neo-liberal. No caso português, convém ter este tipo de cautelas: o nosso ensino universitário é tão antiquado que quase todas as mudanças têm alguma coisa de bem-vindo.

2. Mas entretanto a coisa começou a ser "implementada", como se diz por aí. Rapidamente os aspectos virtuosos (por exemplo, a contagem do tempo de trabalho efectivo dos estudantes) foram tratados como regras burocráticas e meramente formais às quais é preciso adaptar a realidade. Melhor, o seu planeamento, na construção de cursos e cadeiras. O resultado vai ser rapidamente visível: a velha manipulação das regras formais, lançando às urtigas os conteúdos.

3. Isto ainda é "o menos". Torna-se cada vez mais evidente que as licenciaturas de 3 anos vão ser encaradas como uma "treta". E que a bitola vai baixar consideravelmente. O que passa a interessar é os mestrados, a que um número cada vez maior de autoridades académicas se refere como "os produtos" (não, a linguagem nunca é neutra).

4. A própria distinção entre os cursos que passam a funcionar no novo modelo e os que continuam a funcionar "à antiga", para todos os efeitos, revela uma outra característica deste processo: os primeiros conhecimentos a descartar serão os das humanidades e ciências sociais. Não há nisto qualquer inocência: só sem pensamento e pesquisa críticos e reflexivos é que se pode verdadeiramente "implementar" os "produtos", isto é, fazer de todo o sistema universitário uma máquina de MBAs...

5. E é claríssimo como água que as vaguérrimas promessas de financiamento dos mestrados não vão resultar em nada. Estes terão que ser pagos e bem pagos, tornando-se fulcrais no fnanciamento das universidades e na sobrevivência dos docentes em muitos departamentos.

6. Chego aqui a um exemplo próximo. Exemplo emocionalmente complicado, já que envolve pessoas que admiro e de quem sou amigo, em duas das melhores instituições de ciências sociais, o ISCTE e o ICS. Apenas acho que elas e eu e tantos outros, estamos a ser "levados" pela lógica do capitalismo de estado à portuguesa - em que o Estado vai transformar-se não no regulador mas no promotor da concorrência. O exemplo, então: um departamento duma universidade oferece um mestrado. Ao lado, um centro de investigação também oferece um mestrado na mesma área científica. Tudo bem, dito assim. Que ganhem os melhores é algo que não me assusta. Mas acontece que o primeiro não contrata ninguém há anos porque o estado não deixa; está enquistado; o seu pessoal gasta rores de tempo em tarefas administrativas, lecciona prioritariamente nas licenciaturas, vê atrasada a produção de conhecimento através da investigação que não consegue fazer. O segundo não só não é uma instituição de ensino, como se dedica à investigação e tem fontes de financiamento científico que permitem a renovação do pessoal nem que seja através da contratação de pós-doutorados. Será possível sequer comparar a qualidade entre os dois "produtos"? Há alguma dúvida sobre qual o mestrado que os alunos vão preferir? No entanto, o dono dos meios de produção é o mesmo: o estado.

7. Já se percebe o futuro: umas universidades mixurucas com meia dúzia de docentes (os outros vão para a rua) ensinando umas coisas liceais à pressa para produzir bacharéis, numa espécie de continuação do secundário (não aproveitando, pelo menos, esta oportunidade de mudança para insituir um sistema de college, de formação geral assumidamente pré-especializada). E meia-dúzia de instituições de elite, criadas a partir dos financiamentos para a ciência e não a partir da universidade, fornecendo estudos graduados caros. Face a este espectro, tudo o resto - as virtualidades de Bolonha, as boas intenções e as por vezes boas políticas da universidade e da ciência, vão por água abaixo. É o que acontece quando o estado faz mercado, em vez de simplesmente o regular e garantir o máximo de igualdade de oportunidades para todos.

PS. Qual seria o "meu ideal"? Pois bem: college, com formação científica e humanista para todos, produzindo mais licenciados; cursos de graduação especializados oferecidos pelas instituições de ensino - as universidades; bons e fortes centros de investigação cujos cientistas podem, como já acontece, exercer docência nos cursos de graduação universitários, e onde os docentes universitários podem "residir" temporariamente durante os períodos de licença para investigação.

mva | 12:54|